É correta a decisão de devolver o projeto de lei das ‘Dez Medidas’ à Câmara dos Deputados
Como referi no artigo aqui publicado no dia 3 de dezembro, os 313
deputados que compõem o Comando pró-Corrupção promoveram uma das maiores
afrontas que o povo brasileiro já sofreu em sua história. Eles
desnaturaram completamente o projeto de iniciativa popular conhecido
como Dez Medidas contra a Corrupção, subscrito por 2,5 milhões de cidadãos.
O projeto abraçado pela população foi absolutamente desfigurado,
excluindo-se dele quase todas as medidas anticorrupção e, por outro
lado, inserindo, na calada da noite, medidas que favorecem a corrupção e
que nunca tinham antes sido debatidas nas inúmeras sessões da Comissão
Especial da Câmara dos Deputados.
Entre as matérias essenciais que foram excluídas do projeto
popular estão aquelas relacionadas a teste de integridade dos agentes
públicos, acordos de leniência, enriquecimento ilícito, reportante do
bem, aumento dos prazos de prescrição, ação de extinção de domínio e
confisco alargado dos produtos do crime, revisão dos recursos em ações
penais, prisão preventiva para evitar dissipação do dinheiro desviado,
responsabilização e dissolução de partidos políticos e execução
provisória de penas após a condenação em segunda instância.
Não bastasse esse completo esvaziamento do projeto endossado pelo
povo brasileiro, a Câmara, sorrateiramente, inseriu novas matérias que
não guardam nenhuma relação com o respectivo projeto popular, como o
crime de abuso de autoridade, direcionado apenas aos juízes e
promotores, por mera manifestação pública sobre processos em andamento
ou por quebra de decoro – seja lá o que os parlamentares entendam por
decoro. Confere-se, assim, aos réus o poder de, em substituição ao
Ministério Público, acionarem criminalmente os magistrados encarregados
de julgá-los, visando, com essa norma teratológica, a comprometer a
independência e a manifestação do livre convencimento dos juízes. Essas
medidas visam, claramente, a intimidar os julgadores e investigadores,
de modo a desencorajá-los a iniciar qualquer ação contra políticos
corruptos ou réus poderosos.
Os nobres deputados do Comando pró-Corrupção ainda forjaram
graves sanções aos autores de ações populares, civis públicas ou de
improbidade administrativa consideradas “temerárias” ou que possam
conter algum “interesse pessoal ou político”, conceitos propositalmente
vagos e subjetivos para, também, amedrontar o Ministério Público ou
qualquer cidadão que ouse propor esses tipos de ações contra os
políticos corruptos de sempre.
Além disso, ao desfigurar o projeto popular, revogaram as normas
legais que instituíam o crime de responsabilidade de prefeito que se
aproprie ou desvie bens públicos e o crime cometido por fiscal que peça
ou aceite vantagem indevida para deixar de lançar tributo.
Em suma, o projeto popular que visava a punir a corrupção de
políticos, empreiteiras e seus donos transformou-se em projeto para
incentivar a corrupção e punir julgadores e investigadores. Trata-se do
maior estelionato legislativo da história de nosso país.
Ocorre que essa criminosa manobra parlamentar é absolutamente
inconstitucional, além de ferir o próprio Regimento Interno da Câmara.
Ela viola o Substantive Due Process of Law, ou devido
processo legislativo, sem o qual as leis não podem ser consideradas
legítimas. Foi essa, justamente, a decisão do ministro Luiz Fux, do
Supremo Tribunal Federal (STF), na liminar exarada, semana passada, no
Mandado de Segurança 34.530.
A iniciativa popular de leis representa a forma de exercício da
soberania do povo no regime democrático, como dispõe o artigo 14, III,
da Constituição. Esse mecanismo permite a participação direta dos
cidadãos na vida política. Daí seu regime próprio e a sua proteção
constitucional.
O projeto de iniciativa popular, nos termos do artigo 61, § 2.º,
da Constituição, deve ser recebido pela Câmara como tal, sendo proibida a
apropriação da autoria por qualquer deputado, por ferir frontalmente o
devido processo legislativo.
É assim que – conforme os artigos 24, II, c, e 91, II, do
Regimento Interno da Câmara – as comissões que analisam os projetos
apresentados por parlamentares ou pelo governo não podem discutir e
votar projetos de lei de iniciativa popular. Estes somente podem ser
analisados pela sessão plenária da Câmara, transformada em
comissão-geral, na qual os oradores escolhidos pelos subscritores
populares poderão defender o projeto. Esse rito essencial e
indispensável não foi observado pela Câmara na tramitação das “Dez
Medidas”.
Ademais e sobretudo, em respeito à vontade popular e ao rito
especial previsto, o projeto de lei de iniciativa popular deve ter sua
essência preservada na respectiva sessão plenária de votação, sendo
vedados substitutivos ou emendas que o desnaturem.
Assim, constituíram grave estelionato legislativo a substituição
da iniciativa popular pela assinatura de deputados e, sobretudo, a
supressão e alteração das “Dez Medidas” por propostas parlamentares que
desfiguram a sua essência e a sua finalidade.
A propósito, o STF já proibiu a introdução, via emenda
parlamentar, de matéria estranha ao conteúdo de um projeto, por violação
ao princípio democrático e ao devido processo legislativo – os
famigerados “jabutis”.
É, portanto, correta a referida decisão do ministro Fux ao
determinar que o projeto de lei das “Dez Medidas” seja devolvido à
Câmara e autuado como sendo de iniciativa popular, respeitando o seu
rito especial previsto no Regimento Interno da Câmara e na Constituição
federal.
A ninguém, e muito menos ao Poder Legislativo, é dado descumprir
as decisões do STF e a própria lei. E as disposições do Regimento
Interno da Câmara são normas legais, de caráter imperativo e vinculante
para os parlamentares, que são seus destinatários.
Não se trata de interferência de um Poder em outro, mas do
cumprimento da lei e da preservação do Estado Democrático de Direito.
*Advogado
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