sexta-feira, 29 de março de 2019
Pode ser feio dizer isso, com certeza. Mas dizer o contrário é
simplesmente falso. Coluna de J. R. Guzzo, publicada na edição de Veja que estará nas bancas neste final de semana:
O ex-presidente Michel Temer, de novo em liberdade após curta estada
no xadrez, é o mais recente porta-bandeira das tropas que combatem pelo
cumprimento rigorosíssimo da lei, nos seus detalhes mais extremos, e não
admitem nenhum tipo de punição para magnatas antes que a sua culpa
fique comprovada no Dia do Juízo Universal. Até outro dia Temer era “o
golpista” — ou, pelo menos, o vampiro que chefiava uma quadrilha de
ladrões metida a cada instante com malas de dinheiro vivo, crimes
anotados em fitas gravadas e outros horrores do mesmo quilate. Mas a
vida brasileira tem sido isso mesmo. Hoje em dia não importa quem você é
ou o que você faz; se estiver com o camburão da Lava-Jato na sua cola, o
cidadão passa a ser imediatamente uma vítima do “moralismo”, da
“repressão judicial” e dos “linchadores” que querem “rasgar as leis
deste país” etc. etc. Temer, assim, passou a ser mais um símbolo do
homem perseguido pela “ação ilegal” das autoridades — e o seu alvará de
soltura foi comemorado como uma vitória do “estado de direito”, da
majestade das leis e da soberania da Constituição.
Tudo bem. Temer só deveria ir para a cadeia depois de condenado em
pelo menos um dos dez inquéritos por corrupção a que responde no
momento; seus advogados sustentam a tese de que ele é inocente em todos
os dez, nunca cometeu nenhum delito em quarenta anos de política, e
enquanto os juízes acreditarem nisso o homem não pode ser preso. Ele não
poderia aproveitar para fugir do Brasil? Poderia, mas não iria adiantar
nada: seria preso no dia seguinte pela Interpol e mandado de volta. Não
poderia, então, usar a liberdade para destruir provas? Talvez, mas
teria de ser flagrado pela polícia fazendo isso para que a sua prisão
fosse justificada. Mas o que transforma num desastre essa história toda,
tanto o ato de prender como o ato de soltar, é a perversão da ideia de
justiça que ela representa. O problema, aí, não é o despacho do juiz
Marcelo Bretas, do Rio de Janeiro, que causou tanto escândalo ao mandar
prender o ex-presidente. O problema é a lei que permite o despacho de
Bretas. Ela é exatamente a mesma que sustenta os direitos do réu.
Conclusão: cumprir “a lei”, como exigem os campeões do “direito de
defesa”, significa aceitar que o juiz Bretas tome decisões como essa
quantas vezes lhe der na telha.
O “Brasil civilizado”, esse consórcio de gente bem-educada, liberal e
moderna que acha um equívoco combater os crimes de primeira classe com
penas de prisão, vive num mundo impossível. Acha que a decisão de Bretas
foi uma aberração. Ao mesmo tempo, horroriza-se se alguém constata o
fato puro e simples de que é a sagrada Constituição brasileira, com toda
a penca de leis pendurada nela, que permite ao juiz agir exatamente
como agiu. Não apenas permite — incentiva, protege e garante a absoluta
impunidade para qualquer coisa que ele já tenha decidido ou venha a
decidir. Ele, Bretas, e mais 100% das autoridades judiciárias do país.
Mas vá alguém sugerir, mesmo com cuidado máximo, que a Constituição é
hoje a maior ferramenta para promover a negação da justiça no Brasil — o
mundo vem abaixo na hora e quem fez a crítica é excomungado
automaticamente como um inimigo do “estado de direito”. Mas aí é que
está: a verdade, para falar as coisas como elas realmente são, é que a
Constituição funciona como a grande incentivadora do crime
cinco-estrelas — o que é cometido por gente rica, poderosa ou detentora
de autoridade a serviço do Estado. É ruim na ida e ruim na volta.
A comprovação definitiva da insânia, no episódio Temer, é que o
desembargador que o soltou, Ivan Athié, um veterano especialista em
libertar ladrões do Erário, ficou sete anos afastado da magistratura por
acusações de praticar estelionato. Mas está lá de volta, em cumprimento
ao que diz a Constituição. Mais: na mesma ocasião, e no mesmo local, a
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro deu posse a quatro deputados
que se encontram, fisicamente, presos na Penitenciária de Bangu e a mais
um detido em prisão domiciliar. Ou seja — o sujeito não pode andar na
rua, mas pode ser deputado estadual. De novo, é o respeito religioso à
lei que produz esse tipo de depravação aberta. Parece errado, mas a
Constituição Cidadã diz que é certo. Tudo isso — Bretas, Temer, Athié,
presidiários-deputados — significa “a vitória das instituições”, segundo
nos garantem os defensores da legalidade acima de tudo. Perfeito. O
único problema é que as instituições brasileiras de hoje são um lixo.
Pode ser feio dizer isso, com certeza. Mas dizer o contrário é
simplesmente falso.