domingo, 29 de janeiro de 2017

Lava Jato pode consagrar ou arruinar Supremo


Confrontados com o descalabro exposto nos depoimentos dos 77 delatores da Odebrecht, os ministros do Supremo Tribunal Federal deveriam esquecer a Constituição e o Código Penal por um instante, para se concentrar num conto de Ernest Hemingway. Chama-se ‘As Neves do Kilimanjaro’. Começa com um esclarecimento:
“Kilimanjaro é uma montanha coberta de neve, a 6 mil metros de altitude, e diz-se que é a montanha mais alta da África”, anotou Hemingway. “O seu pico ocidental chama-se ‘Ngàge Ngài’, a Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.”
O leopardo do conto serve de metáfora para muita coisa. Tanto pode simbolizar a busca romântica pelo inalcansável como pode representar o espírito de aventura levado às fronteiras do paroxismo.
O Supremo, como se sabe, é o cume da Justiça brasileira. Seus ministros acham que estão sentados à mão direita de Deus. Num instante em que a deduragem dos corruptores confessos da Odebrecht empurra mais de uma centena de encrencados na Lava Jato para dentro dos escaninhos da Suprema Corte, cabe aos ministros interrogar os seus botões: o que fazem tantos gatunos da política no ponto mais alto do Poder Judiciário?
Num país marcado pela corrupção desenfreada, os gatunos da Lava Jato beneficados com o chamado foro privilegiado simbolizam o sentimento de impunidade cultivado pela oligarquia política. Que pode virar instituto suicida se o Supremo for capaz de dar uma resposta à altura do desafio.
Um bom começo seria a ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo, homologar até terça-feira (31) todos os acordos de delação. Isso liberaria a força-tarefa da Lava Jato para abrir os inquéritos que transformarão indícios em provas.
De resto, será necessário que o ministro sorteado para substituir Teori Zavascki na relatoria da Lava Jato se convença da importância do seu papel. Seja o seco Celso de Mello, o melífluo Ricardo Lewandowski ou qualquer outro, o novo relator precisa entender que a conjuntura cobra do STF um rigor compatível com a desfaçatez.
No futuro, quando os arqueólogos forem escavar esse pedaço da história nacional, encontrarão sob os escombros de um Brasil remoto carcaças que serão tão inexplicáveis quanto a do leopardo de Hemingway. Resta saber se serão as carcaças de gatunos suicidas ou de magistrados que não se deram ao respeito. A Lava Jato pode consagrar ou arruinar o Supremo.DO J.DESOUZA

A ÉTICA DA BANDIDAGEM

Por Maria Lucia Victor Barbosa (*)

1 de janeiro de 2017. Em penitenciárias de Manaus (AM) a Família do Norte (FDN), facção que comanda o tráfico de drogas na fronteira com a Bolívia e é ligada ao Comando Vermelho (CV), esquartejou, decapitou, arrancou corações e vísceras de 60 homens, a maioria ligada ao Primeiro Comando da Capital (PCC). Tudo foi devidamente filmado e enviado para redes sociais, cujos frequentadores consumiram avidamente a selvageria digna do Estado Islâmico.
Houve mais mortes e fugas em outros Estados, além de uma carta do PCC. Alguns trechos foram publicados na Folha de S. Paulo, de 6 de janeiro, e curiosamente neles os bandidos se referiam ao seu “código de ética” rompido, pois “a meta sempre foi lutar contra o Estado corrupto e não contra nossos irmãos mesmo que de outras organizações fossem”.
A carta terminava com o lema da poderosa organização criminosa: “paz, justiça e liberdade”, algo de tom ideológico e cínico tratando-se de degoladores, daqueles que desgraçam famílias, dos que são fonte da violência que infelicita e aterroriza cidadãos honestos.
O gigantismo dos lucros e a organização impecável do PCC e do CV são também a prova mais cabal do fracasso do Estado. Onde estavam o Executivo, o Legislativo, o Judiciário enquanto as organizações criminosas se expandiam?
Com relação ao Executivo cito excelente artigo do professor Ricardo Vélez Rodríguez, publicado no O Estado de S. Paulo de 22/10/2016. No texto Rodríguez relembra que “o empurrão inicial dado pelo brizolismo ao narcotráfico veio a ser potencializado, em nível nacional, pelos 13 anos do populismo lulopetista que simplesmente abriram as portas para o mercado de tóxicos no Brasil”.
O professor também recorda “foto de Lula, no palanque em Santa Cruz de La Sierra, com Evo Morales, ambos ostentando no peito colares feitos de folhas de coca”. A imagem simbolizou um “liberou geral” para a produção e distribuição das drogas. “Rapidamente o Brasil viu aumentar de forma fantástica a entrada da pasta-base da coca boliviana”.
Após as chacinas, demonstração de quem de fato comanda o sistema prisional, busca-se o que fazer. Algumas soluções raiam à imbecilidade como o direito de fuga e a soltura de presos. Também, para palpiteiros inconsequentes não se deve prender os que cometeram crimes menores (o que seriam crimes menores?), liberar as drogas e não construir mais prisões.
Ninguém sugeriu ao Judiciário o julgamento dos 40% dos detentos em prisão provisória. Parcerias público-privadas, diferentes de terceirizações, nas quais, a iniciativa privada constrói as prisões e administra de acordo com parâmetros estabelecidos em contrato com o poder público. Reforço considerável das Forças Armadas nas fronteiras para impedir a entrada de drogas e armas, lembrando que o papel do Exército não é o de fazer revista em presídios.
Enquanto o crime lucra e domina o país temos assistido a espetáculos dignos de uma republiqueta das bananas. Citando pouquíssimos exemplos para não alongar o artigo recordemos a cena de Renan Calheiros, então presidente do Senado e do Congresso, ao lado do na época presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, ambos rasgando a Constituição ao manter os direitos políticos de Dilma Rousseff mesmo depois desta ter recebido o impeachment.
Calheiros, que tem processos adormecidos no STF desde 2007, recentemente foi denunciado ao Supremo por Rodrigo Janot, procurador-geral da República, pelos crimes de peculato, corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Mas o senador zombou da Justiça ao se recusar a sair do cargo por ser réu. Lá permaneceu salvo por uma gambiarra jurídica feita pelo próprio STF. Seu sonho ainda deve ser a aprovação da Lei de abuso de autoridade, que o livraria junto com quase 100 políticos envolvidos na Lava Jato.  Se duvidar, Renan vira ministro da Justiça.
Na verdade, há um temor infundado dos que possuem foro privilegiado, porque enquanto o juiz Sérgio Moro, brilhante e rara exceção no mundo jurídico, tem cumprido a lei e mandado para a cadeia um número impressionante de figurões, o Supremo até agora não julgou ninguém da quase centena de políticos envolvidos na Lava Jato. E não se sabe quando isso acontecerá dada a morosidade da Justiça brasileira. Pode levar os anos suficientes para a prescrição dos crimes.
Com a morte em acidente de avião do ministro Teori Zavascki não se sabe o que acontecerá com as 77 delações premiadas da Odebrecht. Zavascki, com todo respeito pelo luto da família, não foi um herói, mas um ativista político como seus demais pares do Supremo. Por essa característica ele podia demorar anos a fio para homologar as delações, mas agora a situação está mais turva na medida em que tem que ser definido seu sucessor. Seguiremos com nossa tradicional insegurança jurídica? Nesse caso prevalecerá a ética da bandidagem.
(*) Maria Lucia Victor Barbosa é socióloga, professora, autora entre outros livros do Voto da Pobreza e a Pobreza do Voto – a ética da malandragem e América Latina – em busca do paraíso perdido. DO A,AMORIM