O mensalão, para os juízes, é um processo de 50 mil folhas. Para mim,
é matéria de memória. Maio de 2005 é um marco na política brasileira.
Mas não um relâmpago em céu azul.
É um marco porque ficou evidente, naquele mês, que o PT jamais
cumpriria uma de suas maiores promessas de campanha: ética na política.
A entrevista do então presidente Lula em Paris, tentando justificar o
mensalão, ainda menciona a responsabilidade ética do partido, mas com
uma dose de convicção tão pequena que entendi como um adeus à bandeira
do passado. Eu já havia deixado o PT e a base do governo em 2003. O
escândalo do mensalão foi, no entanto, uma tomada de consciência
popular de que a ética na coalizão do governo era só propaganda.
O termo mensalão cresceu porque foi bem escolhido. Roberto Jefferson,
ao usá-lo pela primeira vez, não ignorava o apelo popular de um
aumentativo. Na TV, as feiras de carros são anunciadas como feirão, as
lojas de atacado, como atacadão e até os estádios de futebol, Engenhão,
Barradão, Mineirão, seguem o mesmo caminho. Um setor que ainda
acreditava nas promessas do PT se sentiu traído, como se o armário do
quarto escondesse um amante: Ricardão.
Não foi um relâmpago em céu azul. Lula estava cansado de perder
eleições. Decidiu disputar em 2002 com as condições profissionais dos
adversários. Começou aí a necessidade de captar em grande escala.
Programas de TV são dispendiosos. Mulheres grávidas desfilando a
esperança, muitas câmeras, luz, gruas, tudo isso custa dinheiro.
Uma vez no poder, era preciso controlar os aliados, garantir sua
sobrevivência política e, em troca, sua fidelidade. Agora o dinheiro
corria mais fácil.
A primeira tentativa de combater o estrago do mensalão foi afirmar
que jamais existiu com rigor temporal. Não havia pagamentos mensais,
dizia a defesa. Mas que importância legal tem isso? O dinheiro era
distribuído aos líderes dos partidos amigos. O apartamento do deputado
José Janene, do PP, era chamado de pensão pelos deputados que o
frequentavam. Talvez lhes pagasse quinzenalmente. Seria apenas um
quinzenão.
Segundo a ex-mulher de Valdemar Costa Neto, em depoimento na Câmara,
ele gastou numa só noite de cassino o equivalente a US$ 300 mil. Pode
muito bem ter dado o cano nos deputados naquele mês, ou pago apenas um
vale para acalmá-los. Quem jamais saberá?
A segunda tentativa de atenuar os estragos do mensalão foi o uso da
novilíngua: eram apenas sobras de campanha, mero crime eleitoral. Tão
brando que nem poderíamos chamar esse dinheiro de caixa 2, mas de
recursos não contabilizados. Era tanto dinheiro em cena que recursos
não contabilizados não conseguiam explicá-lo. Surgiram, então,
empréstimos do Banco Rural e do BMG. O dinheiro foi emprestado por
bancos que não cobram juros nem acossam devedores. Bancos amigos.
O relatório da CPI indicou com bastante clareza de onde veio o
dinheiro: do Banco do Brasil e da Visanet. Naufragou ali a última
atenuante: o dinheiro do mensalão, num total de R$ 100 milhões, é
público.
Lembro-me como se fosse hoje do depoimento de Duda Mendonça. Ele
anunciou a alguns deputados que iria falar. E falou: recebeu dinheiro
do PT no exterior, pouco mais de R$ 10 milhões, que nunca mais
retornariam ao País.
O episódio do mensalão não evitou que Lula vencesse as eleições em
2006 e, quatro anos mais tarde, elegesse Dilma Rousseff. A força
eleitoral do PT manteve-se e as consequências políticas pareciam
neutralizadas. O dinheiro continuou fluindo em campanhas milionárias e o
partido, como os comunistas italianos, poderia até montar uma sólida
estrutura econômica alternativa. Mas as consequências políticas não
morrem tão cedo.
O julgamento do caso vai recolocá-lo na agenda política. Não acredito
que possa modificar o curso das eleições. Será apenas uma nova
dimensão a considerar. Muito se falou que a CPI do Cachoeira iria
ofuscar o julgamento do mensalão. Deve ocorrer o contrário: o
julgamento vai conferir importância à CPI do Cachoeira. A mensagem é
simples: mesmo quando não há consequências políticas imediatas, a
corrupção ainda tem toda uma batalha legal pela frente.
O PT vai se distanciar do mensalão, Dilma também. Dilma distanciou-se
da Delta, de Fernando Cavendish, mas seu governo continua a irrigar os
cofres da empresa fantástica. É compreensível a distância. No caso do
mensalão, ela nos faz crer que todo o mecanismo foi montado pelo
cérebro do ex-ministro José Dirceu, que operava num paraíso de
inocentes. No da Delta, a distância convida-nos a crer que tudo se
passou numa obscura seção goiana da empresa.
Nas paredes de cadeia sempre há esta inscrição: aqui o filho chora e a
mãe não ouve. A mãe do PAC finge que não ouve os choros da Delta.
Grande administradora, não desconfiou que a empresa que mais trabalhava
nas obras do PAC era, na verdade, um antro de picaretagem. Assim como
Lula não sabia que houve o mensalão. Todo aquele dinheiro rolando a
partir da campanha de 2002 era um milagre político. É um senhor que me
ajuda, como diria a mulher bonita vivendo súbita prosperidade. É tudo
um tecido de mentiras que ainda não se rasgou no Brasil. No mensalão
era uma agência de publicidade de Marcos Valério que despejava grandes
somas nas contas dos políticos. O nome dela era DNA. Recentemente,
foram as empresas fantasmas da Delta que realizaram essa tarefa.
Em 2005 ainda havia um mínimo de combatividade parlamentar para
buscar a verdade. Hoje nem com isso podemos contar. O mensalão
arrasta-se como um vírus mutante pela História moderna do Brasil. Mas a
corrupção não é uma fatalidade genética. E o grande equívoco de alguns
marxistas vulgares é supor que ela é um componente natural,
insuperável, diante do qual a única reação sensata é tirar proveito.
Sete anos o Brasil esperou para julgar o mensalão. Sete anos mais
vamos esperar pelo júri da Delta. E mais poderíamos esperar, não fora
para tão longa sede tão curta a vida. |