"Primeiro tem o desvio. Depois você subordina a agenda pública ao
desvio. E, por fim, você abandona a agenda pública efetivamente." Assim o
procurador da República Leonardo Freitas, que integra a força-tarefa da
Operação Lava Jato no Rio de Janeiro, define a relação de efeito e
causa entre a crise financeira do Estado e o grandioso esquema de
corrupção chefiado, segundo Justiça e MPF (Ministério Público Federal),
pelo ex-governador Sérgio Cabral (PMDB).
Em entrevista ao
UOL,
Freitas afirmou entender que o caos econômico não resultou tão somente
dos atos de corrupção em si. Segundo ele, esses crimes "sequestraram" a
gestão do Executivo fluminense com intuito de privilegiar interesses
pessoais de corruptos e corruptores, subjugando o interesse público e
provocando uma situação de "descalabro".
"Os valores que a gente
está vendo são astronômicos. São valores que competem em uma ordem de
grandeza com qualquer esquema criminoso no mundo, e isso é, sim, parte
do problema. Mas a maior fatia do bolo, a questão que eu acho mais
importante e por vezes passa despercebida, é como esse esquema parece
ter sequestrado a agenda pública do governo do Estado do Rio. Isso é uma
situação de um descalabro muito grande. Mais até do que os valores
desviados, o sequestro da agenda pública contribuiu para esse caos que a
gente vive hoje."
Na avaliação do procurador, que afirma já ter
sido eleitor de Cabral, a força-tarefa da Lava Jato ainda tem um longo
caminho a percorrer. Criado em junho de 2016, o grupo já ofereceu à
Justiça 26 denúncias contra mais de cem pessoas e levou à recuperação de
R$ 451 milhões dos mais de R$ 2 bilhões desviados. Apenas o
ex-governador, condenado em três ações penais pelo juiz Marcelo Bretas,
da 7ª Vara Federal Criminal,
foi alvo de 16 denúncias no Rio. As penas já aplicadas, considerando ainda a do juiz Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal Criminal (PR),
somam 87 anos de prisão.
A
gente não tem a menor ideia de onde vai acabar indo. Ainda estamos
longe de vislumbrar as fronteiras dessa organização criminosa. Vamos
seguir trabalhando até esgotar essa prática.
Leonardo Freitas, procurador da República
Segundo ele, as investigações da força-tarefa podem chegar a outros
setores no ano que vem, entre os quais a Prefeitura do Rio. "A gente
visualiza a Lava Jato chegando a outros setores. A gente não visualiza a
Lava Jato chegando ao fim."
Decepção com Cabral
Em
tom de decepção, Freitas afirmou já ter votado em Cabral --ele não
revelou se em 2006, quando o político chegou à chefia do Executivo, ou
em 2010, ano da reeleição. Disse ainda que, "em algum momento", o
ex-governador representou uma "esperança" para a população fluminense.
"O que eu posso dizer em relação ao Sérgio Cabral é o seguinte: eu
votei nele. Lamento a escolha que ele fez com a confiança que foi
depositada pelos eleitores do Estado do Rio de Janeiro. O cargo de
governador do Estado é uma posição de fazer muito bem para uma
coletividade enorme e necessitada como a nossa. Ele representou essa
esperança em algum momento, mas enfim... Eu lamento, mas foram as
escolhas dele."
De acordo com as investigações, o esquema de
corrupção no Estado, com prática institucionalizada de cobrança e
pagamento de propina referente a obras do governo,
começou logo após Cabral tomar posse, em janeiro de 2007.
Mesmo depois de renunciar ao cargo, em abril de 2014, ele teria
continuado a cometer crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e
organização criminosa, segundo a Lava Jato.
A defesa do político nega as acusações, mas diz reconhecer que ele fez
uso pessoal de "sobras de campanha" (caixa dois).
Consciência tranquila
Questionado se a força-tarefa havia cometido algum erro desde o começo
dos trabalhos, o procurador afirmou não existir fato algum do qual ele
possa se arrepender ou que o "incomode no plano da consciência".
Mas
a gente também é uma obra em construção. Houve erros e acertos. Muito
mais acertos do que erros, felizmente. Não acho que a gente tenha, por
enquanto, cometido algum erro essencial.
Outras frentes da Lava Jato
Cauteloso, Freitas se esquivou de todas as perguntas sobre os próximos
passos da Lava Jato no Rio, mas disse reconhecer que, em 2018, uma das
frentes de investigação diz respeito à Prefeitura do Rio de Janeiro.
As
investigações continuam e há muitas frentes abertas para 2018. Mas eu
prefiro não adiantar quais serão os focos. A prefeitura é um deles.
Luiz Ackermann/Agência O Globo
Alexandre Pinto (centro), ex-secretário municipal de Obras, em evento público ao lado de Eduardo Paes (PMDB), à dir.
Em agosto, a Polícia Federal realizou a Operação Rio 40º, etapa da Lava
Jato na qual a força-tarefa investigou esquema de cobrança e pagamento
de propina na Secretaria Municipal de Obras durante a gestão do
ex-prefeito Eduardo Paes, também do PMDB. Na ocasião, foram presos o
ex-secretário da pasta Alexandre Pinto e outros nove suspeitos. De acordo com a denúncia,
a corrupção na Secretaria Municipal de Obras era uma reprodução da chamada "taxa de oxigênio"
--percentual de 1% cobrado, durante o governo Cabral, em cima de
contratos da Secretaria de Estado de Obras e empreiteiras. Os pagamentos
eram feitos em troca de vantagens na construção do BRT Transcarioca e
na obra de despoluição da baía de Jacarepaguá, na zona oeste carioca.
Duas construtoras envolvidas no esquema, a Andrade Gutierrez e a
Carioca Engenharia, são exatamente as mesmas que, segundo a
força-tarefa, pagavam propina no âmbito do governo estadual em troca de
vantagens oferecidas pelo grupo supostamente chefiado por Cabral.
Freitas confirmou ao
UOL que o fato em questão pode não ser uma mera coincidência.
"A gente identifica alguns elementos que geram essa conexão entre esses dois fatos. A atuação das empreiteiras é um deles."
A reportagem também questionou o procurador se a Lava Jato poderá
chegar, em 2018, ao Judiciário fluminense, já que o ex-secretário de
Estado da Casa Civil Régis Fichtner,
um dos presos na Operação C'est Fini,
no mês passado, estava atuando como assessor na PGE (Procuradoria-Geral
do Estado). Antigo aliado de Cabral, Fichtner --que é advogado e possui
bom relacionamento com juízes e desembargadores-- é suspeito de ter
recebido cerca de R$ 1,5 milhão em propina.
"Prefiro não especular sobre isso", respondeu Freitas.
Confronto entre Cabral e Bretas
O procurador da República definiu como "inaceitável" a conduta de
Cabral na audiência realizada em outubro, quando o réu citou a família
de Bretas.
Na ocasião, o ex-governador discutiu com o magistrado e o acusou de buscar "projeção pessoal".
Interrogado sobre lavagem de dinheiro com aquisição de joias e pedras
preciosas, o político afirmou que Bretas teria "relativo conhecimento
sobre o assunto", já que sua "família mexe com bijuterias".
"Se
não me engano, é a maior empresa de bijuterias do Estado", completou. O
juiz então interrompeu o réu e disse que se sentia ameaçado pela
declaração. Ao fim da audiência, o MPF solicitou o deslocamento de
Cabral para um presídio federal, petição que foi aprovada pelo Juízo da
7ª Vara. A transferência, no entanto, foi vetada por decisão do ministro
do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes.
Duelo verbal entre Cabral e Bretas
"No interrogatório, o réu tem uma posição ímpar. É o melhor momento
para a autodefesa. Ele tem um espectro amplo de autodefesa. Pode falar a
verdade, pode calar a verdade e pode até mentir, falar parte da
verdade. Em nenhum cenário que eu possa vislumbrar, eu imagino que ele
possa falar da família do juiz. Ele tem um espectro enorme quando ele
está se defendendo, mas em hipótese alguma a família do juiz deve estar
presente. Isso é inaceitável", avaliou Freitas.
No mês passado, segundo reportagem da "TV Globo", um relatório da Polícia Federal indicou que
Cabral estaria financiando dossiês contra Bretas e outros personagens da Lava Jato.
Com isso, informações privilegiadas, como a do ramo de atuação da
empresa da família de Bretas, estariam supostamente chegando ao
conhecimento do réu na Cadeia Pública José Frederico Marques, em
Benfica, na zona norte do Rio. A defesa do ex-governador negou a
informação e disse que se tratava de "mentira criada com nítido
propósito de criar intriga entre o ex-governador e o magistrado".
Questionado se se sentia ameaçado por conta da suposta elaboração de dossiês, Freitas respondeu que não comentaria o assunto.
Eleições 2018
O procurador da força-tarefa da Lava Jato disse esperar que o trabalho
realizado desde o ano passado "contribua para desvendar a condição de
alguns agentes políticos e que eles não sejam eleitos novamente", em
referência aos denunciados por crimes como corrupção, lavagem de
dinheiro e organização criminosa.
"Se isso vai surtir efeito em 2018 ou mais para frente, eu não arrisco falar."
Freitas ressaltou, no entanto, que o objetivo dos investigadores não é
"quebrar um paradigma" eleitoral e que uma possível mudança deve ser
encarada "em um plano ainda maior do que somente as eleições de 2018".
"Talvez, nessa ordem de ideias, tenha chegado o momento de a corrupção
ser o assunto a ser enfrentado na nossa democracia."
"No interrogatório, o
réu tem uma posição ímpar. É o melhor momento para a autodefesa. Ele tem
um espectro amplo de autodefesa. Pode falar a verdade, pode calar a
verdade e pode até mentir, falar parte da verdade. Em nenhum cenári... -
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