Ao
lavar as mãos no caso de Aécio Neves, autorizando o Senado a anular
sanções judiciais impostas ao senador tucano, o Supremo Tribunal Federal
tinha absoluta convicção de que abriria um precedente que seria
aproveitado por Assembleias Legislativas de todo país para blindar
deputados estaduais às voltas com inquéritos criminais. Isso ficou
evidente nos debates travados no plenário da Suprema Corte. O
blog selecionou no site do próprio Supremo trechos que não deixam dúvida (confira nos vídeos que ilustram este post).
Graças
ao 'Efeito Aécio', um deputado estadual do Mato Grosso ganhou a
liberdade e dois parlamentares afastados recuperaram os mandatos no Rio
Grande do Norte. Na última sexta-feira, a Assembleia Legislativa do Rio
de Janeiro jogou lenha na fogueira em que arde o prestígio do Supremo ao
abrir a cela
onde estavam presos três deputados estaduais do PMDB fluminense,
restituindo-lhes os mandatos que haviam sido suspensos por decisão do
Tribunal Regional Federal da 2ª Região.
Um dos ministros do
Supremo, Marco Aurélio Mello, declarou: “Não sei como surgiu essa ideia
de que nossa decisão abrangeria deputados estaduais, e quem sabe até
vereadores. Eu fiquei pasmo.” Outro ministro, Alexandre de Moraes,
mandou divulgar o resumo da decisão do julgamento que favoreceu Aécio.
Chamado tecnicamente de acórdão, o documento pode ser lido
aqui.
Faz referência explícita a “parlamentares federais”. Algo que contrasta
com o que ficou decidido no julgamento, como será demonstrado a seguir.
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Protesto e confronto marcam votação sobre prisão de deputados no Rio12 fotos
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17.nov.2017
- Manifestante pega bomba de gás lacrimogênio do chão e revida ataque
aos policiais durante a confusão nas redondezas da Alerj (Assembleia
Legislativa do Estado do Rio de Janeiro)
VEJA MAIS > Imagem: jose lucena/Futura Press/Folhapress
Para
entender a encrenca, é preciso rememorar dois julgamentos. Num,
realizado em 5 de maio de 2016, os 11 ministros que integram o plenário
do Supremo decidiram, por unanimidade, afastar o então deputado Eduardo
Cunha da presidência da Câmara e do exercício do mandato. Noutro,
ocorrido no último dia 17 de outubro, os ministros julgaram uma ação
movida por três partidos aliados de Cunha: PP, PSC e Solidariedade. Na
ação, as legendas sustentavam que a suspensão do mandato de um
parlamentar deveria ser submetida à apreciação da respectiva Casa
Legislativa.
Ignorada por mais de um ano, a ação dos aliados de
Cunha foi desengavetada pela ministra Cármen Lúcia, presidente do
Supremo, por pressão do Senado, que ameaçava descumprir decisão judicial
imposta a Aécio Neves. Gravado numa conversa vadia com o delator
Joesley Batista, na qual achacava o dono da JBS em R$ 2 milhões, o
senador tucano teve o mandato suspenso pela Primeira Turma do STF, que
ordenou também, entre outras providências, o seu recolhimento domiciliar
noturno.
Numa sessão constrangedora, os ministros do Supremo
recuaram da decisão que haviam tomado em relação a Cunha. Para beneficar
Aécio, decidiram, por 6 votos a 5, que sanções cautelares contra
parlamentares deveriam ser submetidas ao aval da respectiva Casa
Legislativa em 24 horas. Coube ao ministro Edson Fachin relatar a ação
desengavetada para acudir Aécio. Num voto cirúrgico, Fachin ressaltou
que não havia dúvidas quanto aos poderes do Supremo para decretar
medidas cautelares contra congressistas. Lembrou que a causa já fora
decidida quando Cunha teve o mandato de deputado suspenso por decisão
unânime do Supremo. Por que mudar o entendimento?
Fachin leu
trechos do voto do relator do caso Cunha, o ministro Teori Zavaschi,
morto em acidente aéreo. Incluiu na sua leitura um trecho no qual
Zavaschi citara um voto antológico da ministra Cármen Lúcia. Foi
proferido em 22 de agosto de 2006. Neste voto, a atual presidente do
Supremo havia indeferido o pedido de liberdade de um deputado estadual
de Rondônia acusado de corrupção. Para manter o parlamentar atrás das
grades, Cármen Lúcia desconsiderou sua imunidade.
A posição da
ministra prevaleceu na Primeira Turma do Supremo por 3 votos a 2. E o
então deputado rondoniense, acusado de comandar uma quadrilha que
desviara R$ 50 milhões dos cofres estaduais, ficou preso. A Assembléia
de Rondônia, apinhada de cúmplices do preso, foi impedida de anular a
ordem de prisão. No vídeo abaixo, você assiste ao trecho do voto de
Zavascki no caso Cunha, que Fachin fez questão de injetar no julgamento
que favoreceu Aécio, demonstrando que, do ponto de vista penal, os
mandatos federais e estaduais estão sujeitos às mesmas tormentas.
Ao
recordar o voto de Zavascki sobre Cunha, Fachin realçou também os
trechos em que o colega morto dera ênfase a duas “competências” que a
Constituição reserva ao Legislativo. Fachin abriu aspas para Zavascki:
“Primeiro, a competência para resolver sobre a prisão de seus membros
caso tenham sido eles detidos em flagrante por crime inafiançável e,
segundo, para sustar o andamento de ação penal que porventura tenha sido
recebida contra senador ou deputado por crime ocorrido após a
diplomação.”
Fachin prosseguiu na citação: “Fora dessas hipóteses,
acrescentou o ministro Teori Zavascki, no que foi seguido por todos
nós, as investigações em processos criminais deflagrados contra
parlamentares haverão de transcorrer ordinariamente, sem qualquer
interferência do Poder Legislativo, inclusive quanto à execução das
demais medidas cautelares previstas no ordenamento…”
Ao endossar a
posição de Zavascki, o ministro Dias Toffoli disse que cogitara afastar
Eduardo Cunha apenas da presidência da Câmara, preservando o seu
mandato. Rendeu-se, porém, aos argumentos do relator. Mas fez questão de
anotar a ''excepcionalidade'' do fato. Ao mencionar as consequências da
decisão, deixou ainda mais explícita a vinculação do veredicto com os
Estados e até com os municípios. Evocou o colega Marco Aurélio.
Disse
Toffoli: “Como sempre lembra o ministro Marco Aurélio, um espirro desta
Corte cria e verbaliza (sic) em todo um país. Nós temos mais de 5.500
municípios, 5.500 câmaras de vereadores, 26 Assembleias Legislativas,
uma Câmara Legislativa no Distrito Federal. Essa atuação de suspender o
mandato popular por circunstâncias fundamentadas há de ocorrer em
circunstâncias que sejam realmente as mais necessárias…”. Veja a
manifestação de Toffoli abaixo:
O
artigo 53 da Constituição determina que deputados e senadores só podem
ser presos “em flagrante de crime inafiançável.” Nessa hipótese, o
processo tem de ser enviado ao Senado ou à Câmara em 24 horas. Deputados
e senadores têm a prerrogativa de confirmar ou revogar a prisão. As
constituições dos Estados reproduzem esta norma, estendendo a mesma
proteção aos deputados estaduais.
No caso de Rondônia, relatado
por Cármen Lúcia, o deputado fora encaminhado ao xadrez por ordem do
Superior Tribunal de Justiça. Pedira ao Supremo que revogasse a prisão
sob dois argumentos: 1) não ocorrera o flagrante; e 2) a ordem de prisão
não havia sido apreciada pela Assembleia rondoniense. Cármen Lúcia dera
de ombros. Alegara que o caso era excepcional, pois o esquema de
corrupção envolvia 23 dos 24 deputados estaduais com assento na
Assembleia.
Ao engrossar o coro contra Cunha, também os ministros
Gilmar Mendes e Celso de Mello citaram questões locais. Gilmar adicionou
à encrenca de Rondônia o exemplo do escândalo que envolveu o
ex-governador José Roberto Arruda e a Câmara Distrital de Brasília. O
decano Celso disse que afastamentos de governadores, prefeitos e
parlamentares estaduais tornaram-se corriqueiros.
O ministro
Ricardo Lewandowski, que presidia o Supremo quando Cunha foi afastado,
ecoou Celso de Mello: “Eu trouxe aqui uma extensa lista de afastamentos
de presidentes de assembleias legislativas, de prefeitos, em sede de
ações penais, que eu tenho examinado quando sou instado a,
eventualmente, suspender a liminar.” Absteve-se de enumerar todos os
casos “devido ao adiantado da hora”. Repare no vídeo abaixo:
A
despeito do esforço de Fachin para tentar demonstrar aos colegas que
uma mudança de posição não soaria bem, o Supremo optou por lavar as mãos
no caso de Aécio. E o Senado, com a rapidez de um raio, devolveu o
mandato ao senador tucano, livrando-o do recolhimento domiciliar
noturno. O placar da votação foi de 44 a 26, apenas três votos além do
mínimo necessário. Ficou entendido que, insatisfeitos com o foro
privilegiado, os congressistas almejam a blindagem absoluta. E o Supremo
auxilia no esforço para ''estancar a sangria''.
Coube a uma
constrangida Cármen Lúcia dar o voto de desempate na sessão em que o
Supremo concedeu a Aécio um tratamento que sonegara a Cunha. Ao votar, a
presidente do Supremo soou desconexa. A suspensão do mandato do
parlamentar precisa ser apreciada pela Casa Legislativa, disse ela. O
mesmo não se aplica às outras sanções cautelares previstas no Código
Penal —entre elas o recolhimento domiciliar noturno.
A
manifestação de Cármen Lúcia acirrou os ânimos da banda pró-Aécio. Autor
do primeiro voto que divergira do relator Fachin, o ministro Alexandre
de Moraes afirmou que o recolhimento noturno afetaria o exercício do
mandato. Em nova evidência de que a decisão do Supremo teria reflexos
nos Estados, o ministro Marco Aurélio foi ao microfone para enfatizar:
“A nossa decisão vai repercutir nos tribunais de Justiça quanto ao
julgamento dos estaduais.'' Veja a intervenção de Marco Aurélio no vídeo
abaixo:
As
observações de Marco Aurélio destoam da declaração feita por ele sobre o
desdobramento do caso Aécio no Rio de Janeiro. “Não sei como surgiu
essa ideia de que nossa decisão abrangeria deputados estaduais, e quem
sabe até vereadores. Eu fiquei pasmo.” A surpresa do ministro não orna
com o que se passou na sessão do Supremo. Em meio a uma atmosfera de
feira livre, o decano Celso de Mello interveio para sugerir os termos da
proclamação de um resultado que consolidasse a maioria de 6 a 5 em
favor da tese que interessava a Aécio.
Em condições normais,
caberia a Cármen Lúcia, na condição de presidente, ditar o resultado da
votação. Mas como o impasse já se prolongava por quase uma hora, Celso
de Mello tomou, por assim dizer, as rédeas da sessão. A certa altura, em
nova evidência de que os ministros do Supremo não ignoravam os reflexos
que a decisão teria nos Estados, o ministro Luiz Fux interveio para
recordar o que dissera Marco Aurélio minutos antes. Fux sugeriu a Celso
de Mello uma redação genérica para o acórdão do Supremo. Nessa versão,
medidas cautelares que interferissem direta ou indiretamente no
exercício dos mandatos deveriam ser submetidas ''à Casa legislativa
correspondente'', não à Câmara ou ao Senado. Desse modo, declarou Fux,
''vai valer pra tudo.'' Assista abaixo:
Ficou
combinado que a proclamação rabiscada por Celso de Mello em cima da
bancada seria passada a limpo após a sessão e entregue a Alexandre de
Moraes. Primeiro magistrado a proferir um voto divergente da posição do
relator Fachin, caberia a Moraes elaborar o acórdão. Nesse vaivém,
brotou no texto uma expressão que não fora ouvida no plenário:
''parlamentares federais.'' Não é preciso ser um jurisconsulto para
prever que a blindagem dos caciques do PMDB na Assembleia do Rio chegará
Supremo.
A Associação de Magistrados Brasileiros já anunciou que
recorrer ao STF para tentar derrubar os escudos estaduais. Será
divertido acompanhar o julgamento pela TV Justiça. Conforme já comentado
aqui, o Supremo virou ex-Supremo ao evoluir do rigor contra Cunha para a
suavidade com Aécio (relembre o contorcionismo dos ministros no vídeo
do rodapé). Os ministros terão de fazer mágica para construir uma
terceira jurisprudência para diferenciar os corruptos estaduais. Tirar
coelhos da cartola talvez não seja o bastante. Será preciso tirar
cartolas de dentro do coelho.