sábado, 24 de fevereiro de 2018
Artigo de Bruno Carpes e Diego Pessi, publicado na Gazeta do Povo
com o título "Crise, intervenção e o flagelo dos 'especialistas'",
aborda a cantilena de má-fé dos "especialistas" sempre destacados pela
Globo:
A
intervenção federal no estado do Rio de Janeiro se insere numa
perspectiva de crise, tal como definida pelo filósofo Mário Ferreira dos
Santos, mais especificamente no que diz respeito à corrupção do ciclo
cultural, à tensão entre vetores de conservação e destruição e às fases
cráticas (de cratos, “poder”) da história, cujo ciclo de decadência
compreende, em seus estágios finais: plutocracia (a sociedade é dirigida
pelos dominadores do dinheiro); argirocracia (o dinheiro é denominador
comum de todas as coisas e o Estado se transforma num amplo negócio,
acabando por desmoralizar-se, provocando agitações que levam à fase
seguinte); oclocracia (domínio “das vontades” e da desordem destruidora)
e cesariocracia, quando o cratos é entregue a homens poderosos,
apoiados nas forças militarizadas da sociedade como único meio de
salvação à catástrofe. Seria excesso de otimismo esperar de nossos
“especialistas” uma análise centrada no cotejo da história recente do
Brasil com essas fases cráticas (que não se sucedem, necessariamente,
com exatidão mecânica) ou um debate sobre a corrupção do ciclo cultural.
Entretanto, deixando de lado o aspecto histórico e restringindo a
questão ao plano prático, a intervenção federal bem poderia ser debatida
sob o prisma da dinâmica de contrainsurreição aplicada à narcoguerrilha
urbana, escrutinada à luz dos critérios de avaliação inicial para
emprego das Forças Armadas, tais como transformação do ambiente
político-social, cerceamento das fontes de receita, isolamento de apoio
externo às forças irregulares e privação de seus refúgios ativos (para
citar apenas quatro dos quase 40 itens elencados por Alessandro Visacro
em sua obra clássica sobre combate irregular).
Desgraçadamente,
a tônica dos debates públicos em torno da intervenção federal resume-se
a: 1. minimizar a gravidade da situação, atribuindo à mídia um
alarmismo histérico e, portanto, injustificado; 2. de forma assimétrica,
condenar de antemão qualquer possível ação do Estado como ilegítima e
violadora dos direitos civis, sem mencionar as violações efetivamente
cometidas pelos criminosos; 3. Reafirmar o fracasso da “guerra às
drogas”, sugerindo, muito vagamente, que sua descriminalização abriria
caminho para um novo mundo de paz e harmonia. Nele, traficantes que,
armados de fuzil, hoje caçam policiais e eliminam concorrentes em
execuções sumárias (transmitidas quase que em tempo real pelas redes
sociais) irão depor as armas e se adaptar às restrições e livre
concorrência do mercado formal, quem sabe até (suprema realização!)
pagando tributos...
Raras
são as menções aos mais de 130 policiais assassinados no Rio de Janeiro
apenas no ano de 2017, muitos deles executados com requintes de
crueldade, como o sargento Fábio Cavalcante e Sá, morto diante do
próprio pai, sob os gritos “Mata! Mata! É PM”. Nenhuma palavra é dita
sobre as crianças vitimadas pela explosão de violência urbana, como a
pequena Emily Sofia, morta aos 3 anos numa tentativa de assalto ocorrida
na zona norte do Rio de Janeiro há menos de duas semanas. Os
apologistas do desarmamento, que se escandalizam ante a mera perspectiva
de que um pai de família adquira um revólver para defesa pessoal, fazem
cara de paisagem e se mantêm em obsequioso silêncio quando se trata de
exigir a intervenção da força pública para desarmar traficantes que
desfilam impunemente ostentando fuzis AK-47 (segundo noticiado, cerca de
250 fuzis apreendidos em apenas cinco meses no ano de 2017, 60 deles no
Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro). Silêncio idêntico, aliás,
àquele dos autoproclamados defensores dos direitos humanos, quando, em
setembro de 2017, traficantes submeteram moradores da Rocinha a revistas
visando à identificação de possíveis delatores, expulsando da própria
casa aqueles que julgavam suspeitos.
O
cidadão brasileiro tornou-se refém de uma oligarquia que há décadas vem
servindo a ideologias e interesses espúrios, negando a crueza da
realidade circundante e recusando amparo às vítimas da violência. Diante
de índices que fazem do Brasil campeão mundial em número de homicídios,
essa casta insular, “enfurnada, em seus próprios valores, maneirismos e
vocabulário”, cuja opinião detém “o monopólio sobre os meios de
expressão e circulação de ideias” (tal como denunciado por Flávio Gordon
no monumental A Corrupção da Inteligência), insiste em brandir um
espantalho: o Brasil tem um sistema “punitivista”, do qual resulta, como
subproduto, o “encarceramento em massa”.
Raras
são as menções aos mais de 130 policiais assassinados no Rio de Janeiro
apenas no ano de 2017, muitos deles executados com requintes de
crueldade, como o sargento Fábio Cavalcante e Sá, morto diante do
próprio pai, sob os gritos “Mata! Mata! É PM”. Nenhuma palavra é dita
sobre as crianças vitimadas pela explosão de violência urbana, como a
pequena Emily Sofia, morta aos 3 anos numa tentativa de assalto ocorrida
na zona norte do Rio de Janeiro há menos de duas semanas. Os
apologistas do desarmamento, que se escandalizam ante a mera perspectiva
de que um pai de família adquira um revólver para defesa pessoal, fazem
cara de paisagem e se mantêm em obsequioso silêncio quando se trata de
exigir a intervenção da força pública para desarmar traficantes que
desfilam impunemente ostentando fuzis AK-47 (segundo noticiado, cerca de
250 fuzis apreendidos em apenas cinco meses no ano de 2017, 60 deles no
Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro). Silêncio idêntico, aliás,
àquele dos autoproclamados defensores dos direitos humanos, quando, em
setembro de 2017, traficantes submeteram moradores da Rocinha a revistas
visando à identificação de possíveis delatores, expulsando da própria
casa aqueles que julgavam suspeitos.
O
cidadão brasileiro tornou-se refém de uma oligarquia que há décadas vem
servindo a ideologias e interesses espúrios, negando a crueza da
realidade circundante e recusando amparo às vítimas da violência. Diante
de índices que fazem do Brasil campeão mundial em número de homicídios,
essa casta insular, “enfurnada, em seus próprios valores, maneirismos e
vocabulário”, cuja opinião detém “o monopólio sobre os meios de
expressão e circulação de ideias” (tal como denunciado por Flávio Gordon
no monumental A Corrupção da Inteligência), insiste em brandir um
espantalho: o Brasil tem um sistema “punitivista”, do qual resulta, como
subproduto, o “encarceramento em massa”.
Nunca é
demais lembrar que um brasileiro é morto a cada nove minutos(cerca de 60
mil por ano) e que, do total desses casos, não mais que 8% são objeto
de denúncia (segundo o Diagnóstico da Investigação de Homicídios da
Enasp). Como falar em punitivismo se, no brevíssimo período de pouco
mais de 15 anos, cerca de 700 mil homicídios cometidos no Brasil nem
sequer foram denunciados? Como falar em punitivismo quando, apenas no
ano de 2016, foram registrados mais de 3 assaltos por minuto no país
(totalizando 1.726.757 roubos) e quando se estima que apenas um em cada
53 desses casos tem a autoria esclarecida no Rio de Janeiro? Somem-se a
isso os mais de 130 estupros registrados por dia (cerca de 50 mil por
ano) e os mais de 2,5 mil latrocínios cometidos anualmente e resta claro
que o verdadeiro problema que enfrentamos se chama impunidade.
Por
outro lado, de acordo com o último relatório do Conselho Nacional do
Ministério Público (o Infopen peca em razão da imprecisão na contagem de
presos pelos estados, conforme exposto pioneiramente pela Escola de
Altos Estudos em Ciências Criminais e recentemente pelo CNJ), o Brasil
tinha, em 2015 (último ano divulgado), o total de 456.108 pessoas
efetivamente presas – isto é, provisórios e no regime fechado. Isso
deixava o país na 59.ª posição mundial em números proporcionais. Em
relação ao número de presos provisórios para cada 100 mil habitantes, o
Brasil figura em 117.ª posição no ranking mundial, segundo o site que
computa os dados prisionais globais. Teses desviantes como a do
“encarceramento em massa” computam como “presos” apenados que se
encontram nos regimes semiaberto e aberto (inclusive aqueles em
recolhimento domiciliar sem fiscalização, ou com tornozeleiras
eletrônicas desfuncionais, que se encontram vinculados no sistema
eletrônico a ambos os regimes brandos – chamados de “presos na nuvem”
pelo órgão administrativo prisional).
Quando
alguém – como vimos recentemente – menciona a existência de 750 mil
“presos” e 350 mil “presos provisórios” no país, sem esclarecer que está
a apontar como “presos” indivíduos que não estão encarcerados, tampouco
correlacionar esses números aos altíssimos índices de criminalidade
registrados, o faz por flagrante ignorância ou imperdoável má-fé. No afã
de comprovar a “fúria punitivista” do sistema de persecução criminal
brasileiro, omite-se inclusive o fato de que o país adota sistema
progressivo de pena extremamente leniente, permitindo a mudança de
regime prisional com o cumprimento de apenas um sexto da pena. Nossa
vizinha Argentina apenas permite a progressão após cumprimento de metade
da pena. Chile e Uruguai, que não adotaram o sistema progressivo,
permitem o livramento condicional após cumprido período que varia entre e
a metade e dois terços da pena. Aqueles que clamam aos céus pela adoção
de penas alternativas à prisão não esclarecem que, atualmente, em
apenas 2,67% dos tipos penais o juiz é obrigado legalmente a estipular o
regime inicial fechado para cumprimento de pena. Enquanto isso, 78,19%
dos intervalos de pena possibilitam que o acusado (por meio de
benefícios legais) não sofra qualquer risco de prisão. O vale-tudo para
justificar a narrativa de uma “Justiça Penal repressora, seletiva e
estigmatizante”, tal como referido em recente “manifesto
antipunitivista”, remete a uma adaptação da famosa blague de Groucho
Marx: “Estes são meus fatos. Se você não se convencer com eles, crio
outros”.
O
Direito é a força que controla a força e, quando enfraquecido, leva
inevitavelmente ao barbarismo. A realidade do Brasil segue essa regra,
magistralmente exposta por Gilberto Callado de Oliveira na obra
Garantismo e Barbárie. O tempo dirá se estamos diante de mais uma etapa
em nossa marcha rumo ao colapso civilizacional ou do início de um
processo de refluxo histórico, apto a reverter a degeneração do ciclo
cultural. Uma coisa é certa: a intervenção federal nos traz à lembrança o
dever do Estado de promover a paz social, ainda que tardiamente. Deve
servir, sobretudo, como alerta para que se abandone a torpe ideologia
que nos trouxe até aqui, pois continuar fazendo a mesma coisa na
expectativa de obter resultados diferentes é a definição einsteniana de
insanidade.
Bruno
Carpes é promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio
Grande do Sul e membro do Núcleo de Pesquisa e Análise da Criminalidade
da Escola de Altos Estudos em Ciências Criminais. Diego Pessi é promotor
de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul e
coautor de “Bandidolatria e Democídio – Ensaios Sobre Garantismo Penal e
Criminalidade no Brasil”.DO O.TAMBOSI