Sergio
Moro costuma dizer que as críticas às prisões preventivas da Lava Jato
revelam a existência no Brasil de uma “sociedade de castas”, marcada
pela ausência de “igualdade republicana”. Ao colocar José Dirceu em
liberdade, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal potencializou a
avaliação do juiz da Lava Jato. Destrancou-se a cela sob o argumento de
que a prisão de Dirceu representa um constrangimento ilegal. Alegou-se
que, embora ele tenha sido condenado por Moro, as sentenças contra o
marquês do PT ainda não foram confirmadas por um tribunal de segunda
instância. Por esses critérios, o Judiciário precisa libertar outros 221
mil brasileiros. São sub-Dirceus, presos provisórios que, segundo o
Conselho Nacional de Justiça, mofam na cadeia à espera de julgamento.
Apenas
dois detalhes diferenciam Dirceu dos sub-Dirceus. O ex-chefe da Casa
Civil de Lula já coleciona duas sentenças. Juntas, somam 32 anos e um
mês de prisão. Dispõe da melhor defesa que o prestígio e o dinheiro
podem bancar. Os outros 221 mil presos provisórios ainda não passaram
pelo crivo de nenhum juiz. Permanecem atrás das grades sem sentença
porque são pobres e não dispõem de advogados competentes para lembrar ao
Judiciário que seus processos mofam nos escaninhos. Em janeiro, a
ministra Cármen Lúcia, presidente da Suprema Corte, defendeu um “choque
de jurisdição” para interromper o constrangimento ilegal a que estão
sendo submetidos os presos da casta esquecida.
Dirceu
ganhou a liberdade por um placar de 3 a 2. Um dos que votaram pela
abertura da cela foi Dias Toffoli. Indicado para o Supremo por Lula, o
ministro foi subchefe de Assuntos Jurídicos da Casa Civil na época em
que a pasta era comandada por Dirceu. Entretando, guiando-se por
autocritérios, Toffoli não se considera impedido de participar de
julgamentos envolvendo o ex-chefe. Mandou soltá-lo por acreditar que são
pequenas as chances de Dirceu voltar a praticar crimes. Realçou, de
resto, que a prisão preventiva é ''uma antecipação da pena''.
Toffoli
deu de ombros para o relator da Lava Jato, ministro Edson Fachin, que
ecoara minutos antes palavras de Sergio Moro: “Entendo que a manutenção
da prisão preventiva do paciente [Dirceu] encontra-se plenamente
justificada pela lei e pela jurisprudência desta Corte, inclusive desta
Segunda Turma. Rememoro que, para esta Segunda Turma, é justificada a
prisão preventiva quando fundada na garantia da ordem pública, em face
do risco concreto de reiteração delitiva…”
Chama-se Ricardo
Lewandowski o ministro que proferiu o segundo voto a favor da soltura de
Dirceu. Em agosto de 2007, quando a denúncia da Procuradoria sobre o
escândalo do mensalão foi convertida pelo Supremo em ação penal,
Lewandowski discordou do então relator Joaquim Barbosa quanto ao
acolhimento da denúncia contra Dirceu e José Genoino por formação de
quadrilha. Terminada a sessão, Lewandowski foi jantar com amigos num
restaurante brasiliense chamado Expand Wine Store. Em dado momento,
soou-lhe o celular. Era o irmão, Marcelo Lewandowski. O ministro
levantou-se da mesa e foi para o jardim externo do restaurante.
A
repórter Vera Magalhães, acomodada em mesa próxima, escutou Lewandowski
declarar coisas assim: “A imprensa acuou o Supremo. […] Todo mundo votou
com a faca no pescoço.” Ou assim: “A tendência era amaciar para o
Dirceu”. O ministro deu a entender que, não fosse pela “faca no
pescoço”, poderia ter divergido muito mais de Barbosa: “Não tenha
dúvida. Eu estava tinindo nos cascos.”
Na Segunda Turma,
Lewandowski tiniu a favor de Dirceu de forma aguda. Deu razão a Toffoli.
Declarou que prisões como a de Dirceu, escoradas apenas em sentenças de
primeira instância, são vedadas pela Constituição. “A prisão preventiva
dilatada no tempo, por quase dois anos, afronta o princípio da
razoabilidade e da proporcionalidade”, acrescentou. Suprema ironia: na
legião de sub-Dirceus, há presos encarcerados a 974 dias —são mais de
dois anos e meio em cana sem uma mísera sentença condenatória. Pior: na
grossa maioria dos casos, não há vestígio de uma toga que esteja tinindo
nos cascos para reverter o flagelo.
O
terceiro voto a favor de Dirceu foi proferido por Gilmar Mendes. O
ministro havia vaticinado em fevereiro: ''Temos um encontro marcado com
essas alongadas prisões de Curitiba''. Reconheceu que as acusações que
pesam contra Dirceu são graves. Mas concordou com Toffoli e Lewandowski,
seu desafeto. “Não é o clamor público que recomenda a prisão
processual. Ainda que em casos chocantes, a prisão preventiva precisa
ser necessária, adequada e proporcional. Aqui, temos um condenado ainda
em presunção de inocência”, enfatizou.
Gilmar queixou-se dos
procuradores da força-tarefa da Lava Jato que, horas antes, anunciaram a
apresentação de nova denúncia contra Dirceu. O ministro enxergou na
iniciativa uma tentativa pueril de constranger o Supremo. “Se nós
devêssemos ceder a esse tipo de pressão, quase que uma brincadeira
juvenil —são jovens que não têm a experiência institucional nem vivência
institucional. Por isso, fazem esse tipo de brincadeira— se nós
cedêssemos a esse tipo de pressão, nós deixaríamos de ser Supremo.
Curitiba passaria a ser o Supremo. Não se pode imaginar que se pode
constranger o Supremo Tribunal Federal, porque esta Corte tem história
mais do que centenária. Ela cresce nesses momentos. Creio que hoje este
tribunal está dando lição ao Brasil.”
Crítico contumaz do
Ministério Público, Gilmar encontrou na nova investida da Lava Jato
contra Dirceu ótima matéria-prima. O próprio procurador Deltan
Dellagnol, coordenador da força-tarefa de Curitiba, admitiu que a
denúncia foi antecipada por conta do julgamento do pedido de habeas
corpus de Dirceu. Até ministros que não integram a Segunda Turma do
Supremo consideraram a iniciatica inoportuna. Mas Gilmar soou
contorverso quando disse que a libertação de Dirceu agigantou o Supremo e
ofereceu uma lição ao Brasil. Como a decisão não foi unânime, a plateia
pode considerar que o decano Celso de Mello, único a votar a favor da
tranca além do relator Fachin, oferece ensinamento mais adequado.
Onde
Gilmar enxerga abuso, o decano vê um rigor necessário, compatível com a
magnitude do crime. “Não fosse a ação rigorosa, mas necessária do Poder
Judiciário, é provável que a corrupção e lavagem de dinheiro estivessem
perdurando até o presente momento”, disse Celso de Mello. “O fato é
que, quer sejam os crimes violentos ou não ou crimes com graves danos ao
erário, a prisão cautelar justifica-se para interrompê-los e, o que é
mais importante, para proteger a sociedade e outros indivíduos de sua
reiteração.”
Escorando-se em informações de Sergio Moro, Celso de
Mello recordou que Dirceu tripudiara do Supremo. “O mais perturbador em
relação a José Dirceu de Oliveira e Silva consiste no fato de que
recebeu propina inclusive enquanto estava sendo julgada pelo plenário do
Supremo Tribunal Federal a ação penal 470, o mensalão, havendo registro
de recebimentos pelo menos até 13 de novembro de 2013. Nem o julgamento
condenatório pela mais alta Corte do país representou fator inibitório
da reiteração criminosa, embora em outro esquema ilícito. A necessidade
da prisão cautelar decorre ainda do fato de José Dirceu de Oliveira e
Silva ser recorrente em escândalos criminais”.
Ao discorrer sobre
sua teoria das castas, Moro costuma dizer que os reparos às prisões
preventivas da Lava Jato embutem “o lamentável entendimento de que há
pessoas acima da lei.” A presença de 221 mil sub-Dirceus no sistema
prisional reforça o fenômeno. No Paraná, onde está presa a turma do
petrolão, 48,6% da população carcerária é composta de presos
provisórios. Em Sergipe, os sem-sentença somam 82% dos presos. Em
Alagoas, 81%. Um acinte.