Vi
ontem na televisão o advogado Pedro Abramovay. Em breve, ele estará
ensinando como se cuida de espinhela caída, unha encravada, disenteria e
dores de amores. No Jornal Nacional, ele opinava sobre as propostas
para um Novo Código Penal, mas também oferece consultoria sobe combate
às drogas — ou a falta dele, que é a sua proposta, mas só para “pequenos
traficantes” — e é especialista em segurança pública.
Abramovay
afirmou uma coisa grave, séria. Como está falando na TV, é sinal de que
tem credibilidade — ou, ao menos, lhe dão a dita-cuja. Segundo ele, quem
responde pela queda de mais de 80% no número de jovens mortos em São
Paulo ao longo de 10 anos é o PCC. Ele não disse o nome do grupo — ao
menos não saiu no jornal O Globo. Lá está que é uma facção criminosa.
Eu
continuo interessado no assunto e aguardo as provas. O tema é tão sério
que não pode ficar assim, por isso mesmo… Se ele não as apresentar, e
acho que não vai, começarei a suspeitar que está fazendo proselitismo de
olho nas urnas. Como não é candidato (que eu saiba), então pode estar
atuando para quem é — agora ou em 2014.
Não se
trata de matéria de opinião, o que todo mundo tem. Achismo bom é o das
pessoas da rua, aquelas que antigamente se chamavam “os populares”. Já
que falou como um “impopular”, um “especialista”, supõe-se que seu
discurso se ancore em, no mínimo, hipóteses plausíveis, talvez o máximo a
que se possa chegar em ciências humanas. Cadê os dados?
Talvez
“uma fonte muito boa” tenha contado algo a ele, como vivem contando pra
mim… Não saio alardeando por aí porque é preciso ter responsabilidade,
não é? Se não reúne as evidências — e óbvio que ele não as tem —, que ao
menos se encarregue de buscá-las. Mascarado do PCC falando com voz de
pato não vale. Isso o Programa do Gugu já fez no passado… De lá pra cá,
avançamos um pouco.
Eu me
interesso pelo pensamento desse moço porque a gente nota que ele
consegue ser muito convincente — e eu também quero ser convencido, ué….
Quando foi demitido pela presidente Dilma, ainda na Secretaria Nacional
de Justiça e prestes a assumir a Senad (Secretaria Nacional de Polícias
Sobre Drogas), havia defendido que se deixasse de prender os “pequenos
traficantes”.
Como já
temos uma lei que não prende consumidores — basta lê-la, e, pois, a
campanha “É Preciso Mudar”, que ele orienta, mente a respeito —, eu
gostaria de saber o que ele entende por “pequeno traficante” e como isso
seria definido. Os policiais andariam com uma balança de precisão para
pesar as drogas, por exemplo? Ficaria ao arbítrio de cada policial
definir quem trafica e quem não trafica?
A proposta
é do balacobaco porque, uma vez definida a quantidade que caracteriza a
imunidade, é evidente que os traficantes passarão a operar até esse
limite, situação, então, em que o Brasil descriminaria não apenas o
consumo, mas também o tráfico. E eu aguardo que o sr. Abramovay me
explique onde está a falha lógica do meu raciocínio. Também me interesso
em saber se a soma de “pequenos traficantes” devidamente descriminados
não servirá aos grandes. No que concerne ao pensamento propriamente
econômico, gostaria de saber como funciona essa, vamos dizer, azeitada
na demanda com o estrangulamento da oferta — já que o tráfico
continuaria proibido — o grande…
Não sei se
entendo direito, mas é possível que sua proposta seja, assim, uma
espécie de incentivo à formação de pequenos empresários; quem sabe seja
o estímulo ao artesanato no mundo das drogas, estimulando a venda
personalizada do bagulho, entenderam?, em regime de pequena empresa. O
“pequeno traficante” poderia até ter direito ao Simples, como essas
donas de casa que fazem bombons caseiros.
Acho que
Abramovay tem de escrever a respeito. Mas tem de dizer como funciona. Eu
quero dados. Quero que se estabeleçam as quantidades que caracterizam o
consumo, o pequeno tráfico e o grande. Que ele é um cara bacana, só
pensa no bem da humanidade, é contra a violência, disso tudo eu já sei.
Também sou (talvez não tão bacana). Já que existe uma proposta de Código
Penal no Senado que, nesse particular, se alinha com a dele, cobro um
artigo detalhando a operação da coisa. Não precisa escrever aqui. Não
faltará quem acolha o seu pensamento.
Uma entrevista e o caso de Portugal
O especialista costuma pontuar a sua fala com pesquisas feitas
aqui e acolá, o que conferiria suposto peso científico e objetividade à
sua opinião. Leiam o que ele pensa aqui.
Nessa entrevista, Abramovay afirma que a
descriminação das drogas em Portugal não levou a um aumento do consumo.
Qual é a fonte? Levou, sim! Houve um aumento estimado de 4,2%, e subiu
de 7,8% para 12% a percentagem de pessoas que experimentaram drogas ao
menos uma vez. Em Portugal, existe o IDP (Instituto de Drogas e de
Toxicodependência). Lá como cá, os defensores fanáticos da descriminação
tendem a ignorar a realidade. Caso se leiam as entrevistas de seus
diretores, seremos informados de que o sucesso é retumbante. É??? Vejam
estes dados do próprio IDP. As drogas foram descriminadas em 2001.
Reparem no que aconteceu nos anos seguintes. Mais: a taxa de homicídios
por 100 mil habitantes em 2003 (1,43 por 100 mil habitantes) cresceu 43%
em relação a 2001, ano da descriminação (1,02 por 100 mil). Em 2010,
ficou em 1,26 (crescimento de 24% em relação a 2001). Os homicídios
relacionados às drogas cresceram 40%.
Não
obstante, o sucesso da política do país é alardeado pelos tais fanáticos
dentro e fora dos domínios portugueses. Ainda que fosse verdade (não é,
como se vê), note-se: Portugal é menor do que Pernambuco e tem uma
população INFERIOR À DA CIDADE DE SÃO PAULO. Quando as drogas foram
descriminadas por lá, reitero, a taxa de homicídios era de 1,02 por 100
mil. E cresceu 24% ao longo de 9 anos. A do Brasil é quase VINTE E
QUATRO VEZES MAIOR HOJE! Ah, sim: Portugal não é rota preferencial do
tráfico. O Brasil é.
Observem o
que aconteceu com a apreensão de drogas nos anos subsequentes. A parte
continental do país, com o mar a oeste e ao sul, tem uma costa de 1.230
km apenas; ao norte e ao leste, um único vizinho: a Espanha. Banânia tem
9.230 km de Litoral a serem vigiados e faz fronteira com nove países.
Quatro deles são produtores de coca: Colômbia, Venezuela, Peru e
Bolívia. O Paraguai é um grande exportador de maconha. Mas o
especialista Abramovay acredita que Portugal pode servir de exemplo a um
gigante com as características do Brasil, com uma população 18 vezes
maior, num quadro de brutal desigualdade, desaparelhamento da polícia,
fronteiras desguarnecidas… Pior não é dizer o que diz; pior é lhe darem
trela.
Há muitos
outros simplismos até risíveis em sua entrevista e erros elementares de
lógica. Tratarei deles em outros textos. Se quiserem ler, vejam lá. Uma
coisa me incomodou porque, aí, tem a ver com honestidade intelectual
mesmo. Nessa entrevista cujo link vai acima, que está sendo recomenda lá
na página “É Preciso Mudar”, Pedro Abramovay diz:
“Na entrevista a O Globo
eu não usei o termo ‘pequenos traficantes’, porque não é disto que
estamos falando. Estamos falando muito mais de usuários que de
traficantes. Não é uma fronteira muito clara, mas estamos falando,
sobretudo, de usuários. A gente está, sim, prendendo usuários no Brasil.
A gente precisa desarmar o que montamos para nós mesmos.”
Notem, de todo modo, que a negativa dele não é, assim, peremptória, firme…
Pedrinho!
Não brinque com a minha memória! Em outubro de 2009, você era secretário
de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (lembra-se?). O
titular era Tarso Genro (toc, toc, toc…). O Ministério, sob a sua
influência, defendia justamente uma proposta para livrar da cadeia o…
pequeno traficante! Reproduzo as suas palavras literais, publicadas no
dia 23 de outubro daquele ano no Globo:
“Nós sabemos o que acontece nos
presídios: as pessoas são detidas com pequenas quantidades de droga e
acabam entregues de mão beijada para as organizações criminosas. É
preciso separar o pequeno do grande traficante. Não haverá projeto de
iniciativa do governo, mas vamos apoiar a proposta de mudança no
Congresso”.
E aí você voltou ao tema em 2010.
Dos outros
furos lógicos e impropriedades, tratarei em outros textos. Agora estou
como o Pequeno Príncipe. Não desistirei de algumas perguntas. E,
claro, continuo a esperar as provas e evidências de que é o PCC quem
salva vidas em São Paulo, não a Polícia Militar. Coragem!
O
Rio viu cair o índice de homicídios, embora ele seja ainda bastante
alto — o dobro do de São Paulo, que também é elevado, sim, mas um dos
mais baixos do país, com queda de mais de 70% em 12 anos. A vida dos
policiais fluminenses também não é fácil. Erros acabam acontecendo.
Ontem, numa operação na Favela da Quitanda, em Costa Barros, uma menina
foi morta numa troca de tiros entre o BOPE e traficantes. Bruna da Silva
Ribeiro, de 11 anos, levou um tiro na barriga. Foi internada, mas,
infelizmente, não resistiu. Os policiais estavam à caça dos bandidos que
tinham atacado uma UPP e matado uma policial.
Antes
mesmo de saber que a menina havia morrido, os moradores da área
protestaram contra a ação da Polícia. Pararam um ônibus e o incendiaram.
No fim de junho, Taiane Medeiros, de 20 anos, morreu numa outra troca
de tiros entre policiais e traficantes perto da Favela do 48, em Bangu,
Zona Oeste. Dois dias antes, tinha sido a vez de Rosiléia de Oliveira da
Silva, de 19 anos, também durante uma incursão de policiais, desta
feita no Morro do Chapadão, na Pavuna. Ela estava dentro de casa, coma a
filha de um ano no colo, que também se feriu.
Anteontem,
policias da UPP do Andaraí mataram dois jovens, um de 18 e outro de 21
anos. O PMs afirmam que eram traficantes, estavam armados e atiraram
contra uma patrulha. Os dois morreram com um único tiro de fuzil,
calibre 7.62 — acertou o roto de um e a nuca do outro A família e
vizinhos dizem que eles não estavam traficando e que se tratou de uma
execução.
Três
mortos por balas perdidas durante operações policiais em um mês, ônibus
queimado, acusações de execução sumária, um tiro matando dois, atingindo
rosto e nuca… E nada disso vai gerar reação histérica da imprensa e dos
ditos “especialistas”. Até porque, por mais lamentáveis que sejam as
ocorrências — e são —, não é mesmo o caso. É preciso antes apurar o que
aconteceu.
São Paulo
não tem por que invejar a segurança pública do vizinho — fosse o caso,
haveria de ser o contrário… Vai demorar até que o Rio reduza à metade os
mortos por 100 mil habitantes. O que chama a minha atenção é a
diferença de tratamento dispensada a um estado e a outro. No Rio, não
importa o que aconteça, sempre se está no caminho certo. Por aqui, não
importa o que aconteça, sempre se está no caminho errado.
Chegou a hora de a imprensa parar de fuzilar o bom senso. A diferença de tratamento é escandalosa e injustificada. Ponto.
Por Reinaldo Azevedo