O que difere a história da literatura é a frieza ascética do relato.
Mas o caso do mensalão tem vocação literária. Amanhã, quando puder falar
sobre o escândalo sem as amarras de hoje, a história buscará paralelos
na dramaturgia grega. Encontrará a exatidão no exagero.
O enredo fascinará os leitores do futuro. Prepostos de deputados
recolhem dinheiro grátis no guichê do banco. Butins são rateados em
orgias monetárias de quartos de hotel. Dirigente partidário pilhado em
esquema de corrupção explícita denuncia o carequinha escondido atrás da
roubalheira maior…
…O marqueteiro confessa sob holofotes que recebeu dinheiro sujo do
ex-PT em conta aberta no paraíso fiscal das Bahamas. Sitiado por
clepto-aliados,
o sindicalista-presidente pede “desculpas” em rede nacional de rádio e
tevê. O procurador denuncia a “organização criminosa” chefiada pelo
combatente da ditadura que deixou a biografia para cair na vida.
Nesta quinta (2), o STF começa a escrever o epílogo dessa espantosa
sequência de fatos extradinários ocorridos com pessoas ordinárias (com
duplo sentido, por favor). O veredicto definirá a vocação do país. Pode
consolidar a máxima segundo a qual ninguém é punido no Brasil acima de
certo nível de renda e de poder. Ou pode fornecer aos historiadores
matéria prima para um
grand finale.
Em 122 anos de existência, o Supremo ainda não premiou o crime
graúdo, de colarinho alvo, com o castigo. Sob diferentes pretextos –da
precariedade da investigação policial ao emaranhado jurídico que leva à
prescrição—, a corte suprema não conseguiu senão adicionar à tragédia um
flagelo que lhe serve de vitamina: a impunidade.
A história da miséria brasileira pode ser lida na face dos políticos
impunes. Os mensalões saltam das manchetes como pulgas do dorso de
cachorros vita-latas. O mensalão do PSDB mineiro sucedido pelo do PT
federal, substituído pelo do DEM da Capital. Tudo isso engolfado pelo
aguaceiro de um certo Cachoeira investigado numa CPI com a presença do
Collor (quem se lembra de PC Farias?).
A ausência de castigo fez sumir a ideia de vergonha na cara. Deu
lugar olhares de orgulho que reluzem a sordidez como galardão da
esperteza. A canalhice já não busca refúgio na vergonha. Ao contrário,
traz estampada na testa uma tabuleta indecente: “Malversei sim, e daí?”
Abatidas em pleno voo, biografias pseudo-imaculadas remuneram
advogados de grife para transformar o assalto ao Estado-pagador em mero
caixa dois eleitoral. “Somos vítimas de uma farsa urdida pela mídia”,
gritam os prontuários limpinhos. “Fizemos apenas o que todo mundo sempre
fez nesse país”, esgoelam-se.
Submetido a um
script 100% feito de mocinhos, o país é
convidado a aceitar o inaceitável como se fosse um modelo inevitável.
Como qualquer pivete forçado a roubar para sobreviver, o político seria
um filho da cultura nacional. A culpa é da sociedade que o obrigou a ser
o que é com todas as facilidades que lhe ofereceu –da impunidade
consentida ao voto irrefletido.
Não faz sentido interromper o ciclo de tolerância e incentivo à
pilantragem só porque alguns aliados esqueceram de maneirar e um
deputado falastrão decidiu levar o bico ao trombone. Exige-se o
restabelecimento da anormal normalidade. Cobra-se do país que sinta
remorso do suplício a que submete os que foram pegos com a mão na
cumbuca. Espera-se do Judiciário que se apiede dos inocentes culpados.
Até aqui, a tese de que a corrupção virou patologia perde de goleada
para a tese da fatalidade cultural. A promiscuidade tornou-se tamanha
que a amoralidade considera-se desobrigada de expiar suas culpas. É como
se a rapinagem política, mais do que uma fatalidade cultural, fosse um
imperativo genético.
O STF exibe em seu portal um
quadro
com a lista dos seus “julgamentos históricos”. No rodapé, menciona-se
um único e escasso episódio em que foi a julgamento um escândalo que,
mal comparando, equipara-se ao atual: o “Caso Collor”. Resultou, como se
sabe, na absolvição do protagonista do impeachment.
Agora, os ministros do Supremo dispõe de uma nova oportunidade para
informar aos brasileiros de 2050 que tipo de nação o Brasil de 2012 quis
ser quando crescesse. País do futuro ou país do faturo?, eis a pergunta
que flutua sobre as togas do STF no julgamento que se inicia nesta
quinta-feira (2).
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Em tempo:
Aqui, trechos da entrevista em que Roberto Jefferson contou à repórter Renata Lo Prete, em 2005, sobre o fantasma “mensalão”.
POR JOSIAS DE SOUZA