O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Carlos Ayres
Britto, considera que o trabalho mais importante que teve em dez anos na
corte foi a derrubada da Lei de Imprensa, em 2009. A afirmação foi
feita em entrevista à editora de política do "Jornal das Dez", da Globo
News, Renata Lo Prete.
Assista ao lado à íntegra da entrevista.
Ayres Britto completa 70 anos no próximo domingo (18), quando será
obrigado por lei a se aposentar. Sergipano de Propriá, chegou ao STF em
2003, na primeira leva de indicações promovida pelo então presidente
Lula. Na quarta (14), presidiu pela última vez uma sessão do tribunal,
fez discurso de despedida e foi homenageado.
Eu diria que a mais importante de todas as decisões, a mais importante
de todas, foi a que deu pela plenitude da liberdade de imprensa. Por
quê? Porque pela liberdade de imprensa ocorre no país o que há de mais
importante, mais essencial, quem quer que seja pode dizer o que quer que
seja. Responde pelos excessos que cometer, mas não pode ser podado por
antecipação"
Ayres Britto
Na entrevista a Renata Lo Prete, o ministro conta momentos difíceis
durante o julgamento do mensalão (ação penal 470), diz que "essas
decisões do Supremo na ação penal 470 sinalizam uma virada de página na
direção de um Brasil com melhor qualidade na vida política", reflete
sobre o papel do juiz, os casos que relatou e o legado de transformações
de uma presidência de sete meses, uma das mais breves da história do
Supremo.
Sobre seu maior legado, o ministro destaca a derrubada da Lei de
Imprensa, que havia sido editada 1967, durante o regime militar. Ayres
Britto foi o relator do processo no STF que, em 2009,
considerou a lei inconstitucional e a revogou.
A derrubada da lei da imprensa, segundo o ministro, derrubou toda
possibilidade de censura, garantindo que todos possam dizer o que
quiserem, sem, no entanto, impedir depois que respondam pelos excessos
que cometerem.
Leia a seguir a íntegra da entrevista:
Renata Lo Prete - A dosimetria (definição das penas) saiu mais complicada que a encomenda?
Carlos Ayres Britto - Saiu. Brincando, eu digo que
dosimetria é dose. Por que é dose? É algo difícil? Porque é o momento
culminante de um julgador apenar, castigar o réu, o ser humano. Aí ele
percebe que aquele réu é um ser humano e que faz jus a direitos que são
fundamentais, como, por exemplo, o maior de todos, o direito a
individualização da pena. A pena tem que ser aplicada por uma forma
rigorosamente individualizada, mas individualizada no plano da
protagonização objetiva das coisas, mas também da subjetividade do réu. A
história do réu conta nessa hora, a história do réu não conta na
primeira fase, que é o juízo de incriminação, se ele incorreu ou não
incorreu em delito. Na segunda fase, da apenação, a personalidade dele
conta, a personalidade dele, diz o artigo 59, conta. O histórico de vida
conta nesse segundo momento. O Código Penal, no artigo 59, lista oito
vetores para que a pena seja aplicada por modo individualizado. Não
quantifica, em termos de pena, numericamente mesmo, nenhum dos vetores,
pena mínima ou pena máxima. Para nenhum desses oito vetores, o Artigo 59
avança uma aritmética. Então há um espaço de subjetividade para o juiz e
o juiz fica preocupadíssimo com isso. Porque o juiz gosta de ser
objetivo, para depois não ter remorso, para incidir o menos possível em
erros. Quando os parâmetros são todos objetivos, a possibilidade de
erros é muito menor. Quando são subjetivos, a possibilidade de erros é
maior, suas antipatias e simpatias inconscientes, chamadas de gratuitas,
elas afloram nesse momento da dosimetria.
Para chegar a um denominador comum em termos de dosimetria, é algo
trabalhoso. Muitas vezes é algo, sem trocadilhos, penoso. O público não
sabe disso quando não há a transparência, ou seja, o julgamento não é
exibido pela televisão ou pela internet, o produto já chega para o
público pronto. Agora não, é um produto que, para atingir o seu ponto de
perfazimento, passa por fases que são discussões até acaloradas, como
temos visto nas sessões.
Renata Lo Prete - O senhor foi uma das pessoas que
mais se empenhou para respeitar os direitos de todos, os prazos, para
que esse julgamento se realizasse este ano. Lhe dói não proclamar esse
resultado?
Carlos Ayres Britto - Não, não dói, porque as coisas
não se passam de acordo com a nossa vontade do ponto de vista
arbitrário. O importante era julgar esse processo, porque os fatos
aconteceram há mais de sete anos. A denúncia foi recebida há mais de
quatro anos e temos mais de um ano, começo de junho, quero crer, nós já
tínhamos um ano de completada a fase de instrução criminal. O processo
estava completamente pronto. Então que desculpas nós tínhamos para não
julgar? Quando chegavam para mim e diziam 'Mas ministro, para que
julgar?', eu dizia: 'E por que não julgar?'. Basta lembrar que a lei diz
assim: ultimada a instrução, o processo criminal, sobrevem o
julgamento. Então, era preciso julgar, por dever nosso. Condenar,
absolver, isso é contingencial, isso vem como consequência do
julgamento. Agora, era preciso julgar. E nove ministros assim concluíram
unanimemente.
Renata Lo Prete - Mais de três meses do julgamento,
quase quatro, olhando para trás, desde agosto, se o senhor tivesse que
lembrar de um momento difícil...
Carlos Ayres Britto - Houve momentos difíceis, que eu
encaro com certa naturalidade e chamo isso de intercorrências, de
acidentes de percursos. O que não pode haver é pane. Esse substantivo
pane é até do ministro Gilmar (Mendes). Não pode haver pane processual,
impasse processual.
Renata Lo Prete - Se tivesse que lembrar alguma coisa...
Carlos Ayres Britto - Logo no começo, na primeira
sessão, nós ali nos bastidores, combinamos sim, que a metodologia
prevalecente seria a do relator, como sempre foi na história do Supremo
Tribunal Federal e de qualquer tribunal. O presidente da casa preside o
julgamento, preside as sessões, mas quem preside o processo é o relator.
Então, houve uma resistência, conhecida, a que a metodologia de
julgamento do relator preponderasse, prosperasse. Mas nós conseguimos
resolver isso. Porém, no momento subsequente, já em plena sessão, quando
o ministro relator anunciou sua metodologia, o ministro revisor se
opôs, e aí houve um momento de muita fricção, de muita tensão. Eu tive
que dizer, junto com o ministro Celso de Mello, por exemplo, 'então cada
ministro vota com sua própria metodologia'. Foi o modo de sair do
impasse.
Porém, o ministro revisor, um pouco mais além, algumas horas depois,
anunciou que se submeteria, acertadamente, à metodologia do relator, que
foi a metodologia do fatiamento, dos temas e dos réus segundo a ordem
da denúncia. Foi lógico isso, o ministro Joaquim Barbosa teve esse
extraordinário mérito de adotar o método adequado para essa causa. Além
de outro mérito, que a história vai registrar: o ministro Joaquim
Barbosa agiu como um legista, fazendo a autópsia, no caso dos fatos. Ele
reconstituiu materialmente os fatos por uma forma absolutamente
fidedigna e fez um link entre os fatos, na sua ocorrência, na sua
fenomenologia e os respectivos autores e partícipes.
Renata Lo Prete - Muitos momentos de atrito de grande
tensão no Plenário. O senhor acha que somente sendo um algodão para
conseguir conduzir os trabalhos?
Carlos Ayres Britto - A metáfora do algodão entre
cristais é perfeita no sentido de que, quando a taxa de cordialidade
sobe, a taxa de gentileza, cortesia, de atenção de um colega para os
demais, o processo flui. Chega a ser uma técnica de gerenciamento de
conflitos. Há um livro da jornalista Leila Ferreira que diz exatamente
isso, que a cordialidade em ambientes coletivos de trabalho se torna um
fator de eficiência. E como o processo é marcha, não é contra marcha,
processo é um seguir adiante, é um mandar para frente, termina sendo um
andar para a cima, porque tudo se ajeita e se ajusta. Eu me esforcei
para que a taxa de cordialidade entre os ministros permanecesse alta.
Renata Lo Prete - Algumas pessoas achavam que, porque a
maioria dos ministros da atual composição da corte foi indicada durante
o mandato do então presidente Lula, do PT, partido que tem alguns dos
principais réus da ação penal 470, os ministros se comportariam de outra
forma, o julgamento não produziria condenações. O que o senhor tem a
dizer sobre esse pensamento?
Carlos Ayres Britto - É preciso separar as coisas,
entender bem a natureza das coisas. O cargo de ministro do Supremo, não é
cargo em comissão, nem é função de confiança. Cargo de ministro do
Supremo é para ser exercido com absoluta independência, a prerrogativa
da independência é para ser exercitada a todo instante.
A soberania do judiciário passa por essa coragem, por esse destemor de
assumir a própria independência. Gratidão do plano pessoal é uma coisa
que deve existir sempre, pela sua chegada aqui, por efeito da indicação
do Presidente da República. Cada um dos ministros teve sua indicação e
posterior nomeação feitas por um Presidente da República que estivesse
no cargo. Agora, não se pode ser grato com a toga. A toga exige de cada
um de nós fidelidade às leis e notadamente à Constituição, porque o
Supremo é o guardião mor, maior da Constituição. E como a Constituição é
o mais legítimo dos documentos jurídicos, porque é produzido não pelo
povo, quadrienalmente convocado, a Constituição é produzida pela nação, e
nação é um conceito atemporal. Passado, presente e futuro. Nação
incorpora da primeira geração, da mais antiga geração a mais atual, a
nação é dotada de uma vontade normativa, uma vontade jurídica
permanente, e essa vontade jurídica permanente da nação - da nação chega
a ser um cacófato, mas é inevitável – essa vontade permanente é
derramada na Constituição. E a Constituição depositária da vontade
normativa permanente da nação, que é mais do que o povo, ela, a
Constituição, governa permanentemente quem governa transitoriamente.
Então, a legitimidade do juiz e, sobretudo do ministro do Supremo,
decola, arranca do seu apego irrestrito à Constituição. Ele só é grato à
Constituição. Unicamente.
Renata Lo Prete - Alguns réus têm atacado as decisões
do Supremo de uma maneira bastante ácida. Como o senhor vê? O senhor
acha que essas manifestações aceitáveis, adequadas?
Carlos Ayres Britto - Isso faz parte da liberdade de
expressão. Eu sou um apologista da liberdade de expressão por haver
relatado aquela Adin, Ação de Direito da Inconstitucionalidade, que
cominou com o reconhecimento da plenitude da liberdade de expressão em
nosso país, da liberdade de pensamento, liberdade de informação e
liberdade da expressão lato sensu, criação artística, as descobertas
científicas, liberdade de expressão numa maneira mais geral possível.
Então, criticar o Supremo é válido. Aplaudir também é válido. Isso não
me tira do sério, não me tira do eixo. Eu ouço e respeito os pontos de
vistas. Leio, ouço e respeito. Agora, o meu juízo pessoal da conduta do
Supremo Tribunal Federal, na condução dessa Ação Penal 470, é um juízo
de aplauso. Eu acho que o Supremo tem agido por modo técnico, por modo
fundamentado, tem fundamentado, por modo transparente, por modo
independente, por modo atual e por modo desassombrado como deve ser.
Renata Lo Prete - Nisso, qual que o senhor acha que é o principal legado do julgamento da Ação Penal 470?
Carlos Ayres Britto - O Supremo Tribunal Federal vem
interferindo no curso da vida, Renata. Isso é fato. Eu aplaudo as
decisões que o Supremo tem tomado, inclusive nessa, da Ação Penal 470,
que sinaliza, que traduz um vislumbre pelo menos de virada de página na
direção de um Brasil com melhor qualidade na vida política, e que
abomina, excomunga a formação de alianças partidárias ou parlamentares,
à base de propina e de outros crimes, lavagem de dinheiro, por exemplo,
evasão de divisas, peculato. É uma postura do Supremo que me parece
rigorosamente técnica, porque fiel à Constituição, que é um documento
técnico. Do ponto de vista jurídico ele é um documento técnico, e uma
decisão que corresponde a anseios coletivos. Não que o Supremo seja
submisso, seja escravo, seja refém da opinião pública, não se trata
disso. Mas quando uma decisão do Supremo Tribunal Federal coincide com
um pensar coletivo mais profundo, mais legítimo, é a glória, porque aí
se dá a conciliação da vida com o direito. E quando o juiz percebe que
está conciliando o direito com a vida, a vida mais arejada desses pontos
de vista ético, ecológico, democráticos, cívico, o juiz percebe que ser
juiz é mais do que um meio de vida, é uma razão de viver.
Renata Lo Prete - Saindo um pouco da Ação Penal 470,
eu queria falar um pouco sobre casos importantes dos quais o senhor
tratou, que o senhor relatou, durante os seus quase dez anos como
ministro dessa casa, casos como o da Raposa Serra do Sol, da união
homoafetiva, das pesquisas com célula-tronco, a Lei de Imprensa. O que o
senhor diria que foi o seu trabalho mais importante ou os seus
trabalhos mais importantes na corte?
Carlos Ayres Britto - Eu diria que a mais importante
de todas as decisões foi a que deu pela plenitude da liberdade de
imprensa. Por quê? Porque pela liberdade de imprensa ocorre no país o
que há de mais importante, mais essencial, quem quer que seja pode dizer
o que quer que seja. Responde pelos excessos que cometer, mas não pode
ser podado por antecipação. Ou seja, não é pelo medo do uso, pelo medo
do abuso, não é pelo temor, pelo receio do abuso que se vai proibir um
uso. A liberdade de expressão está na linha de largada da democracia, e a
democracia, que é o princípio dos princípios da Constituição de 1988, é
a menina dos olhos da Constituição. O princípio estruturante do estado,
da sociedade, do governo, da administração, não é dizer, como outro dia
eu vi um governante sul-americano dizer equivocadamente: ‘A democracia
não é incompatível com a liberdade de imprensa’. Não é isso. O certo é:
não há democracia sem liberdade de imprensa.
Renata Lo Prete - Saindo agora do seu legado como
ministro, vamos falar um pouco do seu período na presidência, eu fui
pesquisar, salvo engano meu, me corrija se eu estiver enganada, só dois
presidentes tiveram um período mais breve do que o seu no comando do
Supremo. O que o senhor gostaria que ficasse como a marca da sua
presidência no Supremo?
Carlos Ayres Britto - Eu acho que o maior exemplo,
vamos dizer, a melhor pregação que tentei fazer é dar essencialidade e
superioridade absoluta da democracia. Agora, no âmbito da democracia com
relevo para a atuação do poder judiciário, por ser o poder judiciário, a
âncora definitiva de confiabilidade do corpo social em que a sua
Constituição e todo o direito, Constituição e leis em geral, serão
respeitadas. Constituição e leis em geral. Só o judiciário, num regime
democrático, antes de tudo democracia, conceituada como geminada à
liberdade de imprensa, irmã siamesa da liberdade de imprensa. Só no
âmbito da democracia é que se tem um poder judiciário soberano, ocupando
o espaço da soberania para vetar e sancionar o que estiver de acordo
com a ordem jurídica. Vetar o que estiver em desacordo. Sancionar o que
estiver, sancionar positivamente, afirmativamente, o que estiver de
acordo com a ordem jurídica.
Renata Lo Prete - O senhor já teve uma experiência em
política partidária, já foi candidato uma vez. O senhor admite a
possibilidade de voltar a enveredar por esse caminho?
Carlos Ayres Britto - Não. Não. O livro da vida ensina
a virar páginas. Lógico, né. Senão não seria o livro da vida. Essa
página está virada. Eu não volto para a vida político-partidária. Eu vou
cuidar de escrever, de ler, seja na área jurídica, seja poética, seja
até com alguns experimentos holísticos, quem sabe. Mas
político-partidária não.
DO GLOBO.COM