MINHA CASA, MINHA DILMA II, A MISSÃO: RECIFE, CIDADE COM GRANDE CONCENTRAÇÃO DE BRASILEIROS E BRASILEIRAS, TEM DOIS RIOS QUE DERAM ORIGEM AO OCEANO ALTÂNTICO ─ E UM DELES VAI DESLUMBRAR OS ESTRANGEIROS QUE FREQUENTAM VENEZA
Celso Arnaldo Araújo
“Quem não tem casa no Brasil?”, pergunta a presidente aos 11:13 do vídeo do já histórico discurso do Recife, com os indicadores em riste enfatizando a poderosa indagação. A pergunta evidentemente se vale de um recurso estilístico próprio de grandes oradores: a retórica. A resposta é dispensável: milhões de pessoas não têm casa no Brasil – e mais de 95% da plateia do discurso pertence a essa categoria. Mas um espírito de porco aceita o repto da inflamada presidente:
─ Eu!
A reação popular a desconcerta, deixando-a literalmente boquiaberta, o dedo no ar desacompanhado da palavra suspensa na última hora. Mas Dilma tira o incidente de letra ─ letras são sua especialidade.
─ Ah, é você!!
E passa a responder ao único recifense que não tem casa. Pergunta que não quer calar: por que, antes do Minha Casa Minha Vida, uma pessoa que não tinha casa não tinha casa, presidente?
“Porque não conseguia comprá casa. Por um motivo muito simples: não conseguia comprá casa”.
Tantos economistas com PhD quebrando a cabeça para explicar o déficit habitacional brasileiro e foi preciso uma doutora sem doutorado para explicar-lhes o fenômeno em dilmês: agora, com o Minha Casa Minha Vida, todo brasileiro consegue comprar sua casa. A lógica de Dilma é tão meridiana que custa acreditar que o MCMV ainda não tenha dado certo: 480 casas do PAC 2 aqui, outras 500 do 1 ali, ele – como a presidente se refere ao programa trimilionário – ainda está muito longe de seu primeiro milhão.
Mas, justiça seja feita, ela admite que ainda falta um pouco para que os “190 milhões” sejam proprietários:
“É visível que nem todos que precisam tenham ainda acesso à casa. Mas também é visível que cada vez mais nós estamos vendo as pessoas, as famílias, as mulheres, aparecerem e terem acesso a sua casa”.
Dilma parece estimular uma nova política de vizinhança à brasileira, na qual pessoas, mulheres e famílias inteiras aparecem na porta de nossas casas, querendo entrar.
A economista então pede licença à presidente – quando nada, para justificar por que não conseguiu levar adiante o doutorado em economia:
“Nós somos reconhecidos como um dos países mais estáveis, que crescem e que distribuem renda. Pra vocês terem uma ideia, muitos países crescem. Mas na maioria desses países que crescem, a renda não se distribui, ela se concentra: uns ficam mais ricos e outros ficam pobres”.
É o caso da Dinamarca, mas não do Brasil, onde, segundo Dilma, “o povo cresce junto, o povo não fica pra trás”.
‘CUMÉ QUE VAI TRABALHÁ’
Uma velha lição de mestre Ulysses – aquele que, como disse Dilma um dia, “escreveu o verso navegar é preciso” — nos dá conta de que as pessoas não moram na União ou no estado, mas no município. Uma lição que a supergente reescreve a seu modo:
“Outra coisa muito importante são as nossas cidades. São as nossas cidades”.
Tão importante que Dilma deixou o Ministério das Cidades a cargo de duas nulidades suspeitas, mantendo Mario Negromonte e depois nomeando Aguinaldo Ribeiro. Mas a importância de fato começa pela cidade-anfitriã do discurso:
“Recife, capital de Pernambuco, e toda a região metropolitana do Recife são um dos grandes polos de concentração de brasileiros e brasileiras neste país”, diz a presidente, desmentindo os saudosistas que ainda veem holandeses e holandesas dominando a cidade.
E Dilma, que fala de um Recife como jamais sonhou Gilberto Freire, dá um tapa na cara de quem critica seu vocabulário limitado:
“Nós não podemos relegá, nós não podemos abandoná, nós não podemos deixá as nossas cidades degringolarem, nós não podemos deixá-la entrar em decadência, nós não podemos deixá que aonde a gente mora não tenha aquele cuidado que a gente coloca na casa da gente”.
Sem indicar se existe alguém que pensa diferente disso, a presidente fala de um investimento de 2 bilhões de reais na cidade para melhorar o direito de ir e vir dos recifenses:
“Uma das questões principais pra quem mora e pra quem trabalha numa cidade é como se movimentá. Cumé que sai de casa e vai trabalhá, cumé que sai de casa e vai passeá. Essa questão é fundamental numa cidade”.
Pessoas da plateia acusam um choque. Mas não com o fio desencapado do dilmês – foi o cabo de microfone. Um passinho pra trás, a seu pedido, e o problema é contornado:
“Ô, povo bom!”, celebra a presidente.
“Olé, olé, olá, Dilmá, Dilmá!”.
ONÇA NORDESTINA
Dilma agradece o carinho da plateia com uma notícia em primeira mão: Recife passará a ser banhada pelo Rio Tâmisa.
“Nós vamos transformar o Rio Capibaribe numa estrada, num caminho, numa rua fluvial”.
O rio, aliás, junto com seu irmão Beberibe, está mitologicamente destinado a um upgrade oceânico – no folclore das origens do Recife, os dois rios deram origem ao Atlântico. E Dilma deve ter ouvido falar nisso:
“Uma cidade que foi construída porque aqui tinha dois rios que formava (sic) o Oceano Atlântico tem de valorizar esses rios”.
O novo Capibaribe criado com ajuda do governo federal confirmará, na prática, o apelido de Veneza brasileira cunhado para Recife com algum exagero. Não faltarão as gôndolas:
“Posso dizer pra vocês que muitos brasileiros e estrangeiros virão aqui só pra andar de barco no Rio Capibaribe. Vocês vão usá como transporte. Nós vamos vim aqui e aproveitá da beleza também”.
Bolsa de apostas já formada: o que correrão primeiro, os barcos de passageiros da Capibaribe Highway, os trens da Transnordestina ou as águas da Transposição do Rio São Francisco?
No final da histórica apresentação, os pleitos e as lágrimas de muitos dos presentes – moradores do antigo conjunto habitacional de Muribeca, na Grande Recife, conhecidos como prédios-caixão, que estão se desfazendo – trazem tensão ao ambiente de festa da casa própria, aliviada pela promessa de Dilma de acionar a Caixa Econômica para incluir as vítimas, com prioridade, no MCMV.
“Para o Minha Casa Minha Vida tem um critério: nós atendemos primeiro aqueles que correm risco”.
Aqui, pela primeira vez ao longo do discurso do Recife, leve-se a saudável promessa presidencial a sério – para posterior cobrança, também a sério.
E, igualmente a bem da justiça, ressalte-se que, quando Dilma menciona em seguida as taxas de crescimento do Nordeste, próprias dos tigres asiáticos, usa uma figura de linguagem que soa bastante aceitável:
“Nós temos aqui uma onça nordestina”.
Taí, nada a reclamar: a imagem é boa, a frase tem começo, meio, fim e um miolo.
Um golzinho de honra, legal, na lavada impiedosa que levou o dilmês no palanque dos aflitos.
AUGUSTO NUNES
REV VEJA
Celso Arnaldo Araújo
“Quem não tem casa no Brasil?”, pergunta a presidente aos 11:13 do vídeo do já histórico discurso do Recife, com os indicadores em riste enfatizando a poderosa indagação. A pergunta evidentemente se vale de um recurso estilístico próprio de grandes oradores: a retórica. A resposta é dispensável: milhões de pessoas não têm casa no Brasil – e mais de 95% da plateia do discurso pertence a essa categoria. Mas um espírito de porco aceita o repto da inflamada presidente:
─ Eu!
A reação popular a desconcerta, deixando-a literalmente boquiaberta, o dedo no ar desacompanhado da palavra suspensa na última hora. Mas Dilma tira o incidente de letra ─ letras são sua especialidade.
─ Ah, é você!!
E passa a responder ao único recifense que não tem casa. Pergunta que não quer calar: por que, antes do Minha Casa Minha Vida, uma pessoa que não tinha casa não tinha casa, presidente?
“Porque não conseguia comprá casa. Por um motivo muito simples: não conseguia comprá casa”.
Tantos economistas com PhD quebrando a cabeça para explicar o déficit habitacional brasileiro e foi preciso uma doutora sem doutorado para explicar-lhes o fenômeno em dilmês: agora, com o Minha Casa Minha Vida, todo brasileiro consegue comprar sua casa. A lógica de Dilma é tão meridiana que custa acreditar que o MCMV ainda não tenha dado certo: 480 casas do PAC 2 aqui, outras 500 do 1 ali, ele – como a presidente se refere ao programa trimilionário – ainda está muito longe de seu primeiro milhão.
Mas, justiça seja feita, ela admite que ainda falta um pouco para que os “190 milhões” sejam proprietários:
“É visível que nem todos que precisam tenham ainda acesso à casa. Mas também é visível que cada vez mais nós estamos vendo as pessoas, as famílias, as mulheres, aparecerem e terem acesso a sua casa”.
Dilma parece estimular uma nova política de vizinhança à brasileira, na qual pessoas, mulheres e famílias inteiras aparecem na porta de nossas casas, querendo entrar.
A economista então pede licença à presidente – quando nada, para justificar por que não conseguiu levar adiante o doutorado em economia:
“Nós somos reconhecidos como um dos países mais estáveis, que crescem e que distribuem renda. Pra vocês terem uma ideia, muitos países crescem. Mas na maioria desses países que crescem, a renda não se distribui, ela se concentra: uns ficam mais ricos e outros ficam pobres”.
É o caso da Dinamarca, mas não do Brasil, onde, segundo Dilma, “o povo cresce junto, o povo não fica pra trás”.
‘CUMÉ QUE VAI TRABALHÁ’
Uma velha lição de mestre Ulysses – aquele que, como disse Dilma um dia, “escreveu o verso navegar é preciso” — nos dá conta de que as pessoas não moram na União ou no estado, mas no município. Uma lição que a supergente reescreve a seu modo:
“Outra coisa muito importante são as nossas cidades. São as nossas cidades”.
Tão importante que Dilma deixou o Ministério das Cidades a cargo de duas nulidades suspeitas, mantendo Mario Negromonte e depois nomeando Aguinaldo Ribeiro. Mas a importância de fato começa pela cidade-anfitriã do discurso:
“Recife, capital de Pernambuco, e toda a região metropolitana do Recife são um dos grandes polos de concentração de brasileiros e brasileiras neste país”, diz a presidente, desmentindo os saudosistas que ainda veem holandeses e holandesas dominando a cidade.
E Dilma, que fala de um Recife como jamais sonhou Gilberto Freire, dá um tapa na cara de quem critica seu vocabulário limitado:
“Nós não podemos relegá, nós não podemos abandoná, nós não podemos deixá as nossas cidades degringolarem, nós não podemos deixá-la entrar em decadência, nós não podemos deixá que aonde a gente mora não tenha aquele cuidado que a gente coloca na casa da gente”.
Sem indicar se existe alguém que pensa diferente disso, a presidente fala de um investimento de 2 bilhões de reais na cidade para melhorar o direito de ir e vir dos recifenses:
“Uma das questões principais pra quem mora e pra quem trabalha numa cidade é como se movimentá. Cumé que sai de casa e vai trabalhá, cumé que sai de casa e vai passeá. Essa questão é fundamental numa cidade”.
Pessoas da plateia acusam um choque. Mas não com o fio desencapado do dilmês – foi o cabo de microfone. Um passinho pra trás, a seu pedido, e o problema é contornado:
“Ô, povo bom!”, celebra a presidente.
“Olé, olé, olá, Dilmá, Dilmá!”.
ONÇA NORDESTINA
Dilma agradece o carinho da plateia com uma notícia em primeira mão: Recife passará a ser banhada pelo Rio Tâmisa.
“Nós vamos transformar o Rio Capibaribe numa estrada, num caminho, numa rua fluvial”.
O rio, aliás, junto com seu irmão Beberibe, está mitologicamente destinado a um upgrade oceânico – no folclore das origens do Recife, os dois rios deram origem ao Atlântico. E Dilma deve ter ouvido falar nisso:
“Uma cidade que foi construída porque aqui tinha dois rios que formava (sic) o Oceano Atlântico tem de valorizar esses rios”.
O novo Capibaribe criado com ajuda do governo federal confirmará, na prática, o apelido de Veneza brasileira cunhado para Recife com algum exagero. Não faltarão as gôndolas:
“Posso dizer pra vocês que muitos brasileiros e estrangeiros virão aqui só pra andar de barco no Rio Capibaribe. Vocês vão usá como transporte. Nós vamos vim aqui e aproveitá da beleza também”.
Bolsa de apostas já formada: o que correrão primeiro, os barcos de passageiros da Capibaribe Highway, os trens da Transnordestina ou as águas da Transposição do Rio São Francisco?
No final da histórica apresentação, os pleitos e as lágrimas de muitos dos presentes – moradores do antigo conjunto habitacional de Muribeca, na Grande Recife, conhecidos como prédios-caixão, que estão se desfazendo – trazem tensão ao ambiente de festa da casa própria, aliviada pela promessa de Dilma de acionar a Caixa Econômica para incluir as vítimas, com prioridade, no MCMV.
“Para o Minha Casa Minha Vida tem um critério: nós atendemos primeiro aqueles que correm risco”.
Aqui, pela primeira vez ao longo do discurso do Recife, leve-se a saudável promessa presidencial a sério – para posterior cobrança, também a sério.
E, igualmente a bem da justiça, ressalte-se que, quando Dilma menciona em seguida as taxas de crescimento do Nordeste, próprias dos tigres asiáticos, usa uma figura de linguagem que soa bastante aceitável:
“Nós temos aqui uma onça nordestina”.
Taí, nada a reclamar: a imagem é boa, a frase tem começo, meio, fim e um miolo.
Um golzinho de honra, legal, na lavada impiedosa que levou o dilmês no palanque dos aflitos.
AUGUSTO NUNES
REV VEJA