terça-feira, 28 de março de 2017

José Nêumanne: Golpes em marcha

Lista na eleição evita que cidadão puna políticos e autoanistia os deixa livres para cometer crimes

Publicado no Estadão
Ninguém ouviu, mas ao longo de todo o domingo passado um grande suspiro de alívio percorreu o Brasil do Oiapoque ao Chuí, com uma parada significativa em Brasília, capital federal. Todos os políticos com algum mandato no Legislativo ou no Executivo, federal, estadual ou municipal, comemoraram secretamente, sem ousar sequer aparentar felicidade nem na intimidade da alcova, à hora de se recolher ao tálamo, a outonal ausência da cidadania nas ruas mais importantes das maiores cidades brasileiras. Para evitar os mais descarados golpes da História desde a Independência ─ a manutenção da prerrogativa de foro, a autoanistia no uso de caixa 2 e, acima de tudo e de todos, a lista fechada dos candidatos nas eleições – o povo não se mobilizou, como o fizera antes para protestar contra o Brasil oficial em 2013 e pelo impeachment de Dilma em 2015 e 2016.
Em 2013, assim que o povo voltou pra casa e os black blocs pararam de depredar o patrimônio alheio, público ou privado, Dilma Rousseff anunciou as decisões com que fingiu atender ao clamor das ruas roucas: Assembleia Constituinte exclusiva para a reforma política e financiamento público de campanhas eleitorais. Nunca a estupidez pessoal de um ser humano (o que ela pelo menos aparenta ser) desserviu a tantos semelhantes de uma vez só. Em 2016 o Congresso Nacional a depôs por outros crimes, fingindo atender ao mesmo clamor. Mentira! Os congressistas depuseram a “presidenta” porque não suportavam o desprezo e a indiferença com que ela os maltratava, usando o poder para humilhá-los, mesmo ao custo de perdê-lo. Isso ficou claro quando foi revelada a senha do movimento tido como golpista pelos depostos com ela: “Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria”. A sentença consagrou o autor como o frasista preferencial de todos os governos, Romero Jucá, pernambucano, senador por Roraima, militante do PMDB e serviçal de todos os presidentes – de Fernando Henrique, do PSDB, a Lula e Dilma, do PT.
O ilustre prócer, atualmente na presidência do maior partido do País, o PMDB, posseiro dos maiores postos do Legislativo e do Executivo da República, o nominado Caju da lista de propinas da Odebrecht, também não teve pejo de reclamar quando tentaram limitar o foro privilegiado. Definiu o privilégio como “suruba seletiva” e exigiu que dela todos participassem. Todos os políticos, os mandatários, os poderosos do regime, naturalmente. Como a anistia reclamada pela oposição para avalizar a abertura democrática da ditadura de Geisel e Figueiredo: “ampla, geral e irrestrita”. A metáfora indecorosa da República indecente, contudo, nunca será mais pornográfica do que a prática republicana da venda por facilidades financeiras para ultrapassar as dificuldades do decoro político.
As extraordinárias circunstâncias que permitiram, primeiro, a Ação Penal 470, vulgo mensalão, e, depois, a Operação Lava Jato, dita petrolão, terminaram por quebrar um ancestral paradigma do Brasil dos coronéis e dos titãs populistas, aquele segundo o qual só iam para a cadeia pretos, pobres e prostitutas. Frequentam os cárceres da “república de Curitiba” vários dos mais ricos empreiteiros pátrios, inclusive o maioral de todos, Marcelo Odebrecht, e alguns “heróis do povo brasileiro”, que assaltaram bancos para financiar a guerrilha e, depois, saquearam o Estado inteiro, sem exceção de cofre, por poder, fortuna e conforto. No entanto, ainda não foi quebrada a barreira estabelecida por Artur Bernardes na Primeira República: “aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei”. Com uma adaptação: “aos mandatários, tudo; aos sem-mandato, a lei mais rigorosa”. Preso, Marcelo Odebrecht contou que comprou Lula e Dilma e deles obteve tudo o que precisava para prosperar mais do que os outros, aceitando, é claro, a companhia do cartel. Mas, pelo menos até agora, nenhum detentor de mandato de poder republicano paga por seus delitos. A exceção à regra é, claro, Eduardo Cunha, que ousou cuspir na cruz.
No impeachment de Dilma Rousseff, o verdadeiro golpe foi dado, cinicamente, por Renan Calheiros e Ricardo Lewandowski: o fatiamento do artigo constitucional que a privaria de direitos políticos para que pudesse ser merendeira de escola. O que, aliás, representaria grave risco para a saúde da infância e da juventude do Brasil. Depois do “só se for a pau, Juvenal”, miríades de golpes se sucederam contra a Carta que, de tão vilipendiada, pode ser chamada de minima minimorum, em vez de Máxima. Foi o caso da permissão para Renan Calheiros delinquir presidindo o Senado desde que saísse da “linha sucessória”, que, aliás, nem existe, pois não há sucessor definido do vice que assumiu a Presidência. Quem quer que o substitua terá de convocar eleição indireta para ocupar o lugar. E também foi permitido ao vassalo Rodrigo Maia reeleger-se presidente da Câmara no meio da legislatura. Mais um escárnio na conta!
Tudo, porém, é café pequeno para o que se anuncia nesta algaravia de todo dia. Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já deu a deixa para a cassação da chapa Dilma-Temer sem criar atropelos à gestão federal. Cassa-se a chapa, decreta-se a inelegibilidade da titular e permite-se ao reserva que fique em campo. Ou seja, autorizar-se-lo-á (mesóclise dupla em homenagem a sua volúpia pelo fracionamento de verbos) a disputar (e vencer) a indireta para suceder-se a si mesmo no Congresso Nacional, que tantas alegrias lhe tem propiciado.
Isso ainda é lana caprina comparado ao que os parlamentares se reservam em matéria de prêmio de consolação por terem sido delatados. Conseguiram beneplácito dos “datas vênias” da STF (Suprema Tolerância Federal) para desprezar a igualdade de todos perante a lei e decretar que caixa 2 é crime para empresários, mas não para políticos.
Ressuscitaram o projeto de Dilma do financiamento público de campanhas eleitorais para mantê-las com seus custos proibitivos, o que, definitivamente, não é uma tradição da República, por mais insana que ela já tenha sido antes. E, para completar, escolheram dois capitães do mato do Conselheiro de Caetés para levantar muros da vergonha no “parlamanto”. Wadih Damous (PT-RJ), jurisconsulto particular do ex-deus, batalha para excluir os presos da possibilidade de serem premiados ao delatar, desfigurando norma legal adotada pelo Brasil oficial no rastro do resto do mundo. E Vicente Cândido (PT-SP), relator da tal “reforma política”, apareceu com a teoria de que lista fechada de candidatos a cargos no Legislativo em eleições proporcionais (não distritais) é usada em “80%” (o cálculo é dele) dos países democráticos do mundo.
Lembro-me bem – se me lembro!  de ter acompanhado eleições com listas em que os maiorais da elite política compunham o congresso do país a seu bel prazer e proveito. O social-democrata AD de Rómulo Gallegos dividia o butim com a democracia cristã da Copei de Rafael Caldera. O pobre povo amontoado nas favelas de Caracas a caminho do aeroporto de Maiquetia pisou na balança e dessa divisão subiram Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro. A lista fechada foi a ditadura da elite política a caminho da tirania metida a socialista dos bolivarianos da Venezuela.
Ainda assim, o Brasil real, escorchado, talvez desiludido com os resultados pífios e o cinismo crescente do País oficial, ainda caçando cofres para limpar, desistiu de ir às ruas para reclamar. E deixou aparecerem no asfalto vazio os nostálgicos da ditadura militar, de direita. Daí,foi ensurdecedor o silêncio monstruoso das cidades sem povo do Brasil afundado no pântano da miséria, da corrupção e da maior crise econômica da História. Talvez nos reste dançar o tango argentino, como no poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, ou rezar um ato de contrição, como a mãe deste escriba o aconselhava quando, na infância, não conciliava o sono. Contra todos esses golpes em marcha, nem se o bispo de Barra, na Bahia, benzesse toda a água do São Francisco se operaria o milagre da nossa redenção.
O jurista Modesto Carvalhosa, especialista em legislação contra a corrupção, recomenda uma Constituinte independente para mudar tudo na política, performance bonds (adotados nos EUA desde 1894) para tirar o poder de empreiteiros corromperem políticos e burocratas, e uma lista negra de políticos safados para não sufragar na próxima eleição. Minha lista pessoal contém todos os mandatários dos Poderes Executivo e Legislativo, acrescentada de uma devassa impiedosa para reformar todas as instâncias do Judiciário.
O resto são panos quentes para confortar moribundo.

Ciro Gomes mira em Moro e acerta a própria testa

Ciro Gomes nem precisa de adversários em campanhas eleitorais: ele sabe como ninguém perder sozinho. Na primeira disputa presidencial em que se meteu, a candidatura começou a derreter quando chamou de “burro” um eleitor com quem falava por telefone durante um programa radiofônico. O segundo naufrágio do gabola que primeiro fala e só depois pensa (se é que pensa) tornou-se inevitável com a definição do papel que a atriz Patrícia Pillar, com quem estava casado na época, desempenharia na campanha do marido: dormir com o candidato, resumiu.
O vídeo acima confirma que, quando se trata de gente, graves defeitos de fabricação não têm conserto. “Hoje esse… esse Moro resolveu prendê um… um bloguero?”, desandou no meio da entrevista o pistoleiro que faz mira só depois do disparo. “Ele que mande me prendê, que eu recebo a turma dele na bala”. Endereçado ao juiz que simboliza a Operação Lava Jato, o tiro ricocheteou na língua portuguesa antes de atingir, de novo, a testa do eterno candidato sem chances à Presidência da República.
Se fosse mais gentil com o idioma, Ciro receberia à bala, nunca “na bala”, os agentes da Polícia Federal que formam o que chama de turma do Moro. Se respeitasse a inteligência alheia, não diria que Sérgio Moro “resolveu prendê um bloguero”; apenas determinou que um blogueiro objeto de investigações prestasse depoimento. Se passasse menos tempo na cidade onde foi criado, governada pela família que se confunde com um bando de coronéis, teria descoberto que o país mudou. O Brasil não é uma imensa Sobral. E jamais será.
Já não existem figurões condenados à perpétua impunidade. A lei passou a valer para todos, aí incluídas todas as ramificações da tribo dos cirosgomes. O ex-governador do Ceará não acordou com batidas na porta às seis da manhã por uma razão singela: não existem (ainda) motivos para isso. Caso esteja enredado em alguma das patifarias atravessadas no caminho da operação, a usina ambulante de bravatas não tardará a receber a visita dos policiais.
Se restar algum juízo ao clã, Ciro será aconselhado pela família a receber os visitantes empunhando não um tresoitão, mas uma bandeja com o bule e xícaras de café.DO A.NUNES

Cármen Lúcia exclui foro privilegiado da pauta Comente

Josias de Souza

A ministra Cármen Lúcia fechou a pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal para o mês de abril. Ela baniu do plenário os temas polêmicos. Deixou de fora, por exemplo, o processo que levaria os ministros da Suprema Corte a se manifestar sobre a redução do alcance da prerrogativa de foro de deputados, senadores e ministros. Com isso, foi enviada às calendas gregas a discussão sobre a hipótese de manter no Supremo apenas os processos relacionados a acusações por crimes cometidos durante e em razão do exerício do cargo. Por esse entendimento, os processos da Lava Jato desceriam para a primeira instância.
Cabe a Cármen Lúcia, como presidente do Supremo, definir a pauta de julgamentos. Ela excluiu também o processo sobre a blindagem legislativa que retarda a conversão do governador mineiro Fernando Pimentel (PT) em réu na Operação Acrônimo. Fez isso num instante em que parecia consolidada no Supremo uma maioria em torno da tese segundo a qual Pimentel pode ser processado criminalmente sem a necessidade de autorização prévia da Assembleia Legislativa mineira. Uma decisão nesse caso seria importante, pois viraria um parâmetro para os processos que serão abertos no Superior Tribunal de Justiça, o STJ, contra mais de uma dezena de governadores encrencados na colaboração judicial da Odebrecht.
Curiosamente, Cármen Lúcia se absteve também de pautar processo que tem conexão direta com o julgamento que põe em risco o mandato de Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral. Trata-se de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo procurador-geral da República Rodrigo Janot. Na peça, ele se insurge contra modificações promovidas no Código Eleitoral pela Lei 13.165, de 2015, batizada de minirreforma eleitoral. Entre outros pontos, Janot questiona a constitucionalidade do trecho da nova lei que trata das regras de substituição de chefes de Executivo cassados. Prevê que, se o tempo restante de mandato do político que perder o mandato for superior a seis meses, o substituto será escolhido em eleição direta. Se o prazo for inferior, a eleição será indireta.
Janot realça em sua ação que o artigo 81 da Constituição contém um rito específico para os casos de vacância das poltronas de presidente e de vice-presidente. Anota que, quando a cassação ocorrer no primeiro biênio do mandato, o substituto será eleito diretamente pelo povo. Se a cassação vier nos últimos dois anos do mandato, um risco que Michel Temer corre no momento, a escolha do novo presidente será indireta, sob a responsabilidade do Congresso.
Flertando com o óbvio, Janot sustentou em sua petição que uma lei infraconstitucional não pode ser usada para reescrever a Constituição. “Essa não é matéria ao alcance de mudança por legislação ordinária, sob pena de ofensa à supremacia constitucional. A lei poderia, quando muito, oferecer detalhamento sobre o procedimento de realização de eleições, mas não trazer prazo diverso do previsto constitucionalmente para que ocorram eleições indiretas.”
Ao excluir a ação de Janot da pauta do Supremo, Cármen Lúcia deu 'Bom Dia' à imprevidência. Na improvável hipótese de prevalecer no TSE a cassação de Temer, haverá uma densa polêmica sobra a forma de escolha de um substituto.