A ONG é suspeita de usar empresas de fachada para desviar dinheiro público. A reportagem é de Mauricio Ferraz e Bruno Tavares.
Nossos repórteres investigaram durante um mês denúncias contra a ONG “Pra frente Brasil”, que atua no interior de São Paulo.
A ONG é suspeita de usar empresas de fachada para desviar dinheiro público. A reportagem é de Mauricio Ferraz e Bruno Tavares.
Esta é Karina Valéria Rodrigues nos anos 90. Na época, ganhou fama e se tornou uma supercampeã do basquete.
Hoje, existem suspeitas de que a ex-jogadora - que nasceu na Argentina e se naturalizou brasileira - esteja envolvida num desvio milionário de dinheiro público.
Karina mora em Jaguariúna, interior de São Paulo. Em 2003, ela criou na cidade a organização não governamental “Bola Pra Frente”, com o objetivo de levar esporte para crianças e adolescentes carentes. Em 2008, se elegeu vereadora pelo PC do B. E este ano, na Câmara de Jaguariúna, deixou bem claro que manda na ONG. “Eu, na minha entidade, eu sei tudo o que acontece. E sou responsável por tudo o que acontece”, declarou.
A ONG - que hoje se chama “Pra Frente Brasil” - atua em 17 municípios do estado de São Paulo. Entre as atividades oferecidas, está o programa “Segundo Tempo”, do Ministério do Esporte. Considerado estratégico pelo governo federal, esse programa começou em 2003, com o objetivo de democratizar o acesso ao esporte. R$ 750 milhões já foram repassados para prefeituras, estados e organizações não governamentais.
Só a entidade da ex-jogadora Karina recebeu cerca de R$28 milhões nos últimos seis anos.
É a ONG que mais ganhou dinheiro do Ministério do Esporte. Parte dessa verba seria usada na compra de lanches. A principal fornecedora de lanches para a entidade é a empresa RNC, de Campinas.
Um dos sócios da RNC é Reinaldo Morandi, que diz ser assessor de Karina. A empresa de Reinaldo foi contratada pela ONG “Pra Frente Brasil” e recebeu mais de R$10 milhões, entre 2007 e 2010. Mas ele não quer conversa.
Nosso produtor encontra Reinaldo, conhecido como Urso, na Câmara dos Vereadores de Jaguariúna. Desta vez, com uma câmera escondida:
- Você é aqui da cidade?
- Eu sou. Trabalho com a Karina.
- Ah, você trabalha com ela?
- Ela é do PCdoB.
- O que você faz com ela?
- Sou assessor dela. Eu trabalho com ela, diretamente.
- Você trabalha com ela há muitos anos, Reinaldo?
- Deve fazer vinte anos.
O maior contrato entre a RNC, de Reinaldo, e a ONG “Pra Frente Brasil", da ex-jogadora Karina foi assinado em janeiro de 2010. A empresa recebeu R$4.477.032,00 para fornecer kits lanches por 21 meses.
O Ministério do Esporte não exige concorrência pública. Mas determina que as ONGs façam - no mínimo - uma cotação prévia de preços e observem os princípios da moralidade, economicidade e impessoalidade.
O promotor de Justiça José Tadeu Baglio - do grupo de combate ao crime organizado - diz que a contratação da RNC é irregular. E explica o que é impessoalidade.
“O princípio da impessoalidade significa, grosso modo, que você não pode contratar uma empresa baseado na pessoa que está por trás dessa pessoa jurídica”, explica o promotor.
Ou seja, os dirigentes das ONGs não podem contratar empresas de pessoas próximas, por exemplo, parentes ou amigos.
Voltamos a procurar Reinaldo. Dessa vez, ele nega sua ligação com Karina.
- O senhor é funcionário da Karina? O senhor é funcionário dela ou não? O senhor não quer gravar entrevista por quê? O senhor só responde se é funcionário dela, por favor.
Para o Ministério Público, há indícios de que a RNC, de Reinaldo, é uma empresa de fachada.
“Surge uma figura que é bastante popular hoje, que é a figura do laranja, que é colocado na direção da empresa para fins de prática de ilícito pena, quando, na realidade, quem administra é outra pessoa”, esclarece o promotor.
A mesma suspeita - de ser uma empresa de fachada e de ter sido contratada sem obedecer ao princípio da impessoalidade - recai sobre a “Esporte e Ação”.
Entre 2007 e 2010, a “Esporte e Ação” recebeu da ONG da ex-jogadora Karina R$1.290.000,00, para fornecer material esportivo.
No papel, a dona da empresa é Cleide do Nascimento Villalva. Essa família tem mais uma firma que fechou contratos com a ONG “Pra Frente Brasil” da ex-jogadora Karina. Chama-se Marcelo Villalva (E.P.P).
Entre 2007 e 2010, a empresa Marcelo Villava E.P.P. recebeu R$2.740.000,00 para fornecer materiais esportivos e lanches.
Marcelo e Cleide são casados. Com as duas empresas, receberam mais de R$ 4milhões.
A antiga sede da “Esporte e Ação” fica numa casa, na cidade de Pedreira. Na casa, vivem os pais de Marcelo Villalva.
- Eles nunca ganharam licitação de 4 milhões de reais?
- Estamos na pindura desgraçada. Eu não sei mesmo de onde saia dinheiro. Eu não tenho nada. Marcelo não tem nada.
- Nada?
- Nada. Ele tem uma casinha popular, como a minha.
Antes das empresas de Marcelo e Cleide ganharem os contratos, entre 2004 e 2007, três membros da família Villava apareciam como dirigentes da ONG da ex-jogadora Karina: a mãe de Marcelo, dona Vilma; e duas irmãs dele, Luciana e Lucélia.
Vilma Villava - Um dia, o Marcelo veio aqui, falou que era pra tirar tudo do nome da gente dai. Ai, tirou tudo os nomes.
Fantástico - E ele explicou por quê?
Vilma Villava - Não.
Fomos até a casa de Marcelo e Cleide. Pelo endereço da rua, cep, cidade, na casa deveriam funcionar duas empresas que, juntas, receberam da ONG, mais de R$4 milhões. Marcelo diz que está tudo dentro da lei.
Marcelo Villalva- Participamos da licitação. Uma licitação inclusive presencial, tudo certinho.
Fantástico - Pra quem foi o dinheiro?
Marcelo - Hã?
Fantástico - O dinheiro foi pra onde?
Marcelo - Ai, eu já não sei. Eu recebi, eu entreguei. O que eu recebi, eu entreguei.
Fantástico - Mas se você recebeu, você lucrou. Não sobrou nada pra você?
Marcelo - Sobrou alguma coisinha ai. Melhorar minha casa, comprar um carro. Coisinha pouca.
Fantástico - É muito dinheiro, Marcelo.
Marcelo - Não é R$4 milhões assim. Não é R$4 milhões que sobrou. R$ 4 milhões que eu tive que comprar.
A ex-jogadora Karina - que ocupa hoje o cargo de gerente da ONG “Pra Frente Brasil” - também disse que a ONG seguiu a lei e negou que as empresas contratadas sejam de fachada.
“Uma empresa que preencheu alvará, todas as certidões. Cumpriu todos os requisitos que ganhe, independente de quem seja”, diz Karina Valéria Rodrigues, gerente da ONG.
Karina também negou que Reinaldo Morandi, o dono da empresa - que recebeu mais de R$10 milhões para fornecer lanches seja seu assessor.
Karina - Converso muito com ele. Me assessora em algumas questões, de outros negócios e investimentos que eu gosto, mas nunca foi funcionário dessa entidade.
Fantástico - Nem da senhora?
Karina - Não. Eu só tenho no meu nome apenas minhas duas empregadas.
O advogado da ONG pede a Reinaldo Morandi, o assessor conhecido como Urso, que fale com nossa equipe.
Só depois disso, ele nos atende.
Fantástico - A Karina, ela que toma conta da loja do senhor? Do comércio do senhor?
Reinaldo - Jamais.
Fantástico - O senhor não trabalhou nem trabalhava diretamente com a Karina?
Reinaldo - Não. Com a Karina, não.
Fantástico - Nem foi assessor dela.
Reinaldo - Não. Eu fui assessor do prefeito de Jaguariúna.
Mas não foi isso que ele disse quando foi gravado por nossa câmera escondida
Fantástico - O que você faz com ela?
Reinaldo - Sou assessor dela. Eu trabalho com ela, diretamente.
Existe também uma ligação suspeita entre a ONG e uma outra empresa.
Karina usa um carro que está em nome da “SPL - promoções e eventos”.
O dono é Regivaldo Silva, que entre 2007 e 2010, participou da entidade da ex-jogadora.
Karina - Qual é o problema de ter o carro de uma empresa, uma empresa que nunca prestou serviço pra ONG.
Regivaldo Silva - Eu vendi o carro pra ela.
Fantástico - E ela não passou pra nome dela ainda?
Regivaldo Silva - Ainda não.
Para o Ministério Público, há indícios de que Regivaldo Silva seja mais um laranja do esquema.
Nossa equipe o encontrou trabalhando não na firma dele, mas na RNC - a que recebeu mais de R$10 milhões em contratos com a ONG.
Regivaldo da Silva - Eu faço um trabalho aqui, um bico, na verdade, não sou um funcionário.
Fantástico - Nunca foi ou já foi?
Regivaldo da Silva - Já fui.
“Aponta efetivamente uma irregularidade nessa situação. É descabido isso. Uma empresa que utiliza mão de obra da ONG que a contratou”, José Tadeu Baglio, promotor.
Agora, vamos ver como a ONG “Pra Frente Brasil” usa o dinheiro repassado pelo Ministério do Esporte.
Pelo convênio, a entidade precisa atender a 18 mil crianças e adolescentes. Em Iracemapólis, interior paulista, deveriam participar das atividades da ONG 300 alunos por dia.
Em 7 de outubro, contamos 146 - menos da metade. E não vimos os professores fazendo a chamada.
“A gente vai tomar as medidas necessárias pra que isso não aconteça. Essa é uma responsabilidade que o professor tem, estipulada em contrato de trabalho e uma função que ele tem que fazer”, diz Karina, gerente da ONG.
O Ministério do Esporte determina que as prefeituras também dêem uma ajuda financeira para manter o projeto. Iracemapólis pagou ano passado R$70 mil pra ONG.
O valor é fixo, sem levar em conta quantas crianças são ou não atendidas.
“Eu poderia te dizer que existe uma negligencia. Eu não sei se pode ser chamado dessa maneira. Mas o programa todo da ONG, ele é pra ser atendido 600 crianças”, Enyo Correa, secretario de Esportes de Iracemapolis.
Karina - a gerente da ONG - diz que as faltas são compensadas. “Nós fazemos uma vez por mês um evento proporcional sempre a 5, 6, 7 vezes às crianças que faltaram para aproveitar os seus lanches e ter essas atividades no município”, explica Karina.
A ex-jogadora Karina abriu a sede da ONG para nossa equipe. Mostrou documentos e o estoque da entidade. Disse que é a ONG "Pra Frente Brasil" é fiscalizada constantemente, que nunca foram encontradas irregularidades e que duas investigações já foram arquivadas.
“Nós gostamos e queremos ser fiscalizados porque isso nos diferencia de outras entidades e nos permite crescer com qualidade cada vez mais”, diz Karina.
O Ministro do Esporte é do mesmo partido de Karina, o PCdoB. Em agosto, Orlando Silva esteve na inauguração do programa “Segundo Tempo”, no Guarujá, mantido pela ONG “Pra Frente Brasil”.
“Haverá um repasse de R$850 mil da parte do governo federal”, afirmou Orlando Silva, Ministro do Esporte no dia 22/08/2011.
Hoje à tarde, em São Paulo, em entrevista ao Fantástico, o ministro reconheceu que pode ter havido falha na fiscalização da ONG “Pra Frente Brasil”. “Falha sempre é possível que haja, nosso papel, nossa missão é corrigi-las, me comprometo contigo a voltar a examinar, mais uma vez, os relatórios de comprometimento de objeto, das atividades que eles desenvolveram. Se não atende o número de crianças beneficiadas, pactuadas no convênio, nós exigimos a devolução daquela cota-parte que não foi atingida. Nós vamos investigar, apurar, checar todos os dados e responsáveis identificados serão, seguramente, punidos”, disse Orlando Silva, ministro do Esporte.
Este fim de semana, a revista Veja publicou acusações contra o ministro Orlando Silva, segundo reportagem, o PCdoB teria desviado dinheiro do programa Segundo Tempo, usando ONGs como fachada. Orlando Silva foi apontado como mentor e beneficiário desse esquema.
O policial João Dias Ferreira - que foi militante do PCdoB - disse à Veja que as ONGs só recebiam recursos se houvesse o pagamento de uma taxa de até 20% do valor dos convênios.
O PCdoB, ainda segundo a denúncia, indicaria também os fornecedores e as pessoas encarregadas de conseguir notas fiscais frias.
O motorista Célio Soares Pereira contou à Veja que entregava dinheiro pessoalmente a Orlando Silva na garagem do ministério. Em oito anos, o esquema teria desviado R$40 milhões.
“Eu afirmo, não há e não haverá nenhuma prova, porque nunca houve nenhum tipo de relação com essas pessoas. Eu vou mover, inclusive, uma ação penal por calúnia contra os dois. Porque eu tenho certeza que a justiça será feita. Eu vou defender e resgatar a minha honra. Nós também nos colocamos à disposição de ir ao Congresso Nacional, porque ninguém tem mais interesse em deixar claro que não tem nenhuma veracidade nesta matéria do que eu”, declarou Orlando Silva, Ministro do Esporte.
O Ministério do Esporte informou que os convênios com as ONGs que participam do programa segundo tempo não serão renovados.
Quanto às denúncias mostradas pelo Fantástico, o grupo do Ministério Público que combate o crime organizado em São Paulo encaminhou todas as informações para a Procuradoria da República, já que se trata de verba federal.
“Se você não tiver controle bastante rígido dessa frequencia desses jovens, você não tem como verificar se efetivamente esse serviço está sendo prestado”, afirma o promotor.