“Jornalismo é publicar algo que alguém não quer que seja publicado.
Todo o resto é publicidade.”
– George Orwell
FLAVIO MORGENSTERN
A Carta Capital publicou na capa dessa semana uma capa fictícia da revista Veja (uma capa dentro da capa), com uma foto de Roberto Civita, atual presidente da editora Abril, e a chamada: “O Nosso Murdoch”. A provocação tenta igualar Roberto Civita a Rupert Murdoch, que fechou um jornal no Reino Unido, o News of the World, após um escândalo revelar que o tablóide fazia escutas ilegais de políticos, celebridades e cidadãos comuns.
O assunto da Carta Capital é a Veja. A revista de Mino Carta apenas saiu do armário e admitiu que não tem muito mais do que falar. Ou alguém se lembra de algum escândalo que tenha sido descoberto pelo jornalismo investigativo da Carta Capital? Algum caso de corrupção flagrado por ela? Algum ministro derrubado?
Não é a primeira vez em que isso ocorre. Quando o escândalo dos aloprados veio à tona, todas as revistas cuidaram de publicá-lo na primeira página. Carta Capital, temendo ficar mal com seus asseclas, esperou, e publicou uma capa em que afirmava que o segundo turno das eleições havia sido produzido por uma “farsa” entre a tríada satânica, responsável por todos os males do mundo: o PSDB, a Veja e a Globo. Todo o busílis foi baseado no fato de que, quando o escândalo vazou, havia um carro do PSDB na frente do hotel antes mesmo de a imprensa lá chegar. É com esse tipo de “fato” que a Carta Capital faz “denúncia”.
A tática funciona. Ninguém, absolutamente ninguém no mundo lê Carta Capital para se informar, e sim para acreditar que não precisa se informar na imprensa maior de idade. A revista é apenas lida para se confirmar o que já se pensa. Seu público é de petistas e esquerdistas de quilates mais violentos. A revista, incapaz de produzir uma denúncia, cega aos trambiques de Brasília ou de qualquer lugar do país e do mundo, muda quanto a qualquer desvio de conduta do PT, funciona apenas para aqueles que querem continuar acreditando na ideologia iluminada da esquerda, e que não podem ler qualquer jornal sem o alto risco de não conseguir mais sustentar a crença na competência e honestidade vermelha.
Suas relações com o governo são desabridas. Suas páginas têm um percentual altíssimo de propaganda estatal ─ percentual absurdamente maior do que o que há em qualquer outra revista. Uma propaganda pode servir para apresentar um produto novo (as vendas do SWU dos pôneis no ano passado valem um curso de marketing), para vendê-lo diretamente (como os anúncios em nossa própria página, ali do lado) ou para firmar uma marca. Como muitas das empresas estatais não têm concorrência, ou ao menos não precisam jogar regras de mercado para se preocupar com elas, não há produtos novos e nem venda direta, resta este último artifício.
Porém, por que firmar tanto a marca de uma empresa às vezes sem concorrentes ─ vamos supor, uma hipotética grande estatal de petróleo? Quando a propaganda não tem retorno auferível em números, e o dinheiro escorre em mão única, é de muito mais bom alvitre compreender que a empresa só está fazendo “propaganda” para financiar uma revista que lhe ajude de volta, falando bem do governo ─ uma espécie de Diário Oficial do Partido, com diagramação de semanal e texto mastigadinho para o leitor médio. Se a artimanha ainda soa teórica, analisemos em números: a Carta Capital possui tiragem média de 75 mil exemplares (menor do que o número de alunos da USP). A Veja possui tiragem de 1,2 milhões. Se você quer “firmar a marca” da estatal de sua preferência (mesmo aquelas sem concorrência, como a empresa de postagem e a de petróleo), em qual das duas revistas vai apresentar a marca ao povão? Nenhum leitor da Carta estranha o fato de o governo que a revista do Mino tanto elogia preferir entupir suas páginas com uma porcentagem muito maior de propaganda estatal. Nunca é demais lembrar: a Carta Capital oferecia desconto em assinatura para filiados ao PT, e a mamata só acabou por denúncia. Da Veja.
Com uma tiragem tão ínfima, é natural que ninguém, fora quem acreditará no Partidão não importa o que a realidade diga, se preocupe com suas páginas. Há também o fator psicológico: Mino Carta já trabalhou com Civita, depois preferiu o reino mais rentável de bajular os adversários da Veja. Primeiro partiu para a defesa de Orestes Quércia, depois chegou no PT e na operação “a culpa é toda da mídia golpista”. Só um psicanalista sem mais o que fazer se preocuparia com a saúde e higiene mental das páginas da Carta Capital. Ou seja, sempre sobra para nós o trabalho paleontológico e pouco higiênico de descer às crostas do jornalismo do Reino Monera.
O nosso capachão
Em coluna de Maurício Dias, após um sem número de ilações e dislates pouco substanciosos sobre a Veja (a velha tática de afirmar generalidades como prova, à guisa de “a revista sapateia as regras do jornalismo”), há um clímax que ultrapassa muito as raias do delírio. Afirmando que “a imprensa brasileira, particularmente, tem assombrosos erros históricos” (erros históricos? alguma nasceu na data errada? alguma publicou algo antes de ela própria existir?), o “prontuário inclui, entre outros, a participação na pressão que levou Vargas ao suicídio, em 1954″. Tradução: se a imprensa faz pressão sobre uma figura pública, um governante, um presidente ou um ditador, ela, a imprensa, está cometendo um erro histórico. Onde já se viu uma coisa dessas?! Liberdade de imprensa não é liberdade para fazer pressão sobre ditadores ─ ainda mais se estes pedem pinico. A Carta Capital usa um argumento pior do que os lunáticos da FOX News, que atribuem à “mídia golpista da Costa Leste” o escândalo que derrubou Nixon. Deixando bem claro: Nixon, um dos piores presidentes do século, estava longe de ser um ditador como Getúlio Vargas.
Antes da “bombástica” matéria de capa, também a coluna do próprio Mino Carta, que exige um grau de leitura very hard, já tasca de cara que a Mino também afirma que “a corporação é o próprio poder” (interpretem aí), “de sorte a entender liberdade de imprensa como a sua liberdade de publicar o que bem lhe aprouver. A distorcer, a inventar, a omitir, a mentir”. Descontando a velha ojeriza pela liberdade de imprensa dos outros, é o tipo de acusação que faz leitores da Carta Capital jurarem que provaram que sua nêmesis “distorceu, inventou, omitiu e mentiu”, sem apontar uma única linha que comprove o fato.
Ao marcar cada frase da reportagem principal passível de discussão em caneta vermelha, as páginas ficam mais vermelhas do que o jornal do PCO.
A tal reportagem, assinada por Cynara Menezes, afirma que “Veja serviu antes de tudo aos interesses políticofinanceiros (sic) de um grupo organizado de criminosos”. O fato é que Veja usou Cachoeira como fonte ─ o que denunciou a quadrilha do Ministério dos Transportes / Dnit que Dilma mesma acabou por demitir em massa. A quadrilha do Dnit era um aparelhamento de cima abaixo orquestrada por José Dirceu. Havia uma encrenca entre Dirceu e Cachoeira. Para denunciar Dirceu, Veja usou quem tinha as melhores fontes possíveis: seu arqui-inimigo. Alguém aí pensaria em fonte diferente? E por acaso, inverter a lógica também não funcionaria? Criticar Cachoeira acaso seria “servir aos interesses politicofinanceiros (bleaght) de Dirceu”? Ademais, Dirceu e Cachoeira estarem concorrendo em algo já não é vergonha demais pra um país só?
Reportagem dessa mesma semana no semanário da Abril mostra fotos de Sérgio Cabral na esbórnia em hotéis caríssimos de Paris com Fernando Cavendish, presidente da construtora Delta, atolada, pode-se dizer literalmente, nas obras superfaturadas que forneceram o mar de dinheiro sujo que gerou todo o atual escândalo. As fotos foram publicadas no blog de Anthony Garotinho e de César Maia, ambos inimigos entre si, mas também inimigos de Sérgio Cabral na velha disputa pelo governo do Rio de Janeiro. Acaso Veja estaria “servindo antes de tudo aos interesses políticofinanceiros (
sic)” de Garotinho e Maia? Devemos ignorar as fotos graças às fontes? Será que Carta Capital teria coragem de, ao invés de informar uma generalidade, com todas as fontes “melhores” que possui e o jornalismo investigativo de maior qualidade que julga praticar, afirmar claramente qual crime arrolado no Código Penal a revista Veja teria cometido? Tim Lopes, se sobrevivesse, deveria então ser investigado por uma CPI?
Seguem-se três longos parágrafos (cerca de 40% das primeiras 2 páginas de 5) de ilações sobre Rupert Murdoch. É uma comparação tão infundada que ultrapassa os limites da boa-fé. Murdoch praticou escutas ilegais. Veja tinha uma fonte que cagüetou falcatruas de um inimigo. Nenhuma atitude minimamente similar, que dirá qualquer crime, para haver tanta vontade de pechar Civita como “o nosso Murdoch”. Os que adoram criticar a Veja, por sinal, não se furtam a pegar opiniões de gente muy amiga dos chefões das falcatruas inimigas. Quantas vezes por aí você viu
Luis Nassif, Vladimir Safatle, Paulo Henrique Amorim et caterva lado a lado a José Dirceu, em evento com dinheiro público , onde todos falam, justamente, sobre mídia? Quem pode dizer que “Nassif, Safatle e Paulo Henrique Amorim servem antes de tudo aos interesses politicofinanceiros de José Dirceu”? E não soa, assim, até crível tal hipótese?
A própria reportagem dá ensejo a tal idéia logo após. Os encontros de José Dirceu, ex-ministro todo poderoso apeado do cargo por ser considerado o “chefe da quadrilha” pelo Procurador Geral da República, aparece como vítima da “parceria Veja-Cachoeira”, quando Dirceu dá queixa na polícia após um repórter da revista tentar entrar no apartamento em que se hospedava em um hotel de Brasília.
A defesa do “chefe da quadrilha”, ao invés de mostrar alguma prova de algo, é prestar uma queixa contra um repórter meio atrapalhado? A reportagem ainda questiona: “qual a relevância da divulgação de encontros feitos à luz do dia em um local público da capital federal?” Ora, um hotel não é um local público, ou Dirceu não poderia dar queixa. E que relevância tem um ex-ministro envolvido em denúncias que somam 111 anos de prisão fazer encontros com o presidente da Petrobras, o ministro do Comércio Exterior, além de deputados do porte de Vaccarezza e senadores (dois do PSDB, pra quem acredita que é uma disputa partidária em jogo)? Não há nada de estranho nisso? Não há nada a estranhar de Dirceu ter sido contratado pela Delta como uma assessor empresarial da única empresa do ramo inteiramente baseada em contratos públicos? Aliás, da principal empresa do PAC, defendido tão aguerridamente pela Carta Capital?
Diz a Carta: “Cachoeira afirma que ‘arrumou uma fita’ para o repórter, mas não especifica como”. Fala que a “intimidade” do contraventor com o diretor da Veja Policarpo Jr. é “inegável”, pois o bicheiro em uma gravação o chama de “Poli”. Humm. Ouvindo a gravação por inteiro, vê-se que é Cláudio Abreu, executivo da Delta, quem fala sobre o “PJ”, e Cachoeira sequer entende de quem Abreu estava falando. A Record acredita que isso é um “apelido íntimo” que Policarpo ganhou… de Cachoeira.
Intimidade inegável? Pode até ser que houve intimidade, mas se isso é prova de intimidade, não quero imaginar quantos amigos íntimos tenho pela quantidade de pessoas que abreviam meu sobrenome. Por sinal, até a própria Carta admite que a
Veja publicou em suas próprias páginas conversas de seu repórter com Cachoeira. Alguém que praticaria “toma lá dá cá” faria o mesmo?
Para a Carta, isso foi um “toma lá dá cá”. Misteriosamente, não houve menção nem na Carta Capital, nem na reportagem orquestrada por Paulo Henrique Amorim na Record, da reclamação de Cachoeira pela falta de contrapartida de Policarpo pelos favores que lhe prestou (embora tanto a revista de Mino quanto a Record não parem de repetir uma tal “troca de favores”). Como era mesmo o papo sobre “distorcer, inventar, omitir, mentir”?
Há informações completamente desconexas e sem provas, como Cachoeira “utilizar” a Veja para “promover” Demóstenes Torres. Se até a cúpula do PT acreditava na lisura de Demóstenes, qual a prova de que só a toda-poderosa Veja conseguiu passar sozinha tal imagem do senador? Que prova tem de que “a revista sabia das relações carnais (
sic) de um senador com um contraventor, e não só não o denunciou, como o promoveu constantemente”? A primeira ligação de Demóstenes com Cachoeira surgiu, justamente, na Veja: mais especificamente no blog de
Ricardo Setti. Ou foi o jornalismo investigativo politicamente correto da Carta Capital que descobriu alguma coisa?
Ultrapassa portanto o ápice do ridículo ler Carta Capital reclamando de “‘denúncias’ sem comprovação” (aspas do original), de “buscar o contraditório” (vão oferecer desconto em assinatura para filiados ao PSDB também?) e de fontes com “problemas legais” (e defender a teoria conspiratória da “farsa que levou ao segundo turno” em 2006 ao mesmo tempo). É apenas uma aleivosia que só converte os já convertidos, uma retórica malemolente que acha que citar Merval Pereira, que esmirilha de cabo a rabo tal acusação, e chamá-lo de “funcionário dos Marinho” depois é prova suficiente de que Merval está errado. Mas o mais divertido foi ver uma reclamação de “falta de capas” da Veja sobre o escândalo (embora tenha havido duas, e chamadas de capa em todas as últimas sete edições), no mesmo fim de semana em que a Veja publica uma curiosa capa desenhada (e, portanto, bem pensada e demorada) incriminando toda a turma de Cachoeira, situação e oposição, todos naufragando no mesmo barco. Quer dizer, alguns já sem barco.
AGUSTO NUNES
REV VEJA