Com o passar dos anos, as pessoas mudam muito. Por exemplo: a Dilma que foi ao ar na noite desta segunda-feira no
Jornal Nacional
não tinha nada a ver com a Rousseff que prevaleceu na sucessão de 2010
como protótipo da eficiência gerencial. Em menos de quatro anos, a
personagem perdeu o colorido e o discurso. Hoje, surpreende mais pelas
perguntas que é obrigada a ouvir do que pelas respostas que não consegue
dar.
Já na primeira pergunta, Willian Bonner pronunciou o
vocábulo “corrupção” uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes.
No seu governo houve uma série de escândalos de corrupção, disse
ele. Houve corrupção na pasta da Agricultura, corrupção nas Cidades, nos
Esportes… Houve escândalo de corrupção na Saúde, nos Transportes… Houve
corrupção no Turismo, no Trabalho… A Petrobras é alvo de duas CPIs.
Bonner,
finalmente, indagou: qual é a dificuldade de se cercar de pessoas
honestas, que lhe permitam formar uma equipe de governo honesta, que
evite esta situação que nós vimos de repetidos casos de corrupção? Não
há uma sensação no ar de que o PT descuida da questão da corrupção?
A
Dilma de 2010, durona e irascível, talvez colocasse o inquiridor
petulante para fora da biblioteca do Alvorada a pontapés. A Rousseff de
2014, treinada para suportar o insuportável, repetiu o mesmo lero-lero
ensaiado que vem recitando na série de entrevistas e sabatinas que a
campanha eleitoral lhe impõe.
No meu governo e no do presidente
Lula, a Polícia Federal ganhou autonomia, ela respondeu. Nos nossos
governos, o procurador-geral não é chamado de engavetador-geral da
República. Criamos a CGU e a Lei de Acesso à Informação, blá, blá, blá…
Antes
famosa por mandar para o olho da rua ministros pilhados em malfeitos,
Dilma agora defende o lixo que varreu. Muitos daqueles que foram
identificados pela mídia como praticantes de atos indevidos foram
posteriormente inocentados, declarou, abstendo-se de dar pseudônimo aos
bois.
E Bonner: em quatro casos de corrupção, a senhora trocou um
ministro por alguém que era do mesmo partido e do mesmo grupo político.
Isso não é trocar seis por meia dúzia? Nesse ponto, Dilma citou como
evidência do apuro ético de sua administração o caso da chantagem do PR.
Em troca de 1min15s de propaganda no rádio e na tevê, o partido do
mensaleiro preso Valdemar Costa Neto exigiu a demissão do ministro Cesar
Borges (Transportes).
Fui muito criticada por ter substituído o
César Borges pelo Paulo Sérgio, declarou a presidente-candidata. Ora, o
Paulo Sérgio foi meu ministro e foi ministro do presidente Lula. Quando
saiu do ministério, ele ficou dentro do governo noutro cargo importante,
que é da Empresa de Planejamento Logístico. O Cesar Borges o
substituiu. Posteriormente, eu troquei o César Borges novamente pelo
Paulo Sérgio. E o César Borges também ficou dentro do governo, na
Secretaria de Portos. Os dois são pessoas que eu escolhi.
Mas não
foi exigência do partido?, estranhou Bonner. Dilma enforcou-se com a
própria corda: os partidos podem fazer exigências, ela consentiu. Mas eu
só aceito quando considero que ambos são pessoas íntegras, competentes,
com tradição na área. Troquei porque eu tinha confiança nessas pessoas.
Hummm… O telespectador ficou sem entender porque Dilma entregou o
escalpo de Cesar Borges ao PR, partido de notória reputação, se o
considerava um ministro assim, digamos, irrepreensível.
Na
sequência, Bonner esfregou, por assim dizer, o mensalão na face da
anfitriã. Seu partido teve um grupo de elite de pessoas corruptas,
declarou. Comprovadamente corruptas, enfatizou. Foram julgadas,
condenadas e enviadas à prisão, voltou a realçar. Eram corruptos,
insistiu. E o PT tratou esses condenados por corrupção como guerreiros,
vítimas de injustiça. Isso não é ser condescendente com a corrupção?
A
exemplo do que fizera noutras entrevistas, Dilma recorreu à
desconversa: eu sou presidente da República, afirmou, como se desejasse
convencer-se a si própria de sua condição privilegiada. Não faço nenhuma
observação sobre julgamentos realizados pelo Supremo Tribunal Federal.
Sabe por quê? Porque a Constituição exige que o presidente da República
respeite a autonomia dos outros Poderes.
Mas a senhora condena o
comportamento do PT?, insistiu o entrevistador. Eu tenho minhas opiniões
pessoais, mas não julgo ações do Supremo, Dilma voltou a escorregar.
Bonner insistiu: e quanto à ação do partido? Enquanto eu for presidente,
não externo opinião a respeito de julgamento do Supremo, repetiu a
entrevistada, como um disco de vinil arranhado.
Entre venenoso e
generoso, Bonner ofereceu a Dilma uma derradeira oportunidade para
distanciar sua presidência do escândalo que tisnou a gestão do
padrinho-antecessor: mas candidata, a pergunta que eu lhe fiz foi sobre a
postura do seu partido. Qual sua posição a respeito da postura do seu
partido?
Mais
lulodependente do que nunca, Dilma preferiu
arrastar as correntes dos fantasmas alheios: não vou tomar nenhuma
posição que me coloque em confronto com o STF, aceitando ou não. Eu
respeito a decisão da Suprema Corte brasileira. Isso não é uma questão
subjetiva. Para exercer a Presidência, eu tenho de fazer isso.
De
duas, uma: ou Dilma concorda com Lula, que disse que o julgamento dos
mensaleiros foi “80% político”, ou aprova as condenações e silencia
apenas para não fazer a pose de um navio abandonando os ratos. O petismo
não toleraria tamanha afronta.
Patrícia Poeta mudou de assunto.
Corrupção não é o único problema, disse ela. A saúde continua sendo a
maior preocupação dos brasileiros, segundo o Datafolha. Isso depois de
12 anos de governos do PT. Mais de uma década não foi tempo suficiente
para colocar a saúde nos trilhos?
Convidada a fazer um balanço de
três mandatos, Dilma falou do Mais Médicos, um programa improvisado em
cima da perna, no ano passado, nas pegadas do ronco das ruas de junho.
Nós enfrentamos um dos mais graves desafios que há na Saúde, a candidata
afirmou. Nós tivemos uma atitude muito corajosa, ela acredita.
Contratamos 14.462 médicos, incluindo os cubanos. Cinquenta milhões de
brasileiros que não tinham atendimento médico passaram a ter.
A
entrevistadora foi ao ponto: a senhora diria, então, diante dos nossos
telespectadores, que enfrentam filas e filas nos hospitais, que muitas
vezes são atendidos em macas e não conseguem fazer um exame de
diagnóstico, que a situação da Saúde no nosso país é minimamente
razoável depois de 12 anos de governos do PT?
Não, não acho, não
acho, viu-se compelida a admitir Dilma, com a ênfase de três negativas.
Quando se imaginava que ela serviria às câmeras uma autocrítica, a
candidata dividiu as culpas com governadores e prefeitos. O Brasil
precisa também de uma reforma federativa, porque há responsabilidades
federais, estaduais e municipais, disse Dilma, antes de repisar a tese
segundo a qual o Mais Médicos levou 50 milhões de brasileiros para o
Éden da saúde.
Cutucada sobre a inflação alta e o PIB baixo, Dilma
serviu o kit básico de desculpas: a crise internacional, o excesso de
pessimismo e a perspectiva de melhorias neste segundo semestre.
Convidada a utilizar os segundos finais da entrevista para enumerar seus
planos para o segundo mandato, declarou o seguinte:
“Fui eleita
para dar continuidade aos avanços do governo Lula. Ao mesmo tempo, nós
preparamos o Brasil para um novo ciclo de crescimento. O Brasil moderno,
mais inclusivo, mais produtivo, mais competitivo. Nós criamos as
condições para o país dar um salto, colocando a educação no centro de
tudo. E isso significa, Bonner, que nós queremos continuar a ser um país
de classe média. Cada vez maior a participação da classe média, mais
oportunidades para todos… Eu acredito no Brasil. Acho que, mais do que
nunca, todos nós precisamos acreditar no Brasil e diminuir o pessimismo.
E peço o voto dos telespectadores e…'' Acabou o tempo, interrompeu
Bonner.
Restou a impressão de que, por mais que seus sucessivos
entrevistadores tentem, Dilma nunca vai chorar pelo leite derramado
durante o seu governo. O diabo é que os 35% de eleitores que a rejeitam
parecem achar importante saber quem derramou o leite, por quê e em que
circunstâncias… Até para que o fenômeno não se repita num eventual
segundo mandato.
Dilma pede um voto de confiança. Mas um
telespectador refratário à reeleição talvez pergunte aos seus botões:
por que diabos eu deveria confiar uma bandeja com um copo de leite a uma
presidente que se esquiva de explicar desastres que envergonhariam
qualquer garçom de boteco? Aliás, se fossem repetidas num botequim,
algumas das perguntas que soaram no Alvorada talvez terminassem numa
troca de sopapos. Mas a Dilma de 2014 já não é a mesma Rousseff de 2010.
Ela mudou muito. E não deixou endereço.
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Serviço:
aqui, a íntegra da entrevista
DO JOSIASDESOUZA