Coube a presidentes do Supremo Tribunal Federal (STF) comandar os julgamentos de impeachment dos ex-presidentes Fernando Collor e Dilma Rousseff por um motivo que não tem mais nenhuma razão de ser. O afastamento definitivo de um chefe do Executivo que viole a Lei de Responsabilidade Fiscal, tendo cometido, portanto, um crime funcional (contra a sociedade, e não contra pessoa ou patrimônio individual), é feito conforme lei de 1950, aprovada sob a égide da Constituição de 1946, que tomou emprestado um princípio do ordenamento jurídico dos EUA. Isso porque o maior beneficiário do processo, o vice-presidente que assume o posto vago, presidia o Senado. Se não houve nos últimos 38 anos nenhuma razão para reformular o dispositivo, pois não existe mais esse tipo de suspeição, agora há.
Não pairam dúvidas sobre as decisões tomadas por Sydney Sanches, presidente do STF em 1992, no primeiro impeachment. Mas não dá para dizer o mesmo de Ricardo Lewandowski nos 101 dias que se passaram do afastamento da presidente Dilma Rousseff, em 12 de maio, a 31 de agosto último, quando a ré foi condenada à perda definitiva do cargo. Ao contrário do julgamento de 24 anos atrás, o mais recente foi pródigo em decisões parciais de seu presidente, manifestadas em pequenos gestos que passaram despercebidos por sua inutilidade. Mas vieram à tona por ter ele permitido riscarem o texto constitucional na sessão final do processo.
Entre várias demonstrações públicas de preferência pela defesa, o juiz supremo qualificou o advogado da presidente, José Eduardo Martins Cardozo, como “nosso”, aparentemente um ato falho, definido por Sigmund Freud como lapsus linguae em sua obra clássica Psicopatologia da Vida Cotidiana. Quem quiser saber o que causa o lapso está convidado a ler o belo texto do pai da psicanálise. O mesmo descuido não pode, contudo, atenuar o agradecimento ao senador Aécio “Néscio” (estúpido, incapaz, inepto), que parece não ter percebido a graçola ofensiva.
A veloz desqualificação dos testemunhos do procurador Júlio Marcelo de Oliveira e do auditor Antônio Carlos Costa Dávila Carvalho, do Tribunal de Contas da União (TCU), foi outra interferência vã de Lewandowski, cuja inutilidade não o abrigará sob o cobertor da imparcialidade. O rebaixamento de testemunhas a informantes por motivos fúteis não bastou para desqualificar a evidência do dolo da ré em seu enquadramento na violação dos preceitos legais, pela qual foi acusada e condenada. A permissividade gozada pela “bancada do chororô” e pelo deputado José Nobre Guimarães, que se manifestaram histericamente contra posições adversas, foi negada a Magno Malta, pelo “crime” de cantarolar.
Nada disso, contudo, impediu que fossem negados ao ministro atributos de excelência imparcial e serena de poderoso chefão da Corte por senadores insuspeitos de serem beneficiados por suas farpas venenosas. Como o próprio Aécio, que é Neves, como de conhecimento geral, sendo como é neto de Tancredo Neves, e não “Néscio”, e o líder do PSDB na Casa, Cássio Cunha Lima.
Este protagonizou com o chefe do julgamento debate sobre a canetada inesperada que alterou a Constituição, mercê da qual o presidente do Supremo (até segunda-feira, dia 12, quando passará o cargo à ministra Cármen Lúcia) permitiu a um terço dos senadores dispensar a condenada de cumprir pena. Quando Lewandowski acolheu o destaque proposto por um representante do Rede de Marina Silva, Randolfe Rodrigues, para aleijar o parágrafo único do artigo 52 da Constituição, Cássio Cunha Lima advertiu que os líderes haviam combinado que a votação não seria “fatiada”. Reza o artigo: “(…) limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. Há dúvidas?
Ao fazê-lo, Lewandowski rasgou o acordo com as lideranças e permitiu-se ler um longo arrazoado previamente preparado, em que cometeu a heresia de sobrepor à Constituição artigos de uma lei anterior a ela e os regimentos do Senado e da Câmara – e o papel desta no impeachment terminou quando autorizou aquele a cumprir sua função julgadora. Nunca antes na História o guardião-mor da Carta Magna a rasurou de forma tão cabal. Com isso mudou o sentido da preposição com, definida na página 765 do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa como algo que “relaciona por subordinação”.
Convém ainda lembrar que Sua Excelência empreendeu essa desmoralização do Estado de Direito e da gramática após advertir que qualquer decisão dependia dos senadores, e não dele. Só que para configurar isso teria de ter posto em votação (por maioria simples) se a maior parte deles seria ou não cúmplice dele no “fatiamento” do presunto jurídico. Assim, a maioria qualificada de dois terços passou a ser exigida dos julgadores que lutavam para manter íntegra a norma máxima, que só pode ser mudada por três quintos dos congressistas. Isso não foi discutido, embora Cássio tenha lembrado que a Constituição seria reformada por apenas um terço dos senadores. O resultado – 42 a 36 – incluiu na matemática das reformas da Lei Suprema a paródia pelo avesso do anúncio de uma marca de embutidos: “só se for a pau, Juvenal”.
A adoção do lema com que Jarbas Passarinho saudou o AI-5 no auge autoritário da ditadura civil-militar de 1964 – “às favas com os escrúpulos”, título de comédia de Juca de Oliveira – foi reprovada pelo decano do STF, Celso de Mello, e pelo ministro Gilmar Mendes, que a chamou de “bizarra”. O capitão do time constrangeu seus dez colegas a confirmarem seu deslize, esclarecendo que o pressuposto da condenação só vale para impeachment de presidente, sob pena de criarem precedente que beneficiaria astutos inspiradores dessa manobra espertinha. Ou jogarão o País no pré-sal da crise fatal. Publicado no Estadão - DO A.NUNES