segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

‘Por trás da maquiagem, a crise real da indústria’, um texto de Rolf Kuntz

O pior saldo comercial em 13 anos ─ o pitoresco e discutível superávit de US$ 2,56 bilhões ─ está longe de ser um desastre isolado. Os números da balança retratam com precisão a crise brasileira: uma indústria com enorme dificuldade para competir, o descompasso entre consumo e produção, a política econômica feita de remendos e improvisações e a dependência cada vez maior de uns poucos setores ainda eficientes, com destaque para o agronegócio e a mineração. O menos importante, nesta altura, é apontar a exportação fictícia de plataformas de petróleo, no valor de US$ 7,74 bilhões, como evidente maquiagem dos números. Muito mais instrutivos, nesta altura, são outros detalhes. Uma dissecção da balança comercial, mesmo sumária, dá uma boa ideia dos estragos acumulados na economia em dez anos, especialmente nos últimos seis ou sete.

Sem os US$ 7,74 bilhões das plataformas, a exportação de manufaturados fica reduzida a US$ 85,35 bilhões. Para igualar as condições convém fazer a mesma operação com os números de 2012. Eliminada a plataforma de US$ 1,46 bilhão, a receita desse conjunto cai para US$ 89,25 bilhões. Sem essa depuração, o valor dos manufaturados cresceu 1,81% de um ano para o outro, pela média dos dias úteis. Com a depuração, o movimento entre os dois anos é uma assustadora queda de 5,13%.
Alguns dos itens com recuo de vendas de um ano para o outro: óleos combustíveis, aviões, autopeças, veículos de carga, motores e partes para veículos e motores e geradores elétricos. No caso dos aviões, a redução de US$ 4,75 bilhões para US$ 3,83 bilhões pode estar relacionada com oscilações normais no ritmo das encomendas e da produção. Mas o cenário geral da indústria é muito ruim. No caso dos semimanufaturados, a diminuição, também calculada pela média dos dias úteis, chegou a 8,3%.
Não há como atribuir esse resultado à crise internacional, até porque várias economias desenvolvidas, a começar pela americana, avançaram na recuperação, Para a América Latina e o Caribe, grandes compradores de manufaturados brasileiros, as vendas totais aumentaram 5,6%. Mesmo para a Argentina as exportações cresceram 8,1%, apesar do protecionismo.
O problema no comércio com os mercados desenvolvidos está associado principalmente ao baixo poder de competição da indústria, ou da sua maior parte, e às melhores condições de acesso de produtores de outros países. Mas essa é uma questão política. O governo brasileiro rejeitou em 2003 um acordo interamericano com participação dos Estados Unidos. Com isso deixou espaço a vários países concorrentes. No caso da União Europeia, o grande problema tem sido o governo argentino. É o principal entrave à conclusão do acordo comercial em negociação desde os anos 1990.
O Mercosul, promissor na fase inicial, tornou-se um trambolho com a conversão prematura em união aduaneira. Os quatro sócios originais nunca chegaram sequer a implantar uma eficiente zona de livre-comércio. Mas foram adiante, assumiram o compromisso mal planejado da Tarifa Externa Comum e aceitaram as limitações daí decorrentes. Nenhum deles pode, sozinho, concluir acordos ambiciosos de liberalização comercial com parceiros estranhos ao bloco.
De vez em quando alguém sugere, no Brasil, o abandono da união aduaneira e o retorno à condição de livre-comércio. Poderia ser um recomeço muito saudável, mas o governo brasileiro nem admite a discussão da ideia. A fantasia de uma liderança regional ─ obviamente associada ao terceiro-mundismo em vigor a partir de 2003 ─ tem sido um entrave ainda mais danoso que as amarras da fracassada união aduaneira.
Em 2013 o pior efeito da crise global, para o Brasil, foi a redução dos preços de commodities. Apesar disso, o comércio do agronegócio foi muito bem. Até novembro, o setor exportou US$ 93,58 bilhões de matérias-primas e produtos elaborados e acumulou um superávit de US$ 77,88 bilhões. O saldo final deve ter superado US$ 80 bilhões, valor anulado com muita folga pelo déficit da maior parte da indústria.
Em dezembro, só as vendas de milho em grão, carnes bovina e de frango, farelo e óleo de soja, café em grão, açúcar em bruto e celulose renderam US$ 3,87 bilhões. O quadro especial do setor, com valores discriminados e reorganizados, aparecerá, como sempre, no site do Ministério da Agricultura. Os números serão os do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, mas a arrumação seguirá um critério diferenciado.
No caso do agronegócio, o poder de competição reflete os ganhos de produtividade acumulados em três décadas, além da manutenção, nos últimos anos, de um razoável volume de investimentos setoriais, como as compras de caminhões e máquinas em 2013. A eficiência tem sido suficiente para compensar, mas só em parte, as desvantagens logísticas.
Quando um setor respeitado internacionalmente mal consegue embarcar seus produtos, é quase uma piada insistir na conversa do câmbio como grande problema da economia nacional. Mas a piada convém a um governo com graves dificuldades para formular e executar uma política de investimentos públicos e privados.
Ainda no capítulo do humor, um lembrete sobre as exportações fictícias de plataformas: o expediente foi realmente criado em 1999 para proporcionar benefícios fiscais à atividade petrolífera. Até o ministro da Fazenda, Guido Mantega, citou esse fato em entrevista. Mas essas operações nunca foram usadas tão amplamente quanto no último ano. Em 2012, esse item rendeu US$ 1,46 bilhão à contabilidade comercial. Em 2013, US$ 7,76 bilhões, com aumento de 426,4% pela média diária. Apareceu no topo da lista de manufaturados, acima de automóveis, aviões e autopeças. Mas nem isso disfarçou os problemas de uma indústria enfraquecida por anos de incompetência e irresponsabilidade na política econômica
Publicado no Estadão
ROLF KUNTZ

A Copa do Mundo e o marketing oficial do terror preventivo. Ou: O petismo de TPM. Ou ainda: a bola, o aborto e o kit gay

Que título estranho, não? Como é que essas coisas se juntam? Eu mostro. Preparados para a retomada num texto, digamos assim, looongo?
A escumalha a soldo que serve ao governismo na imprensa e no subjornalismo pôs para circular uma teoria conspiratória: a direita — sempre ela, coitadinha! — estaria tramando os piores ardis fara fazer com que a Copa do Mundo seja um fiasco. A trama uniria setores da oposição e a imprensa independente. O objetivo da sabotagem seria, claro!, destituir Dilma Rousseff. E como a tal “direita” faria isso? A canalha não diz. Não diz porque se trata de uma fantasia, de uma mentira estúpida. Os petistas e seus satélites instrumentalizam o marketing do terror preventivo para silenciar a crítica. Não é a primeira vez que recorrem a essa estratégia. Infelizmente, a imprensa séria e as oposições costumam cair no truque. Vamos ver.
O governo brasileiro torrou e está torrando uma fábula, ainda não-calculada, para realizar a Copa. Muitas obras de infraestrutura, especialmente as de mobilidade, previstas no plano original não foram realizadas. O governo as trocou pela decretação de feriado, mudança no calendário escolar, jeitinhos… Seis dos 12 estádios, que deveriam ter sido inaugurados até dezembro do ano passado, ainda não estão prontos. Joseph Blatter, presidente da Fifa, disse jamais ter presenciado atraso tamanho. Ele está na organização desde 1975. Já batemos o primeiro recorde: “nunca antes na história da Fifa…”
Pior: alguns desses estádios serão mesmo elefantes brancos, futuras ruínas. A realização do torneio em tantas capitais foi decidida por um misto de populismo com delírio de grandeza. A brasileirada ficou sem o metrô, as estradas, as vias de acesso… Mas ganhou monumentalidades inúteis. E, no entanto, teremos, sim, Copa do Mundo. Se o Brasil for campeão, Dilma Rousseff pode ganhar ou perder a eleição. O mais provável é que ganhe. Se o Brasil não for campeão, Dilma Rousseff pode ganhar ou perder a eleição. O mais provável é que ganhe. Qual a razão da TPM, da Tensão Pré-Mundial?
Ora, a campanha eleitoral já começou. Os petistas sempre foram muito hábeis em vender o que não fizeram, mas são ainda melhores quando se trata de atribuir a adversários defeitos e intenções que não têm. De resto, é preciso que se esclareça: uma oposição que explorasse os erros e a incompetência do governo na realização da Copa do Mundo ou de qualquer outro evento estaria apenas cumprindo a sua função, a sua obrigação, a sua missão, o seu mandato — adquirido nas urnas: opositores existem para vigiar o governo, apontar as suas falhas e tentar tomar o seu lugar quando há eleições, segundo as regras do jogo. Se a incompetência do governo Dilma for parar no horário eleitoral de seus adversários — coisa em que não acredito —, estaremos apenas diante do corriqueiro em sociedades livres.
Quanto à imprensa, não há muito o que dizer além do óbvio: há aquela que se financia na sociedade — por meio da publicidade privada e das assinaturas — para reportar o que tem de ser reportado, segundo os valores conhecidos por seus leitores, telespectadores, ouvintes e internautas, e há aquele outro “negócio”, financiado com dinheiro público, para fazer propagada governista e difamar seus adversários e críticos. E não custa lembrar de um terceiro grupo: os infiltrados. São agentes do oficialismo que escrevem na grande imprensa, aproveitando-se, para fazer proselitismo, da vantagem que esta lhes oferece e que eles próprios jamais ofereceriam a seus adversários se tivessem o poder que almejam: a pluralidade. Sigamos.
TPM
Sim, existe uma compreensível Tensão Pré-Mundial no governo Dilma. Teme-se o renascimento das manifestações de junho, coisa na qual não acredito — e já digo por quê. Depois de quase 12 anos de petismo no poder, as fragilidades do arranjo e as promessas não-cumpridas são evidentes. Nada, infelizmente, entendo eu, que possa tirar a reeleição de Dilma. O governo tem âncoras outras, que dispensam a eficiência. A máquina assistencialista, que passou a ser chamada, à direita e à esquerda, de “redistribuição de renda”, tem ocupado boa parte do espaço que caberia à política.
“Política” é e será sempre o nome do jogo — e é precisamente nesse ponto que passa a operar o marketing do terror preventivo. Os petistas e sua máquina de propaganda demonizam a divergência com uma eficiência que não se viu nas duas grandes ditaduras do século passado: a do Estado Novo e a militar. A crítica é tratada como sabotagem. Assim, apontar as ineficiências do governo na realização da Copa do Mundo ou demonstrar os desastres de Guido Mantega na condução das políticas monetária, cambial e fiscal não seriam ações compreendidas no escopo da democracia. Nada disso! Num caso e noutro, interesses inconfessáveis estariam a mobilizar a crítica e o crítico.
A renitência da inflação e a contabilidade criativa para fechar as contas não podem, pois, ser tomadas como erros na condução da política econômica. Segundo um dos porta-vozes do oficialismo, Dilma estava apenas fazendo a sua aposta num mundo melhor para os pobres, mas foi atropelada pelos pérfidos interesses das elites, especialmente do capital financeiro — o mesmo que, vejam que coisa curiosa!, financia regiamente o PT e torce de forma nada secreta pela volta de… Lula! É evidente que também essas teorias conspiratórias não param de pé; alimentam-se, a exemplo de todas as outras, da falta de evidências. Ocorre que estamos no terreno da guerrilha ideológica — e, nesse caso, o que vale é a fantasia.
Não acredito
Não aposto — e, em certa medida, gostaria de estar errado — no renascimento das tais “manifestações”. A razão é simples: seja para analisar a “Primavera Árabe”, seja para entender quebra-quebra em São Paulo e Rio, eu não acredito na efetividade do Facebook, mas da Irmandade Muçulmana e das organizações de esquerda, respectivamente. Num caso e noutro, não-mobilizados podem até aderir às ações de rua, mas a centelha original sempre fica a cargo de profissionais. O “junho” brasileiro pode até ter ganhado uma coloração antigovernista em vários momentos, mas o seu ânimo era, entendo eu, de esquerda. Infelizmente, a direita liberal e democrática não dispõe de força para grandes mobilizações de rua — ademais, nem é esse o seu espírito. Nunca se esqueçam de que os protestos violentos nasceram em São Paulo, numa associação entre os petistas radicais e extremistas de esquerda associados. O alvo era o governo Alckmin. Aí o tiro saiu pela culatra. Já demonstrei isso aqui com evidências de sobra.
Assim, ainda que exista a TPM, o governo não leva muito a sério a possibilidade de novos e gigantescos protestos de rua. De resto, seus bate-paus nos sindicatos, nas ONGs, nos movimentos sociais — E NA IMPRENSA — estão e estarão mobilizados para sabotar qualquer tentativa de manifestação antigovernista.
Então por quê?
Então por que essa conversa sobre uma suposta conspiração da direita? Para calar preventivamente a oposição, a imprensa e os críticos, de sorte que tanto o noticiário como as redes sociais sejam inundadas só com discursos laudatórios. Eis o PT: antes mesmo que seus críticos apontem seus defeitos e suas falhas, o próprio partido os anuncia como se fossem manifestação do preconceito de seus adversários. E conta, nesse trabalho, com uma rede poderosa, que une os venais, os quadros ideológicos e, como sempre, os idiotas.
Aborto
Lembrem-se das campanhas eleitorais de 2010 e de 2012. Dilma, a então ministra da Casa Civil de Lula, era uma defensora da legalização do aborto. Chegou a comparar a extração de um feto à de um dente. Segundo ela, ninguém poderia gostar nem de uma coisa nem de outra. Um pensamento humanista e chique. Com Deus, havia deixado claríssima a sua relação: rezava um pouco quando o avião balançava. Em terra firme, entende-se, diminui o seu fervor místico…
Atenção! Isto que vai agora é fato, não opinião. Acompanhei a coisa toda desde o início porque, como vocês sabem, esse é um debate que me interessa. O PT temia as opiniões emitidas por Dilma sobre esses temas. Antes que a campanha do tucano José Serra emitisse qualquer juízo de valor a respeito, teve início a guerra — esta, sim, midiática — acusando o adversário de explorar uma questão que, segundo o petismo, não deveria frequentar o debate político porque se trataria de mera questão… religiosa!
Notem que fantástica impostura! Decidir como o Brasil vai tratar os seus fetos não diria, então, respeito à disputa pelo poder. “A política é laica”, gritavam os pilantras, secundados pelos cretinos. A imprensa, esmagadoramente favorável à legalização do aborto, serviu de porta-voz da pregação petista. Mais do que isso: foi sua propagandista. Não se esqueçam jamais de que o jornalismo brasileiro apoiou, quase unanimemente, o recolhimento de um panfleto impresso por um grupo de católicos que recomendava que não se votasse em candidatos favoráveis ao aborto. O TSE atuava como censor, contrariando a Constituição. Jornalistas aplaudiram porque lhes pareceu razoável censurar uma opinião com a qual não concordavam. Uma vergonha!
O PSDB foi posto na defensiva. Repórteres cobravam agressivamente de Serra se considerava justo que se cobrasse de Dilma a opinião que ela tinha sobre o aborto; queriam saber se isso era compatível com a laicidade da política. Raramente a imprensa foi tão intelectualmente delinquente como naqueles dias.
E agora vem o mais estupefaciente: o PSDB não havia tocado no assunto. A questão não foi levada ao horário eleitoral — nem mesmo os dois vídeos, para confronto: num deles, Dilma se dizia favorável à legalização do aborto; no outro, já candidata, contrária. O trabalho do petismo deu resultado: a petista não foi obrigada a se confrontar com as suas próprias opiniões, e o ônus das negativas caiu no colo do seu adversário. Dez  em marketing; zero em vergonha na cara.
Kit gay
Em 2012, na disputa pela Prefeitura de São Paulo, assistiu-se ao mesmo procedimento. Os petistas sabiam que os absurdos do tal kit gay — vetados até por Dilma Rousseff — poderiam pesar contra Fernando Haddad. O arquivo está aí. Apontei a trapaça desde o início. Antes mesmo que o PSDB definisse o seu candidato, os porta-vozes do partido na imprensa e na subimprensa anunciavam: “Os tucanos vão explorar o kit gay! Isso é preconceito! O que o kit gay tem a ver com a Prefeitura?” Bem, é claro que tem — especialmente quando essa Prefeitura tem milhares de alunos.
E pronto! Lá foi o batalhão de repórteres a tratar o candidato do PSDB como homofóbico — justamente José Serra, o formulador de uma política pública de combate à AIDS, por exemplo, que era e segue sendo uma referência para o mundo. E daí? A delinquência ideológica não respeita competências; ela tem causas.
E, como era de se esperar, o tema ficou longe da campanha. O PSDB preferiu não ligar Haddad à sua própria obra, assim como não ligara, dois anos antes, Dilma às suas próprias opiniões. Pior: tucanos ditos “progressistas”, nos dois casos, preferiram atacar a campanha do seu partido, que seria por demais… conservadora!
Concluindo
A máquina petista e seus serviçais estão de volta com o mesmo procedimento. Agora eles pretendem levar os adversários de Dilma para a defensiva no caso da Copa, acusando-os de tentar sabotá-la. Assim como não se podia lembrar que a petista era uma defensora fanática do aborto e que Haddad havia feito os kits gays, deve-se deixar de lado a incompetência do governo na organização do evento.
Infelizmente, os adversários do PT — e a imprensa séria, que não é adversária de ninguém em matéria partidária — têm caído no truque petista de maneira sistemática. Aqui e ali já vejo críticos do petismo fazendo as suas juras de amor à Seleção, ao nosso futebol, à nossa ginga, essas coisas… A questão de fundo é a seguinte (e ainda voltarei ao tema): enquanto os não-petistas reconhecerem no PT um tribunal legítimo e permitirem que o partido se comporte como seu juiz, será impossível vencê-lo. Em certa medida, é preciso esquecer o PT para derrotar o PT. 
Por Reinaldo Azevedo-Rev.Veja