Uma
carta aos defensores da democracia e do estado de direito. Ou: conversa
com os que pretendem preservar o regime de liberdades. Se gostarem,
passem adiante.
Minhas caras, meus caros,
leia-se a melhor literatura sobre os primórdios do fascismo ou os
primeiros dias que se seguiram aos golpes comunistas, e o observador
atento vai constatar uma característica invariável a marcar a
consolidação desses regimes tirânicos: direitos fundamentais — alguns
então e ainda garantidos em lei, outros nem especificados porque
considerados parte da vida civilizada — passam a ser tratados como se
fossem privilégios inaceitáveis de uma minoria. Assim se mandaram os
“burgueses e os reacionários” para o paredão ou os judeus para os campos
de concentração e a morte. Em nome do fim de privilégios que eram
apenas direitos!
E foi, sim,
sob o silêncio cúmplice de muitos. Não se enganem: nem os regimes
comunistas nem os fascistas se instalaram sem o consentimento, ainda que
passivo, de amplas camadas da população. Ao contrário: esse apoio
popular foi usado para legitimar e tornar corriqueira a violência. Seria
exagero dizer que estamos vivendo dias pré-tirânicos no Brasil. Mas não
é exagero nenhum constatar que direitos fundamentais estão sendo
cotidianamente violados por instâncias do Estado.
A imprensa
livre e independente só é possível numa democracia. A democracia só é
possível se houver uma imprensa livre e independente. Essas duas
instâncias se distinguem — porquanto uma delas, a imprensa, reúne apenas
uma parte da vida em sociedade —, mas não se separam. Sem o regime
democrático, a liberdade de expressão inexiste; sem a liberdade de
expressão, o regime democrático morre de inanição.
Lideranças
políticas ressentidas de ontem e de hoje; políticos cansados da
vigilância cotidianamente exercida pela imprensa independente;
mentalidades jurássicas ainda inconformadas com o triunfo de uma
economia aberta e de mercado e incrustadas na academia e no próprio
jornalismo; notórios manipuladores da boa-fé da população e dos justos
reclamos em favor de uma sociedade mais justa, todas essas forças
resolveram se conjurar contra um dos fundamentos da nossa liberdade: a
imprensa independente. É um engano, uma tolice ou pura expressão da má
fé considerar que estão querendo levar apenas a VEJA para o banco dos
réus. Aliás, se assim fosse, talvez estivéssemos diante de evento de
gravidade menor porque haveria uma acusação e seria garantido o direito
de defesa. Querem, isto sim, é levar a imprensa a um tribunal político.
Primeiro a VEJA, não por acaso, e depois o resto.
Como já
deixei claro em outro post, não se trata de reivindicar impunidade para a
imprensa. Ela não está — e nem deve estar — acima da lei. Mas também
não pode estar abaixo dela, sujeita a um verdadeiro tribunal de exceção,
sendo vítima passiva de uma clara violação de princípios
constitucionais, como é o sigilo da fonte, por exemplo. Ora, o que
temos? Se, nas conversas que um repórter da VEJA manteve com algumas de
suas fontes — e fontes de muitos outros jornalistas —, houvesse o
flagrante de um crime, que se acionasse a justiça criminal para puni-lo.
O fundamento vale para qualquer um. No Brasil, até uma associação de
juízes andou afirmando que algumas pessoas estão acima da lei. Não!
Ninguém está nem pode estar — nem os jornalistas.
Mas qual foi
mesmo o “crime” do jornalista Policapo Jr.? Nenhum! Como sabe qualquer
jurista do país, especialmente aqueles dedicados à área criminal, não há
nas conversas tornadas públicas uma só manifestação que fira o direito
coletivo, prerrogativas de terceiros, o interesse público, nada! São
conversas de quem buscava a informação sem garantir, como deixam claro
Carlinhos Cachoeira e seus auxiliares, qualquer benefício em troca.
Também no terreno da ética profissional, não há reparos a fazer a seu
trabalho.
Nunca fui
repórter investigativo. Já cheguei até a dizer aqui que, embora fale com
políticos, sim, prefiro os meus textos que saem da conversa com a
lógica e com a história. Se toda fonte que passa uma informação em off
tem interesse na sua divulgação — e tem! —, o mesmo vale para as
análises que muitas vezes são feitas pelos políticos. Algumas, ainda que
passadas de boa-fé, tendem mais a nos afastar da verdade do que a nos
aproximar. Muito bem!
Não é essa a
minha área. Mas reflito cá comigo o que não estarão pensando, nestes
tempos, expressões do chamado “jornalismo investigativo” — há até uma
associação nacional que reúne profissionais dessa área.
Em regra,
eles prestaram e prestam grandes serviços ao país. E tiveram a sorte de
não ver lançada em praça pública suas conversas com as fontes e, mais
ainda, conversas das fontes sobre o contato que mantiveram com
jornalistas. Este é, insisto — ou era — um direito constitucional
assegurado à imprensa. Não para cometer crimes, não, mas para
denunciá-los e combatê-los. Como fez tantas vezes Policarpo Jr. E como
fizeram tantos outros. Quem primeiro passou à reportagem da Folha o
notável crescimento patrimonial de Antonio Palocci, com alguns dados
bastante precisos sobre os seus bens, estava, como costumo indagar, só
pensando no bem, no belo e no justo? Quem terá sido a fonte? A revelação
de eventuais conversas gravadas entre jornalistas e informantes muda a
natureza do que foi denunciado? Aqueles que ajudaram a derrubá-lo só
estavam interessados no bem da República?
Que não se
perca isto de vista: se, no curso da investigação de Cachoeira e sua
turma, um jornalista da VEJA ou de qualquer outro veículo tivesse sido
flagrado cometendo um crime, Código Penal nele! Mas é o caso? Qual é a
acusação? Por que buscava Policarpo Jr. aquelas informações? Para se
locupletar? Para fazer chantagem? Não! Para publicar. As maquinações de
Cachoeira e seus sequazes não eram de sua conta, como não eram a dos que
passaram as informações sobre Palocci à Folha. ORA, NÃO CABERIA
INDAGAR, TAMBÉM NO CASO DO EX-CHEFE DA CASA CIVIL, QUAIS OS INTERESSES
DAQUELES QUE AJUDARAM A DEPÔ-LO? A revelação dessas fontes não seria
também — dadas a perspectiva hoje vigente em algumas mentalidades da CPI
e a abordagem feita por certo jornalismo — do interesse público?
Digam-me
aqui: caberia aos repórteres da Folha que receberam a informação,
comprovada com apuração posterior, fazer um julgamento prévio sobre as
consequências e os interesses da fonte? Seria o seu papel, por exemplo, o
seguinte juízo: “Huuummm… É bem verdade que tenho aqui dados que
complicam a vida do ministro. Mas ele é peça-chave no governo Dilma. Se
cair, estarei fazendo a vontade da fonte que me passou o material. Já
sei: vou detonar Palocci e a fonte junto! Pronto!” Seria a última
reportagem investigativa desse profissional. E perderia o país.
Da mesma
sorte, cumpriria ao profissional da VEJA, no caso citado e em outros, de
posse das evidências dos atos de corrupção, julgar que estaria
atendendo a eventuais interesses das fontes — porque eles sempre existem
— e, em nome de uma suposta ética, deixar intocados os ladrões de
dinheiro público? Alguém flagrou algum jornalista da VEJA interferindo
em licitação ou participando de conspiração para alterar preço de obra
pública? Não! Nas vezes em que aparece na fita ou em que seu nome é
citado, trata-se sempre da busca de informações para reportagens —
publicadas depois de rigorosa apuração junto a outras fontes. Tão
rigorosa que algumas estão na raiz de demissões, sim. E quem demitiu foi
Dilma Rousseff, não a VEJA.
Não é a VEJA apenas, é a imprensa
Não é só a VEJA que estão tentando colocar na berlinda, não! É a
imprensa como um todo. Com o que se tem até aqui, aprove-se ou não o
depoimento de quem quer que seja, está decretada a morte do sigilo da
fonte e da apuração jornalística. Ao contrário do que pensam alguns
tontos, isso não atenta só contra a liberdade da imprensa. Isso atenta
contra a liberdade de todos os brasileiros. Não vamos nos enganar.
Repórteres investigativos não falam com freiras e monges. Essas boas
pessoas não têm nada a dizer a profissionais dessa área, que têm entre
as suas missões zelar pela defesa do bem público.
Ainda que
repórteres não estejam grampeados hoje — não com autorização judicial ao
menos; sem ela, creio que todos estamos —, a chance de que suas fontes
estejam é gigantesca. Dá-se de barato (e há quanto tempo escrevo isso
aqui, como sabem os leitores mais antigos!) que não há mais sigilo
telefônico no país. Se uma dessas fontes for objeto de alguma operação
da Polícia Federal, essas conversas fatalmente virão a público se algum
petista se sentir prejudicado… Ainda que a quebra do sigilo tenha
autorização judicial, o vazamento é sempre criminoso. Mesmo os encontros
pessoais não são seguros, porque a tecnologia da escuta ambiental
avançou ainda mais do que a do grampo telefônico. Em breve, os veículos
de comunicação terão de construir salas especiais, nas quais repórteres
terão de se encontrar com as fontes, todos, evidentemente, pelados — se é
que não existem já grampos subcutâneos ou que possam ser escondidos em
orifícios não examináveis sem um estreitamento maior de relações…
De novo, se a
Polícia Federal tivesse flagrado o jornalista da VEJA a cometer um
crime, há um caminho legal que conduz ao processo e à punição. Mas isso
não existe! Estamos diante, como sabe toda pessoa de bom senso, da
agressão a um direito constitucional. Sua violação não atinge só a VEJA.
Fere as garantias de todos os profissionais e de todos os veículos.
Notáveis bobagens
Notáveis bobagens estão sendo escritas a respeito por gente que
deveria estar empenhada na defesa da liberdade de informar — que não
pode se confundir com um privilégio, como querem os tiranos, de que
trato lá no primeiro parágrafo.
No domingo,
Suzana Singer, ombudsman da Folha, escreveu uma coluna sobre o caso.
Reproduzo um trecho em vermelho e faço alguns destaques por minha conta:
Do que veio a público até o
momento, não há nada de ilegal no relacionamento “Veja”-Cachoeira. O
paralelo com o caso Murdoch, que a blogosfera de esquerda tenta
emplacar, soa forçado, porque, no caso inglês, há provas de crimes, como
escutas ilegais e a corrupção de policiais e autoridades.
Não ser ilegal é diferente, porém, de ser “eticamente
aceitável”. Foram oferecidas vantagens à fonte? O jornalista sabia como
as informações eram obtidas? Tinha conhecimento da relação próxima de
Cachoeira com o senador Demóstenes? Há muitas perguntas que só podem ser
respondidas se todas as cartas estiverem na mesa.
É preciso divulgar os diálogos relevantes que citem a imprensa. A
Secretaria de Redação diz que tem “publicado reportagens a respeito,
quando julga que há notícia”. “Na sexta, entrevista com o
relator da CPI tratava do tema e estava na Primeira Página. Já em abril
havia reportagem de Brasília e colunistas escreveram a respeito”,
afirma.
É pouco. Grampos mostram que a mídia fazia parte do xadrez de Cachoeira. Que essa parte do escândalo seja tratada sem indulgência, com a mesma dureza com que os políticos têm sido cobrados. Permitir-se ser questionado, jogar luz sobre a delicada relação fonte-jornalista, faz parte do jogo democrático.
Voltei
Pergunto a Suzana Singer e, se ela quiser responder, publico a
resposta aqui: de qual escândalo denunciado pela imprensa, Suzana, não
se podem perguntar as mesmíssimas coisas? Na sua condição de ombudsman,
cobrou dos repórteres da Folha a PROVA de que não ofereceram vantagens à
fonte que passou as informações sobre Palocci? A reportagem do jornal
fazia ou não parte do “xadrez” da pessoa que queria o então ministro
mais importante de Dilma fora do governo? Diga-me, Suzana: o jornalista
que divulgou a lista de bens de Palocci sabia ou não sabia como aquelas
informações foram colhidas?
A ombudsman
da Folha está afirmando que nada existe contra o repórter da VEJA, mas
que cabe a este provar a sua inocência, como nos melhores regimes
totalitários. Curioso que tais cobranças não tivessem sido feitas por
ninguém ao tempo que se garantia sobrevida a uma comprovada picaretagem,
como era o Dossiê Cayman — e foi a Polícia, não a imprensa, que
desbaratou a farsa.
Por que,
Suzana Singer, só esse caso merece tal tratamento? Espero que não seja
porque, afinal de contas, se trata da VEJA, e a revista deveria estar
submetida a algum regime de exceção, que você certamente não defenderia
que vigesse na Folha. Até porque isso seria impossível, minha cara! No
dia em que os jornalistas tiverem de provar, a cada reportagem, que são
“eticamente inocentes” — ainda que não exista contra eles acusação
nenhuma de crime —, acabou o jornalismo investigativo. Para honra e
glória dos ladrões do dinheiro público.
Por que só agora?
Por que só agora se arma esse circo? Bem, desde o primeiro dia,
como vocês sabem, alertei que um só objetivo estava em jogo — e não era
punir Cachoeira e sua gangue. Nunca foi. Os mensaleiros, sob a
liderança de Lula, agarrado a seu ódio, querem submeter ao enxovalho
todas as instituições do país. Usam-se o inquérito da Polícia Federal e
as gravações para tentar arrastar para o lixão o Supremo Tribunal
Federal, a Procuradoria-Geral da República e a imprensa. Sob qual
acusação? Nenhuma! Pretende-se fazer da CPI um tribunal de exceção.
O jornal Valor Econômico decidiu fazer uma reportagem a respeito da iniciativa do senador Fernando Collor (ver posts abaixo),
que fez um requerimento pedindo a convocação de Policarpo Jr..
Reproduzo a resposta que o diretor de redação da revista, Eurípedes
Alcântara, deu ao jornal:
“É assombroso que na semana
seguinte às comemorações do Dia Mundial da Liberdade de imprensa, um
senador peça a convocação de um jornalista para depor diante de um
tribunal político e, com isso, envergonhe o Brasil, colocando-nos na má
companhia de nações atrasadas e repudiadas pela comunidade
internacional. A imprensa não está acima da lei, mas não pode ser
colocada ao desamparo dela. Um jornalista acusado, como qualquer
cidadão, tem o direito de saber o que pesa contra ele no âmbito da
Justiça. Colocá-lo diante de um tribunal político com o objetivo de
“esclarecer eventuais ligações” com quem quer que seja é um despropósito
e uma afronta à democracia.”
Na mosca! Ou “nas moscas”, como costumo brincar.
A rede
criminosa que se espalha na Internet — digo em outro post do que ela é
capaz — está convicta de que o poder petista, como os diamantes, é
eterno e imagina uma situação que vai disso que vemos para pior. Pede,
sem meias palavras, o que chama de “Lei dos Meios de Comunicação” — ou
“Ley de Medios”, dizem alguns bandidos, citando, cheios de excitação, a
Venezuela de Hugo Chávez. Na semana passada, Rui Falcão, presidente do
PT, anunciou que a imprensa é um dos alvos do governo, depois dos
bancos. Querem a liberdade de imprensa de joelhos diante do tribunal
presidido por José Dirceu, o rei da ética, aquele rapaz que foi no mês
passado à Venezuela, em companhia do marqueteiro do PT, para dar uma
forcinha a Chávez.
Quando os
tucanos, no governo FHC, eram os alvos do jornalismo investigativo,
nunca ninguém se lembrou de fazer uma CPI para submeter a imprensa a um
tribunal político. Considerava-se tal hipótese simplesmente impensável —
e os próprios tucanos, diga-se, não intentariam algo parecido. O
jornalismo era, então considerado virtuoso por investigar eventuais
desvios havidos no governo FHC ( nunca ninguém indagou qual era a fonte;
tampouco a PF pôs para circular conversas de jornalistas) e operava em
estreita ligação com o PT. Imaginem uma gravação da PF registrando as
conversas dos divulgadores do Dossiê Cayman e suas fontes ilibadas… AS
REPORTAGENS DA VEJA RESULTARAM NA EXPLICITAÇÃO DE CRIMES CONTRA A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. Com a chegada do PT ao poder, tudo mudou.
Criminoso passou a ser o jornalismo independente — enquanto a corja
financiada por dinheiro público se dedica, cotidianamente, a agredir a
oposição, o Judiciário e a própria imprensa. Para eles, não há CPI. Ao
contrário: juntam-se a Fernando Collor para enviar a um tribunal
político quem honra a independência.
Outros,
antes de nós, resistiram a pressões ainda piores. Estes que estão aí nem
são os piores inimigos que a liberdade de imprensa já enfrentou. E
resistiremos mais uma vez. Quis o destino que Lula e Collor viessem a se
juntar, 23 anos depois do enfrentamento nas urnas, contra a liberdade
de imprensa. Um está a exercer a sua conhecida natureza. O outro termina
por revelar a sua. Uma não aprendeu nada nem esqueceu nada. O outro
esqueceu tudo. O momento não é dos mais edificantes, mas me sinto
intelectualmente recompensado. Há muitos anos venho dizendo que eles
chegariam a este ponto. E chegaram. E mais longe chegarão se puderem.
Não se depender dos defensores da ordem democrática e do estado de direito. A Constituição vai derrotar a conspiração do ódio.
Texto publicado originalmente às 5h04