A
senadora Marta Suplicy (PT-SP) está vendo de perto o que é ser alvo da
máquina de moer reputações do petismo. Ela só conhecia o outro lado, o
de quem ataca. E toma pancada de todo lado, como quem tivesse jogado
pedra na cruz. A Folha de hoje publica um artigo estupefaciente
de Cláudio Gonçalves Couto, que é “cientista político, professor do
curso de Administração Pública da FGV-SP”, segundo o pé biográfico que
aparece no jornal. Segue o seu texto em vermelho. Lá vou em azul.
Se tudo der
errado na campanha de Fernando Haddad à Prefeitura de São Paulo,
culminando em sua derrota, o PT já sabe sobre quem descarregar a culpa.
Se tudo der certo e Haddad for eleito prefeito, o PT também já sabe a
quem espezinhar. Nos dois casos, essa pessoa é Marta Suplicy.
Marta tinha uma única saída para não se dar mal: apoiar Haddad com entusiasmo, como quer Lula.
É evidente o
inconformismo da ex-prefeita com seu preterimento na escolha da
candidatura petista, para a qual se via como uma escolha natural — tal
qual a de Aécio Neves para o PSDB, no pleito presidencial, na visão de
Fernando Henrique.
Marta, contudo, assemelha-se pouco a Aécio, no que concerne a esta
“naturalidade”. Está para a Prefeitura de São Paulo e para o PT mais ou
menos como o ex-governador José Serra está para a Presidência e o PSDB.
Em ambos os casos, os postulantes veem-se como o nome óbvio, não
reconhecem correligionários à sua altura e pensam mais em seu projeto
pessoal do que no do partido.
Com o devido respeito a Couto, que deve ser
um homem honesto, o pensamento é vigarista. Fica por provar, além do
opinionismo, por que Aécio é um candidato natural (tese que ele adota) e
por que Serra e Marta não seriam. Como está a buscar paralelos,
entende-se que a naturalidade, no caso do PT, estaria, então, com
Fernando Haddad. A gente percebe que ele não tem simpatia pelos dois
nomes “não naturais”. Com quais categorias intelectuais opera? Com as da
futrica e da fofoca, dando relevo aos supostos maus bofes dos dois
políticos: “não reconhecem correligionários à sua altura e pensam mais
em seu projeto pessoal do que no do partido”. Suponho que, nessa
formulação, Haddad e Aécio são destituídos de ambições pessoais e só
pensam no projeto partidário, certo?
A
semelhança, porém, acaba por aí. Não só porque se trata de disputas de
tamanho distinto, mas também porque PT e PSDB são muito diferentes.
A semelhança não acaba aí porque nunca começou.
Se no PSDB o
serrismo conseguiu impor-se à máquina partidária para mais um malogro
em 2010 (e continua a alentar nova aventura para 2014), no PT o peso da
organização partidária se fez sentir na definição da disputa.
Couto não gosta de Serra, a gente vê. Num
texto destinado a analisar o embate no PT, ele ataca o político tucano. A
afirmação de que “continua a alentar nova aventura em 2014″ é
obviamente mentirosa, peça de propaganda do petismo ou de coisa ainda
pior. Não sei qual é a dele. Sei que não se sustenta. Mas atenção para o
triplo salto carpado hermenêutico-dialético que vem agora.
Alguém replicará que é o peso do caciquismo lulista. Há um erro em tal avaliação.
Embora a unção de Lula tenha sido crucial na opção do PT por Haddad, ela
opera em contexto organizacional e com significado muito distintos
daqueles do PSDB. O PT é um partido em que a lógica da organização tende
a prevalecer sobre caciquismos.
A unção de Lula funciona na indicação do candidato porque se coaduna com
os interesses mais amplos e de longo prazo da organização.
Que coisa! Serra se fez candidato em 2010,
sem prévias, porque Aécio Neves desistiu da corrida. Qualquer pessoa um
pouquinho mais bem informada do que Couto sabe que o agora senador
mineiro não era candidato pra valer à Presidência. E, a depender do
andar da carruagem, é bom o tucanato ir pensando num nome alternativo —
que não é Serra obviamente. Na disputa de agora, na cidade de São Paulo,
os tucanos realizaram prévias. E prévias de verdade, como se viu. Mas
“caciquista”, segundo este iluminado pensador, é o PSDB, não o PT!!!
E por que não? Ele dá a resposta: “A
unção de Lula funciona na indicação do candidato porque se coaduna com
os interesses mais amplos e de longo prazo da organização.”
Entenderam? Lula é o grande “intérprete” da organização, conhece as suas
vontades, sabe a forma do futuro, tem domínio sobre os seus “interesses
mais amplos e de longo prazo”. Couto não é mesmo um gramsciano, que
entendia ser o partido o “moderno príncipe”. Nada disso! O príncipe,
para este pensador, é o demiurgo!
Assim, no
triplo salto carpado hermenêutico-dialético deste gigante, o PSDB foi
caciquista ao não sê-lo, e o PT, ao sê-lo, não o foi, compreenderam? Ao
realizar prévias, o PSDB foi autoritário e caciquista. Ao atropelá-las, o
PT demonstrou aquela vocação democrática resumida tão bem pela… vontade
de Lula!!! Acompanhar as suas aulas deve ser mesmo uma grande aventura
intelectual.
Coisa
idêntica ele deve pensar sobre o PT de Recife. Por lá, as prévias
chegaram a ser realizadas, o atual prefeito, João da Costa, venceu, mas
Lula não aceita e quer Humberto Costa como candidato. E ele pode, certo,
Couto? Afinal, “o contexto organizacional” permite qualquer coisa.
Em tal
cenário, o beicinho de Marta, se mantido, tenderá a lhe causar um
ostracismo interno. Organizações tão densas não costumam deixar barato
esse individualismo.
Couto acha o PT uma “organização densa” e
ameaça Marta com o “ostracismo” porque ela fez “beicinho”. Pior de tudo:
teria cometido um pecado terrível! Foi muito “individualista”, coisa
que, sabem vocês, não fica bem no petismo, esse partido de homens
coletivistas…
A Folha
chame quem quiser para escrever artigos. Não tenho nada com isso. Como
leitor, digo se gostei ou não. Eu entendo que jornais e revistas devem
recorrer a colaborações de “pensadores” e “cientistas políticos” quando
estes produzem uma reflexão que opera com categorias e modelos de
precisão que podem, eventualmente, estar além do instrumental manejado
habitualmente pelos profissionais da redação (jornalistas formados ou
não). Muito melhor na própria Folha eu já encontrei mais de cem, como naquele iê-iê-iê.
Agora vocês me dão licença que ficarei aqui a refletir sobre o caciquismo que não é porque é e é porque não é…