Considero este texto um dos mais importantes já publicados neste blog. Se gostarem, ajudem a divulgá-lo.
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Eu não gosto da expressão “passar a história a limpo”. Tem apelo
inequivocamente totalitário. Fica parecendo que vivemos produzindo
rascunhos e que a história verdadeira nos aguarda em algum lugar. Para
tanto, teríamos de nos submeter às vontades de um líder, de uma raça, de
uma classe ou de partido para atingir, então, aquela verdade
verdadeira. A gente sabe aonde isso já deu. Nos milhões de mortos dos
vários fascismos e do comunismo. Assim, não existe história a ser
“passada a limpo”. Os países que alcançaram a democracia política, como
alcançamos, têm é de lutar para tirar da vida pública os corruptos, os
aproveitadores e os oportunistas. Isso é “passar a limpo”? Não! isso é
melhorar quem somos. Não por acaso, antes que prossiga, noto que Luiz
Inácio Lula da Silva é um dos herdeiros dessa visão totalitária
supostamente saneadora — daí o seu mentiroso “nunca antes na história destepaiz“, como se fosse o fundador do Brasil.
A CPI do
Cachoeira poderia ser — pode ser ainda, a depender do andamento, vamos
ver — mais uma dessas oportunidades em que práticas detestáveis dos
subterrâneos da política vêm à luz, permitindo punir aqueles que
abusaram dos cofres públicos, das instituições e da boa-fé dos
brasileiros. Ocorre que há uma boa possibilidade de que isso não
aconteça. E por quê? Porque Lula está com ódio. Um ódio injustificado.
Um ódio de quem não sabe ser grato. Um ódio de quem não encontra a paz
senão exercendo o mando. É ele quem centraliza hoje os esforços para que
a CPI se transforme num tribunal de acusação da Procuradoria Geral da
República, do Supremo Tribunal Federal e da imprensa independente. E já
não esconde isso de seus interlocutores.
A
presidente Dilma Rousseff, cujo governo não é do meu gosto — e há
centenas de textos dizendo por que não — já deve ter percebido (e, se
não o percebeu, então padece de uma grave déficit de atenção política): o
risco maior de desestabilização de seu governo não vem da oposição ou
do jornalismo que leva a sério o seu trabalho. O nome do risco é Lula.
Ele quer se
vingar. Mas se vingar exatamente do quê? Não há explicação racional para
o seu rancor, como vou demonstrar abaixo. Já foi, sim, um elemento que
ajudou a construir a democracia brasileira — não mais do que isto,
friso: uma personagem que participou de sua construção. Nem sempre de
modo decoroso. Em momentos cruciais, para fortalecer seu partido, atuou
como sabotador. Mas o sistema que se queria edificar era mais forte do
que a sua sabotagem. Negou-se a homologar a Constituição; recusou-se a
participar do Colégio Eleitoral; opôs-se ao Plano Real; disse “não” às
reformas que estão hoje da base da estabilidade que aí está… A lista
seria longa. Mesmo assim, ao participar do jogo institucional (ainda que
sem ter a devida clareza de sua importância), deu a sua cota. Agora
que o regime democrático está estabelecido, Lula se esforça para
arrastar na sua pantomima e na do seu partido alguns dos pilares do
estado democrático e de direito.
Por quê?
Seria seu senso de justiça tão mais atilado do que o da maioria? É a sua
intolerância com eventuais falcatruas que o leva hoje a armar setores
do seu partido e da base aliada para tentar esmagar a Procuradoria, o
Supremo e a imprensa? Não! Lamento ter de escrever que é justamente o
contrário: o que move a ação de Lula, infelizmente, é o esforço para proteger os quadrilheiros do mensalão.
Uma coisa é certa: outros líderes, antes dele, já deram guarida a
bandidos. O PT não fundou a corrupção no Brasil. Mas só Lula e seu
partido a transformaram num fundamento ético a depender de quem é o
corrupto. Se aliado, é só um herói injustiçado.
Ódio imotivado
E Lula, por óbvio, deveria estar com o coração pacificado,
lutando para fortalecer as instituições, não para enfraquecê-las. Um
conjunto de circunstâncias — somadas a suas qualidades pessoais (e
defeitos influentes) — fez dele o que é. Em poucas pessoas, o casamento
da “virtù” com a “fortuna” foi tão bem-sucedido. O menino pobre,
retirante, tornou-se presidente da República, eleito e reeleito,
admirado país e mundo afora. Podemos divertir — e como divergimos! —
dessa avaliação, mas nada disso muda o fato objetivo. Quantos andaram ou
andarão trajetória tão longa do ponto de partida ao ponto de chegada?
Lula deveria
ser grato aos aliados e também aos adversários. Qualquer um que tenha
um entendimento mediano da história sabe como os oponentes ajudam a
formar a têmpera do líder, oferecendo-lhe oportunidades. Não há, do
ponto de vista do Apedeuta, o que corrigir no roteiro. O destino lhe foi
extremamente generoso. Sua alma deveria estar em festa. E, no entanto,
ele sai proclamando por aí que chegou a hora de ajustar as contas. Com
quem? Com quê?
Não farei
aqui a linha ingênuo-propositiva, sugerindo que o ex-presidente deixe a
CPI trabalhar sem orientação partidária, investigando quem tem de ser
investigado, ignorando que há forças políticas em ação e que é parte do
jogo a sua articulação para se defender e atacar. Isso é normal no jogo
democrático. O que não é aceitável é esse esforço para eliminar
todas as outras — à falta de melhor designação, ficarei com esta —
“instâncias de verdade” da sociedade. Instâncias que são, reitero,
instituições basilares da democracia.
Lula e seus
sectários chegaram ao ponto em que acreditam que o PT não pode conviver
com uma Procuradoria-Geral da República que não seja um braço do
partido; com um Supremo Tribunal Federal que não seja uma seção do
partido; com uma imprensa que não seja uma das extensões do partido. Todos
eles têm de ser desmoralizados para que, então, o PT surja no horizonte
realizando a sua vocação: SER A ÚNICA INSTÂNCIA DE VERDADE. Na
conversa que manteve anteontem com petistas, em que anunciou — POR
CONTA PRÓPRIA — que o governo vai avançar sobre a mídia, Rui Falcão,
presidente do PT, foi claríssimo:
“(a mídia) é um poder que contrasta
com o nosso governo desde a subida do (ex-presidente) Lula, e não
contrasta só com o projeto político e econômico. Contrasta com o atual
preconceito, ao fazer uma campanha fundamentalista como foi a campanha
contra a companheira Dilma (nas eleições presidenciais de 2010).”
Ou por outra: o bando heavy metal
do PT considera que as instituições da democracia ocupam o seu espaço
vital, sufocam-no. Se o partido foi vitorioso e chegou ao poder segundo
os instrumentos democráticos, uma vez no topo, é preciso começar a
eliminá-los. Esses petistas entendem a política segundo uma linha
supostamente evolutiva de que eles seriam os mais aptos. Qualquer outra
possibilidade significa um retrocesso. É um mito da velha esquerda,
herdado, sim, lá do marxismo — ainda que o partido não seja mais
marxista nos fundamentos econômicos. Da velha teoria, herdou a paixão
pelo totalitarismo.
Já vimos isso antes e alhures
Já vimos isso antes na história. Na América Latina, a Argentina
assiste a um processo ainda mais agressivo, conforme revela matéria da
VEJA na edição desta semana (falo a respeito em outro post). Os
regimes autoritários ou a depredação da democracia não surgem sem
justificativas verossímeis e sem o apoio de muitos inocentes úteis e
inúteis. Procedimentos corriqueiros do jogo democrático e do confronto
de ideias começam a ser ideologicamente demonizados para que venham a
ser considerados crimes. Voltem à fala de Rui Falcão. A simples disputa
eleitoral, para ele, é chamada de “manifestação de preconceito” das
oposições. A vigilância que toda imprensa deve exercer numa democracia é
tratada como ato de sabotagem do governo. E ninguém estranha, é
evidente, que VEJA esteja entre os alvos preferenciais dos autoritários.
Aqui e ali
alguns tontos se divertem um tatinho achando que a pinima de Lula e de
seus extremistas é com a revista em particular. Não é, não! É com a
imprensa livre. Se VEJA está entre seus alvos preferenciais, deve ser
porque foi o veículo que mais o incomodou. Então se tira da algibeira a
acusação obviamente falsa, comprovadamente falsa, de que a publicação
participou de conspirações contra esse ou aquele. Ora, digam aí os nomes
dos patriotas, com carreiras impolutas, que foram vítimas desse ente
tão terrível (leiam post abaixo). VEJA não convidou os
malandros do mensalão a fazer malandragens. Também não patrocinou as
sem-vergonhices no Dnit. Também não responde pela montanha de dinheiro
liberado que não se transformou nem em estradas nem em obras de reparo. A
revista relatou essas safadezas. Com quem falou para obter informações
que eram do interesse de quem me lê de outros milhões de brasileiros?
Isso não é da conta de Lula! Ele, como sabemos, só dialoga com a fina
flor do pensamento… Só que há uma diferença importante: um jornalista
que se respeita não fala com vigaristas para ser ou manter o poder. Se o
faz, é para denunciar o poder! E assim foi, o que rendeu a demissão de
corruptos e a preservação do patrimônio público.
É claro que
isso excita a fúria dos totalitários. Na Argentina, a tropa de Cristina
Kirchner costuma ser ainda mais criativa — e, em certa medida, grosseira
— do que seus pares brasileiros. Por lá, a agressão à imprensa chegou
mais longe. Começou com uma rusga com o Clarín, que apoiava o casal
Kirchner. Agora, trata-se de um confronto com o jornalismo livre. A
exemplo do que ocorre no Brasil, uma verdadeira horda está mobilizada
pelo oficialismo para destruir a democracia. Também lá, a subimprensa
alugada pelo poder, conduzida por anões morais, ajuda a fazer o serviço
sujo.
Voltando e caminhando para a conclusão
Lula e seus extremistas estão indo longe demais! Quando um
secretário-geral da Presidência reúne deputados e senadores do seu
partido, como fez Gilberto Carvalho, para determinar que o centro das
preocupações da CPI deve ser o mensalão, esse ministro já não se ocupa
mais do governo, mas de um projeto de esmagamento da boa ordem
democrática; esse ministro não demonstra interesse em identificar e
pedir que a Justiça puna os corruptos, mas em impedir que outros
corruptos sejam punidos. E por quê?
Porque Lula
está com ódio? De várias maneiras, o seu conhecido projeto continuísta
se mostra, hoje, impossível. Não é surpresa para ninguém que mais
apostavam no naufrágio de Dilma algumas alas do PT que nunca a
consideraram petista o suficiente do que propriamente a oposição.
Estaria eu flertando com o governo, como disseram alguns tontos? Ah,
tenham paciência! Não mudei um milímetro a minha avaliação sobre a
gestão Dilma Rousseff e sempre escrevi aqui — vejam lá! — que as
denúncias de lambanças feitas pela imprensa livre, seguidas das
demissões, fariam bem à sua imagem e à sua reputação. Está em arquivo.
Sei o que escrevo e tenho, alguns podem lamentar, uma memória impecável.
Assim, a presidente não me decepciona porque eu não esperava mais do
que isso. Também não me surpreende porque eu não esperava menos do que
isso. Contrariados estão alguns fanáticos do petismo que acreditam que
há certos “trancos” na democracia que só podem ser dados por Lula. Sim,
eles têm razão. Infeliz E felizmente, só Lula poderia
fazer certas coisas. E não vai fazê-las. Não se enganem, não! A
avaliação de Dilma lá nas alturas surpreende e decepciona os que
apostavam no retorno de Lula. Eu não tenho nada com isso porque nunca
fui dessa religião… Ou melhor: até fui, quando era menino e pensava como
menino, como diria o apóstolo Paulo… Depois eu cresci.
Lula tenta
instrumentalizar essa CPI para realizar a obra que não conseguiu
realizar quando era presidente: destruir de vez a oposição, botar uma
canga na imprensa e “passar a história a limpo”, segundo o padrão do
revisionismo petista. Mas a democracia — e ele tantas vezes foi
personagem minúscula de sua construção, quando poderia ter sido
maiúscula — não vai deixar. Não conseguirá arrastar as instituições em
seu delírio totalitário. Tenham a certeza, leitores: por mais que o
cerco pareça sugerir o contrário, esse coro do ódio é expressão de uma
luta perdida. E a luta foi perdida por eles, não pelos amantes da
democracia.