Não que o advogado Michel Temer, vice de Dilma Rousseff - chapa nascida
da aliança entre PMDB e PT, negociada em bases nada republicanas -,
fosse de absoluta confiança. Mas, político rodado, presidente da Câmara
dos Deputados três vezes e do próprio partido, Michel Temer assumiu no
impeachment de Dilma com o trunfo de, com base em toda esta expertise de
transitar com facilidade pelo Congresso, poder aprovar, em pouco menos
de dois anos, as principais reformas de que o Brasil necessita para
voltar a crescer. Conquistaria lugar de destaque na República.
Temer conseguiria, de fato, lugar na História, mas como o primeiro
presidente em exercício a ser denunciado por corrupção. O passado e as
práticas do PMDB - em especial, do grupo do presidente na Câmara, em
conexão com o encarcerado Eduardo Cunha - foram mais fortes que
possíveis intenções de Temer de abrilhantar a biografia. Por isso,
manteve os esquemas do fisiologismo do toma lá dá cá, e, como se vê, não
obstruiu o fluxo de dinheiro de propina pelos subterrâneos do partido.
Ao contrário, transferiu o propinoduto para o porão do Palácio do
Jaburu, já na condição de presidente da República.
Encaminhada na segunda à noite ao Supremo Tribunal pelo procurador-geral
da República, Rodrigo Janot, a denúncia de corrupção passiva se baseia
em depoimento e gravação de conversa com o presidente feitos pelo
empresário Joesley Batista, do grupo JBS. Mas não só. Joesley, segundo
acordo de delação premiada assinado com a PGR, colaborou, ainda, em uma
"operação controlada", nos termos da legislação, em que, além de
gravações, foi feito vídeo da entrega de mala com R$ 500 mil ao deputado
Rodrigo Loures (PMDB-PR), indicado por Temer ao empresário para tratar
de "tudo", de qualquer assunto de interesse de Joesley.
Somadas, as provas sustentam uma denúncia sólida contra Temer: gravação
do presidente indicando Loures para Joesley abordar temas subterrâneos,
na falta do ex-ministro Geddel Vieira, sob investigação; Loures, também
em gravação, dispondo-se a defender interesses de Joesley no Cade e na
CVM; e o acerto de uma generosa mesada a Loures, em troca da ajuda na
solução de uma pendência com a Petrobras sobre o preço do gás cobrado a
uma termelétrica da JBS.
O quadro se fecha com um depoimento do executivo do JBS Ricardo Saud
comprovando ser correta a evidência de que Loures recebia o dinheiro em
nome de Temer. Os dois, como disse o executivo, teriam bela
"aposentadoria" . Pois, paga ao longo de 25 a 30 anos, a propina
chegaria a centenas de milhões.
O presidente decidiu rebater a acusação da PGR em pronunciamento, ontem à
tarde, no Planalto, diante de uma plateia de aliados, com os quais
espera contar na votação da denúncia, a ser enviada à Câmara pelo
Supremo. Mas, em vez de responder a questões objetivas da acusação,
partiu para o ataque a Janot. Para Temer, a PGR "reinventou o Código
Penal", ao instituir a "denúncia por ilação". Mais: a delação de Joesley
Batista foi negociada por um ex-procurador que trabalhara com o
procurador-geral e, por este trabalho, teria ganhado muito dinheiro.
Aproveitou para insinuar que Janot teria recebido parte do pagamento,
mas disse que não faria a denúncia, porque, assim, repetiria a acusação
da PGR contra ele.
É muito difícil que a aplicação do velho chavão - a melhor defesa é o
ataque - funcione diante de tantos indícios e provas em sentido
contrário. Para descredenciar a gravação feita por Joesley da conversa
noturna no porão do Jaburu, Temer insistiu com o laudo feito por perito
contratado por sua defesa, quando a Polícia Federal acabara de atestar
como verdadeiro o áudio. As 294 paralisações da gravação, segundo a PF,
não são intervenções fraudulentas, mas característica do gravador, que
para quando ninguém está falando.
Ainda há mais acusações a caminho contra Temer. A de obstrução da
Justiça foi reforçada com a elucidação, pela PF, de trechos que eram
inaudíveis. A criação de obstáculos para a ação do Estado na repressão
ao crime ficou configurada quando Joesley e Temer trataram da ajuda
financeira a Eduardo Cunha e a Lúcio Funaro, operador financeiro de
Cunha e de outros do PMDB.
Joesley fazia pagamentos periódicos a Cunha e Funaro, em troca do
silêncio dos dois. Houve grande controvérsia em torno de algumas
palavras, mas o trabalho feito nos laboratórios da PF reforça a acusação
do procurador-geral de que Temer, naquela noite, estimulou o empresário
a continuar com os pagamentos aos dois. Esta é uma passagem tóxica para
Michel Temer.
Na segunda-feira, o presidente aproveitou solenidade no Planalto para
dar um grito de guerra: "Nada nos destruirá, nem a mim, nem aos
ministros" . Resta saber como. À noite, depois de formalizada a
acusação, Temer se reuniu em Palácio com o ministro Moreira Franco, da
Secretaria-Geral da Presidência; a advogada-geral da União, Grace
Mendonça, e advogados que o defendem no STF. As tropas de Temer, porém,
são mais numerosas.
Elas já devem estar fazendo intenso trabalho junto aos membros da
Comissão de Constituição e Justiça, para onde a presidente do Supremo,
Cármen Lúcia, enviará a denúncia. Conseguir que a CCJ rejeite o pedido -
mesmo que ele siga de qualquer forma ao plenário - é importante para
Temer. Deverá ser feito "o diabo", nos termos usados por Dilma Rousseff,
na obtenção de votos na comissão. Caberá vigilância estreita sobre as
transações que inevitavelmente transcorrerão na Câmara.
São conhecidas as manobras para trocas de deputados com assento na CCJ,
para se garantirem resultados nas votações. Nesta hora, pesam os
vínculos e compadrios construídos por Temer e seu grupo durante muito
tempo de convívio no Congresso. A não ser que conte a impopularidade
recorde do presidente. Mas ele jogará tudo para fazer morrer na Câmara a
acusação, evitando que chegue aos 11 ministros do Supremo, Corte muito
diferente do TSE.
O resto é zelar pelos trâmites constitucionais, sem manobras
protelatórias, para se desatar o nó político-institucional, pelas regras
legais. A economia ainda emite sinais positivos decorrentes do que pôde
ser feito até o porão do Jaburu ser iluminado pela delação de Joesley.
Mas seria um milagre o PIB se desconectar de uma crise que tem nome:
Michel Miguel Elias Temer Lulia. Porém, importa agora é que as
instituições decidam, essencial para manter a segurança jurídica,
independentemente de qual será o desfecho.DO J.TOMAZ