Por Felipe Melo
A diversidade e a tolerância são dois fundamentos essenciais
de qualquer sociedade justa. O embate entre ideias divergentes é uma força
motriz de grande importância para a saúde social dos homens - desde que, claro,
seja conduzida dentro dos limites morais, os quais são impossíveis de ignorar
sem colocar em risco a própria civilização. Assim sendo, partimos do seguinte
pressuposto: há, por um lado, muitas questões que são opináveis por se
relacionarem a problemas contingenciais e, portanto, não se vertem em
obrigações morais de per si; e, por outro lado, há questões que não são
opináveis, cuja vigência independe das contingências locais e temporais por se
relacionarem à natureza humana. Na defesa das questões opináveis, um indicador
da seriedade de quem toma uma posição é a coerência. Exemplo: se eu defendo que
o governo não deve se intrometer na economia, é lógico deduzir que eu também
teria de defender que o salário mínimo fosse abolido. Quando nos deparamos com
alguém que não apresenta essa coerência, há duas possibilidades: ou sua crença
naquela ideia não é honesta, ou seus objetivos ao defender essa crença não são
honestos.
Coerência e honestidade são, como sói acontecer nesses tempos
revolucionários, artigos raríssimos cuja alarmante escassez nos fez, ao longo
do tempo, transformá-los não em itens obrigatórios, mas em adornos acessórios.
E existem alguns indivíduos que menosprezam completamente esses acessórios, não
por ignorância, mas voluntariamente. Curiosamente, a esmagadora maioria desses
indivíduos se auto-intitula "livre pensador", "progressista" ou "libertário",
alegando serem dotados de "consciência social", "espírito democrático" e outros
termos politicamente corretos que estão na moda. Tudo isso é uma cortina de
fumaça para esconder a real ânsia totalitária que subjaz a essa retórica
florida e perfumada.
Dentre as inúmeras bandeiras levantadas pelo vulgo progressista, uma delas é a
defesa do Estado laico - ou melhor, é isso o que eles alegam. O velho cadáver
insepulto do laicismo, que já fedia na época dos jacobinos, parece ter um
efeito hipnotizador sobre algumas mentes. A separação entre Igreja e Estado não
foi suficiente, pelo visto: é preciso igualmente sufocar qualquer manifestação
pública de religiosidade que respingue, de alguma forma, no trono do Leviatã.
Nos últimos tempos, temos visto uma grande quantidade de ações vergonhosas que
buscam levar o laicismo - um dos muitos artigos de fé do credo revolucionário -
a todos os lugares, solapando aos poucos as manifestações públicas de crença religiosa.
Em um discurso ao corpo diplomático junto à Santa
Sé, afirmou o papa João Paulo II:
As comunidades de crentes estão presentes em todas as
sociedades, expressão da dimensão religiosa da pessoa humana. Por conseguinte,
os fiéis esperam poder participar legitimamente no diálogo público.
Infelizmente, deve-se observar que nem sempre é assim. Nestes últimos tempos,
em certos países da Europa, nós somos testemunhas de uma atitude que poderia
pôr em perigo o respeito efetivo pela liberdade de religião. Se o mundo inteiro
concorda em respeitar o sentimento religioso dos indivíduos, não se pode dizer
a mesma coisa do "fato religioso", ou seja, da dimensão social das religiões,
esquecendo-se dos compromissos assumidos no contexto daquela que então se
chamava a "Conferência sobre a Cooperação e a Segurança na Europa". Evoca-se
com frequência o princípio da laicidade, em si mesma legítima, quando é
compreendida como distinção entre a comunidade política e as religiões (cf.
Gaudium et spes, 76). Todavia, distinção não quer dizer ignorância! Laicidade
não é laicismo! Ela não é senão o respeito por todos os credos por parte do
Estado, que assegura o livre exercício das atividades cultuais, espirituais,
culturais e caritativas das comunidades dos crentes. Numa sociedade pluralista,
a laicidade é um lugar de comunicação entre as diferentes tradições espirituais
e a nação. Pelo contrário, as relações Igreja-Estado podem e devem dar lugar a
um diálogo respeitoso, portador de experiências e de valores fecundos para o
futuro de uma nação. Um diálogo sadio entre o Estado e as Igrejas que não são
concorrentes, mas parceiros, pode sem dúvida favorecer o desenvolvimento
integral da pessoa humana e a harmonia da sociedade.
No preâmbulo da Constituição Federal de 1988, diz-se que a
Carta Magna foi promulgada "sob a proteção de Deus". Apesar de se estabelecer
claramente que, no Brasil, existe independência entre as religiões e o Estado -
"[é] vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o
funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência
ou aliança" (Cf. Constituição Federal, art. 19, I) -, a deformada mente
laicista vê nisso uma afronta ao princípio do Estado laico. Ela vê também na
presença de crucifixos em repartições públicas uma evidência de que o Estado
brasileiro não respeita a laicidade.
Mas não paramos por aí. A novidade agora é que a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão
em São Paulo ajuizou pedido à Justiça Federal para que
as cédulas de real não mais sejam impressas com a frase "Deus seja louvado".
Alegando que "é sabido que inúmeras pessoas têm sua liberdade de crença
ofendida diante da ostentação da expressão 'Deus seja louvado' das cédulas
brasileiras", o procurador Jefferson Aparecido Dias - cuja formação foi
fortemente influenciada pelo neomarxista Joaquín Herrera Flores e pelo jurista
marxista Antonio Carlos Wolkmer, ligado a Roberto Lyra Filho e o chamado
"Direito Achado na Rua" - defende que a liberdade religiosa não é respeitada no
Brasil em virtude da presença dessa frase nas cédulas de dinheiro. E vai além:
[D]o mesmo modo que a presença de crucifixo em salas de aula
pode representar diretriz a balizar os caminhos religiosos a serem seguidos
pelos jovens alunos, com a mentalidade e caráter ainda em desenvolvimento, em
razão da possibilidade de associação entre a religião ali representada e a
escola, fonte do saber, assim também o é com a presença da expressão "Deus seja
louvado" em cédulas de Real, devido à potencialidade da associação a ser
realizada pelos jovens brasileiros, os quais também se utilizam do Real para
atender suas necessidades materiais, entre as religiões que professam a fé em
Deus e o dinheiro, instrumento de poder aquisitivo.
O eminentíssimo Dr. Aparecido Dias deve conhecer bastante o
drama de todas aquelas "inúmeras pessoas têm sua liberdade de crença ofendida
diante da ostentação da expressão 'Deus seja louvado' das cédulas brasileiras".
Ele aponta também que a "manutenção da situação em discussão constrange a
liberdade de religião de todos os cidadãos que não cultuam Deus, tais quais os
ateus e os que professam a religião budista, muçulmana, hindu e as diversas
religiões de origem africana."
É até de se imaginar a cena: um babalorixá - ou um praticante de wicca, ou um
budista Mahayana, ou um muçulmano sunita, ou um sikh ostentando um
suntuoso turbante colorido sobre o rosto barbado, ou até mesmo um daqueles
ateus bem descolados, com direito a camiseta do Richard Dawkins - vai descontar
um cheque na boca do caixa e recebe, trêmulo, notas e mais notas de real;
nenhuma, nenhumazinha sequer, escapa do lastimável e grotesco destino de ter
sua superfície tingida com as ignominiosas palavras "Deus seja louvado".
Descargas de adrenalina, uma trava na garganta, olhos embaçados... Ultrajante,
simplesmente ultrajante.
Caso o zeloso Dr. Aparecido Dias prossiga em sua impetuosa cruzada contra
quaisquer manifestações que, a exemplo da frase "Deus seja louvado" das notas
de real, é possível induzir quais são as ações vindouras: a mudança do nome de
todos os logradouros, bairros, vilas, cidades e estados que levam nomes de
cunho cristão - Espírito Santo, São João Del Rey, São Paulo, Santa Catarina,
Belém, e inúmeros outros - para nomes neutros que não ofendam os não-cristãos;
a eliminação de todos os feriados e pontos facultativos motivados por religião,
como o dia de Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro); a proibição da
instalação de presépios e outras decorações de Natal por parte dos governos
federal, estaduais e municipais; a proibição do uso de adornos de cunho
religioso por parte de servidores públicos durante o horário de expediente; a
dissolução das capelanias das corporações militares; e, por que não?, a mudança
do calendário - afinal, essa história de "antes de Cristo" e "depois de Cristo"
claramente privilegia Jesus em detrimento de outras figuras religiosas, certo?
Curiosamente, nem o eminente procurador, nem qualquer um dos defensores dessa
visão laicista levantou a voz contra a permanência das estátuas da deusa pagã
Têmis em todos os tribunais brasileiros. Aliás, não há qualquer menção de se
constranger manifestações públicas de qualquer religião exceto o cristianismo.
Quando a organização da Parada Gay de São Paulo - financiada largamente com
dinheiro público, diga-se de passagem - utilizou, em 2011, fotos que imitavam santos da Igreja Católica
em suas propagandas, ou quando invadiram a igreja de Nossa Senhora de Copacabana
durante um protesto feminista, nada foi dito quanto ao constrangimento da
liberdade religiosa dos cristãos. O que parece estar em jogo não é a liberdade
religiosa dos cidadãos brasileiros, mas o aparente excesso de liberdade
religiosa dos cristãos.
Aliás, vale mencionar algo no mínimo irônico. As notas de
real levam impressas a efígie da República, imagem construída pelos
revolucionários jacobinos durante o banho de sangue que promoveram na França de
fins do século XVIII. A imagem da República, batizada pelos jacobinos de
Marianne, teve uma inusitada inspiração: a sacerdotisa Semíramis, esposa de
Nimrod. O soberano Nimrod foi o governante babilônico que, considerando ser uma
injusta escravidão servir a Deus, decidiu desafiá-Lo construindo a Torre de
Babel. Nimrod queria mostrar com isso que o homem não precisava de Deus para
absolutamente nada, e que era um dever do homem fazer pouco do Criador.
Qualquer semelhança com a situação atual não é mera coincidência.
* Felipe Melo edita o blog da Juventude Conservadora da UnB
Fonte: "Mídia Sem Máscara"
DO DEMAIS