FOTO IARA MORSELLI / ESTADÃO
Renato Meirelles, do Instituto Locomotiva, revela, em pesquisa, que 84% veem o País ‘no rumo errado’,
que o povo pouco espera do Estado e que
os políticos não perceberam como a internet
revolucionou a vida social
Não é fácil entender um país onde 64% acham que a democracia é o
melhor regime e 51% afirmam que as coisas estariam melhor se não
existisse partido nenhum. Onde 47% dos que se dizem de esquerda
sustentam que “direitos humanos não devem valer para bandidos” e 64% dos
ditos direitistas aprovam um governo com estatais fortes. E tudo num
cenário onde 84% dizem que o País “está no rumo errado” mas, ao mesmo
tempo, a política é relegada, nas percepções individuais,ao oitavo ou
nono lugar entre as coisas que o pesquisado considera importantes.
Números como esses e outros na mesma direção – ou falta dela… –
acabam de ser levantados na pesquisa “O Brasileiro e a Política”, pelo
Instituto Locomotiva, do economista Renato Meirelles, em parceria com a
eCGlobal. O trabalho traz, em seu conjunto, dois fatos centrais. O
primeiro, um distanciamento gigantesco entre cidadania e classe política
— fenômeno que não é novo mas que vem à tona em números atuais. O
segundo é um cenário difuso, de percepções às vezes conflitantes, de uma
nova opinião pública forjada pelas redes sociais e até aqui ignorada
pela maioria dos políticos.
“Os dados, no conjunto, mostram que o descolamento entre dirigentes e
opinião pública nunca chegou a um patamar tão grande”, resume Meirelles
sobre a sondagem, que apresentou questões com escolhas múltiplas a 640
cidadãos, com margem de erro de 4%. “O que temos hoje, no País, é um
caminho sem volta, que só se resolve quando se repactuar um novo modelo
para gerir a sociedade”, constata o pesquisador nesta entrevista a
Gabriel Manzano.
Essa nova realidade não apareceu de repente, diz Meirelles. “Já em
2014, um terço do eleitorado nacional voltou em Dilma, um terço em Aécio
e um terço não votou – essa foi a soma de nulos, brancos e abstenções.
Assim, qualquer que fosse o vencedor teria contra si dois terços do
Brasil.”
E há outros sinais, mais recentes, dessa nova situação de
imprevisibilidade. Quanta gente, mesmo entre analistas, previu que João
Doria ganharia em São Paulo no primeiro turno? Quantos, nos EUA, levavam
Donald Trump a sério até 20 dias antes da eleição? “Acho que tem muita
gente olhando a sociedade contemporânea com olhos do século 20”, observa
Meirelles. A pesquisa perguntou aos eleitores o que eles querem? “Sim. E
eles não sabem. Querem algo diferente, e pronto.” A seguir, os
principais trechos da conversa.
A pesquisa do Locomotiva mostra que 96% acham que o País vive
uma crise. Para 75% é uma crise grave e 43% se sentem muito atingidos
por ela. Por fim, 84% não se sentem representados por nenhum partido
político. O que esses dados mostram?
Eles apontam que o descolamento dos dirigentes em relação à opinião
pública nunca chegou a patamar tão grande. E grande a ponto de ser
transversal – está presente em todas as classes econômicas, faixas
etárias, regiões e níveis de educação. É um descontentamento inédito, um
divórcio, um caminho sem volta que só vai se resolver quando se
repactuar um novo modelo para gerir a sociedade.
Quando e como tomou corpo todo esse descontentamento?
Foi principalmente a partir de 2013, quando a cidadania mudou sua
régua de qualidade, tornando-se mais exigente com as autoridades. O que
impressiona é como a classe política desprezou a importância disso. Até
hoje ela não enxerga direito a situação.
Como assim?
O debate atual ignora que, em 2014, dois terços do País não tinham
votado no eleito. Dilma tinha um terço do eleitorado total, Aécio outro
terço e o último era dos nulos, brancos e abstenções. Não havia ali um
sentimento majoritário para nada.
Qual o peso que têm, nisso, as manifestações de rua?
Elas foram causa, e não consequência, dessa mudança. O povo que foi à
rua já sabia o que não queria, foi marcar presença a respeito. Veja, em
abril de 2016 uns 62% aprovaram o impeachment de Dilma, mas 50% também
queriam o de Temer. O descontentamento era contra a classe política
inteira e não mudou de intensidade nem de direção. Aí você pergunta: o
que eles querem? Eles não sabem. Querem é algo diferente.
Em outro ponto, o levantamento diz que 64% acreditam que para
melhorar dependem mesmo é de si próprios, de seu esforço, e 45% (as
respostas são múltiplas) confiam “na fé e em Deus”. Ou seja, não esperam
nada de um governo.
Sim, é uma alta parcela que não acredita em governo para melhorar de
vida. A classe dirigente fica discutindo entre Estado grande e Estado
pequeno. Isso pouco importa pro cidadão, ele quer um Estado eficiente.
Que faça valer seus direitos, dê igualdade de oportunidades. Cada vez
mais pessoas defendem a meritocracia, mas sabem que ela só faz sentido
se houver igualdade de oportunidades. Quando todos partem de um mesmo
patamar.
‘EM DEZ ANOS, O PAÍS
GANHOU 54 MILHÕES DE
NOVOS INTERNAUTAS’
Como analisa o que chamou de ‘descolamento’ entre cidadãos e governos? Qual a saída?
Esse descolamento foi uma das razões que nos levaram, a mim e ao
Carlos Alberto Julio, a criar o Instituto Locomotiva. Queríamos saber
por que muitas previsões de governos, de empresas, mostram-se erradas.
Nós nos demos conta de que tem gente olhando a sociedade de hoje com
olhos do século 20. Ainda se fala demais de grupos “de esquerda” e “de
direita” — a sociedade hoje é bem mais complexa do que isso. Constatamos
também que se exagera o peso do bolso, do dinheiro, na formação de
opiniões. A dinâmica de hoje não permite mais a previsibilidade de
outros tempos.
Pode explicar melhor?
Aquela “família margarina” tradicional, reunida no café da manhã,
constitui hoje apenas um terço do total das famílias brasileiras. Temos
no País 10 milhões de pessoas que vivem sozinhas – um mercado
específico, de comportamentos e expectativas pouco avaliadas. A
comunicação não é mais só TV-rádio-jornal, as redes sociais se
expandiram. A nova comunicação não se resume a passar mensagem e pronto,
é de trocas dinâmicas. O Brasil ganhou 54 milhões de novos internautas
só nos últimos dez anos. É gente que vê, ouve, escreve, responde,
aprova, discorda, espalha. E é um fenômeno global. Fazer análise correta
do presente e previsão do futuro virou uma tarefa mais arriscada.
Tem números sobre isso?
Sim, temos. Um exemplo: 43% dos que apoiam partidos de esquerda
acreditam em Deus e dizem que isso as torna pessoas melhores. E mais:
47% desse universo dito esquerdista acha que direitos humanos não devem
valer para bandidos. E 85% dos que apoiam partidos ditos de direita
afirmam que cabe ao governo promover justiça social e 64% acham positivo
o governo ter empresas estatais fortes. Como, então, dividir esse
eleitorado entre esquerda e direita? O mundo não se organiza mais dessa
forma.
De que forma ele se organiza?
Acredito que ganha força, em nossa sociedade urbana, um comportamento
do tipo “eu acredito no meu trabalho e no meu esforço, no qual o Estado
tem é que funcionar.” Veja, se eu fico três horas numa fila de banco,
ligo pro Procon. Mas se eu fico três horas na fila do SUS, ligo pra
quem? O desafio seguinte é o dado já mencionado de que 51% dos que
entendem que a democracia é o melhor regime também afirmam que o País
estaria melhor sem partidos políticos. Isso quer dizer que não acreditam
na democracia? Não. Quer dizer que esse modelo partidário tradicional,
para o cidadão, perdeu a razão de ser.
E essa opinião é reforçada, no dia a dia, pelas denúncias,
prisões e condenações de outrora poderosos líderes políticos e
empresariais. Até o presidente Temer sofre com a carência de “fichas
limpas” para formar sua equipe.
Sim, e esses episódios, no dia a dia, comprovam para o cidadão que
sua visão da classe política é correta. E assim ele continua não
confiando em ninguém.
47% DA ‘ESQUERDA’ APROVA
A LINHA DURA NO
TRATO COM ‘BANDIDOS’
Há um peso óbvio da internet, que mudou a dinâmica, a
velocidade e portanto a percepção geral da vida social, criando um novo
espírito crítico. Para onde isso aponta?
A internet, de fato, representa uma revolução – e tanto governos
quanto empresas, não avaliaram devidamente o seu impacto. A
democratização da internet faz com que as pessoas se organizem de formas
diferentes. O modo como se organizam pra defender um candidato é
diferente do modo como o fazem para defender, ou atacar, a lei do
aborto, ou debater o feminismo. São formas de organização mais líquidas,
que trazem consigo mais incoerências.
Como é entendida, nesse quadro, a epidemia de corrupção que veio à tona no País?
Há um ano uma pesquisa nossa revelou que pouco mais de 3% dos
brasileiros se consideravam corruptos. E 6%, o dobro, admitiam que já
foram corruptos em algum momento da vida. Diante de perguntas como “você
já falsificou uma carteira de estudante”, ou “deu propina a um guarda
de trânsito”, o número chegava 8 de cada 10 pessoas.
Ou seja, não é só político ou empresário, a sociedade de modo geral é corrupta.
Isso quer dizer que a corrupção na vida brasileira é naturalizada.
Tanto que criamos até um eufemismo pra ela, o chamado “jeitinho
brasileiro”. Isso tem de ser mudado na escola, na educação. O Brasil só
melhorou os índices de cárie quando passou a ensinar as crianças na
escola a escovar os dentes. E a economizar energia quando se ensinou
também na escola a importância de apagar a luz. A meninada adotou e
passou a patrulhar os pais em casa pra fazerem a mesma coisa. Por que
não fazer isso também com a corrupção?
A propósito, sua pesquisa perguntou às pessoas sobre preferências, valores e prioridades. O que se revelou?
Tentamos saber qual o peso, na vida deles, de coisas concretas,
diárias, na visão que formam de si mesmos, como influem em suas
opiniões. Metade deles achou importante “o papel na família, hobbies,
preferências pessoais”. E 45% citaram “trabalho e profissão”. Seguem-se
escolhas como preferência musical (38%), crença (36%), idade (36%),
condição financeira (27%). Isto é, só 27% admitem que se autoavaliam
pela situação econômica que alcançaram. Muito mais abaixo é que aparece a
posição política, com 15%. O peso do time pelo qual torcem foi
mencionado por 14%. Concluindo: para se entender de fato, hoje, como as
pessoas selecionam os fatores que formam suas avaliações de si e do
mundo, é preciso levar em conta que condição financeira não é
predominante e que a posição política está empatada com o time
preferido. DO ESTADÃO