Chicanas e negaças não impedem o mau cheiro das manobras da máfia que ainda nos governa
Publicado no Estadão
Em nossa capital dos convescotes, onde os três Poderes da
República confraternizam nos fins de semana e passam os dias úteis
conspirando para salvar a própria pele e esfolar a Nação, a máfia dos
compadritos – malfeitores portenhos na ficção genial de Jorge Luis Borges – se esfalfa para não ser extinta.
No Poder Legislativo, bocas malditas dão conta à boca
pequena de que se conspira para dar de mão beijada aos ex-presidentes
José Sarney, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e
Dilma Rousseff (por que não Fernando Collor?) indulgência perpétua para
manter Michel Temer solto, caso seja defenestrado, como o major
boliviano Gualberto Villarroel – este foi atirado pela janela do Palacio
Quemado e linchado pela malta enfurecida, em 21 de julho de 1946.
Ninguém espera que Temer seja atirado vidraça afora do Palácio do
Planalto, tendo a palavra defenestrado sido usada apenas como um reforço
de linguagem, uma metáfora do desejo da quase totalidade da população
brasileira, que o prefere sem poder. Mas que saia inteiro, como a rainha
da sofrência Roberta Miranda se dirige ao ex-amor no sucesso
Vá com Deus.
Embora seja mais difícil querer que ele saia íntegro desde a explosão
sobre a faixa presidencial da bomba H da delação de Joesley Batista, o
marchante de Anápolis que virou tranchã do próspero negócio da proteína
animal no mundo.
Passadas duas semanas das revelações do delator premiado,
Temer não contestou nenhuma das acusações que lhe faz, com base na
delação, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, no pedido de
abertura de inquérito encaminhado ao relator da Operação Lava Jato no
Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Edson Fachin: corrupção
passiva, organização criminosa e obstrução da investigação. Em vez
disso, contratou o perito Ricardo Molina para acusar a gravação da
conversa nada republicana de delator com delatado de má qualidade e de
prova de incompetência e ingenuidade dos procuradores que a negociaram.
OK. E daí?
O Palácio do Planalto já desmentiu o procurador-geral. Mas
juntamente com o desmentido foi dada a prova mais evidente – para
qualquer cidadão com quociente de inteligência superior a 50 – de culpa
do chefe do governo ao introduzir o roque do xadrez na gestão pública.
Insatisfeito com a “timidez” de seu ministro da Justiça na direção da
Polícia Federal (PF), ele demitiu o deputado Osmar Serraglio (PMDB) e o
substituiu pelo jurista Torquato Jardim, cuja opinião depende tanto do
interesse do patrão quanto a do atrapalhado legista. Renan Truffi
revelou neste jornal que, em texto escrito em julho de 2015, ele
escreveu que, “desconstituído o diploma da presidente Dilma, cassado
estará o do vice Michel”.
Como se sabe, em maio de 2016, dez meses depois, o vice
Michel era presidente e, no mês seguinte, o renomado causídico assumiu a
pasta da Transparência, Fiscalização e Controladoria-Geral da União.
Desde então, tornou-se um devoto discípulo do “Velho Capitão” Francisco
de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello, cujo engenho, mesclado à
flexibilidade ética que praticava, produziu a pérola que pode servir de
lema para o brasão do mais ilustre membro do clã Jardim: “A coerência é a
virtude dos imbecis”. É ou não é?
Segundo relato de Felipe Luchete, do site de notícias jurídicas
Conjur,
o ministro criticou, em 21 de fevereiro passado, procedimentos da
Operação Lava Jato: Jardim “listou problemas como as longas prisões
provisórias, com duração de até 30 meses, e condenações sem provas, já
reconhecidas pela Justiça. Ao comentar a operação, ele afirmou ainda que
vazamentos seletivos geram ‘nulidade absoluta’ de processos”. O jornal
Diário do Povo do Piauí
publicou no dia de sua posse no Ministério de Temer sua profecia de que
a Lava Jato teria destino igual ao das operações anteriores da Polícia
Federal, caso da Castelo de Areia, sepultada no STF. Bidu!
Fiel ao brocardo de Chatô professado pelo chefe, sua
assessoria tentou negar os fatos acima revelados, contrários à opinião
da maioria da população, em nota ao
Fantástico, que os
noticiara. Mas isso não quer dizer que a troca de Osmar Serraglio por
ele difira da substituição, feita por Dilma, do advogado José Eduardo
Martins Cardozo pelo procurador Eugênio Aragão, alcunhado de “Arengão”
por seu chefe, ex-amigo e agora desafeto, Janot.
Mais pernóstica do que a missão que ele nega, contudo, é a
tentativa de transferir o antecessor para a pasta que antes o incoerente
ocupava. O boquirroto Serraglio se jactava para quem se dispusesse a
dar-lhe um minuto de atenção de que não era “pato manco” no governo
Temer. E todos sabemos que isso se devia a que sua permanência na pasta
garantia o salvo-conduto para o suplente Rodrigo da Rocha Loures
continuar no lado bom do dilema “ou foro ou Moro”, mantendo o foro
privilegiado na cadeira para a qual o ex-futuro ministro da
Transparência foi eleito.
O episódio encerrado com a recusa de Serraglio de ocupar o
novo cargo cancela os significados de transparência, fiscalização,
controle, justiça e outras já expelidas da gestão pública e da política
do País: ética, decoro, vergonha… Mas essa consequência é menor do que o
motivo real do frustrado “movimento combinado do rei e de uma das
torres, que se desloca para uma posição mais atuante para dar mais
segurança ao rei”, como o
Dicionário Houaiss define o roque, aquela jogada de xadrez acima citada.
Assim como a tentativa de desqualificar o depoimento do
marchante delinquente por causa de seus crimes pregressos ou da má
qualidade da gravação que ele fez nos porões do palácio, o odor infecto
da matéria orgânica à tona de 17 de maio para cá já ficou insuportável. E
exige mais atenção às manobras com que os
compadritos da política tentam manter seus privilégios no
statu quo. Desfaçatez, chicanas e negaças não perfumam o ar apodrecido das catacumbas da máfia multipartidária que nos governa. DO R.ONLINE