No momento em que o governo tenta conter de novo o desempenho fraco
da economia pelo consumo, o peso das dívidas antigas alcança valores
recordes no orçamento das famílias brasileiras. Em abril, só as dívidas
financeiras representavam em média 45% da renda anual, segundo projeção
do economista Simão Silber, da Universidade de São Paulo (USP), com base
em dados do Banco Central (BC). Esse percentual era de 24,94% em
janeiro de 2007 e de 35,8% no começo de 2010.
— O comprometimento
das famílias com o endividamento aumentou bastante recentemente e dá
sinais de saturação. A questão é que o maior acesso a crédito no Brasil é
acompanhado por taxas de juros ainda elevadas, o que significa um
perfil de endividamento que não é saudável. Isso gera a armadilha da
dívida. As pessoas vão se estrangulando e ficam presas aos bancos —
afirma o professor de Economia da Uerj Luiz Fernando de Paula, admitindo
risco de aumento de inadimplência por causa das medidas de estímulo ao
consumo anunciadas pelo governo.
Além disso, atualmente, todo mês,
mais de um quinto da renda das famílias já está comprometida com o
pagamento de dívidas bancárias. Neste caso, essa fatia saltou de 18%, em
janeiro de 2008, para 22% em fevereiro último. Um percentual muito
elevado, segundo economistas, já que o consumidor ainda tem despesas
como educação, habitação, transporte, saúde e alimentação. O excesso de
dívidas acaba se traduzindo em aumento de inadimplência. Em março, a
taxa, que considera atrasos acima de 90 dias, chegava a 7,4% dos
financiamentos para pessoas físicas, ou R$ 38,85 bilhões.
Classe C deve 60% de sua renda anual
O
educador financeiro Mauro Calil considera o grau de endividamento das
famílias hoje elevado. Ele acredita que as novas medidas de incentivo ao
consumo podem até ser favoráveis para a sociedade, por estimularem a
economia, mas alguns indivíduos pagarão a conta, com mais endividamento.
A
situação no Brasil é mais delicada que em outros países. Nos Estados
Unidos, por exemplo, a fatia da renda mensal para quitar dívidas
bancárias varia de 15% a 17%. Em países ricos, o nível de endividamento
pode até ultrapassar 100% da renda anual. Mas, como os juros são menores
e os prazos muito mais longos que no Brasil, o peso final no orçamento
mensal das famílias (que é o comprometimento) é proporcionalmente menor.
Outro agravante no caso brasileiro, segundo o professor da Uerj, é o
prazo mais curto dos financiamentos.
— O endividamento e,
principalmente, o comprometimento da renda mensal hoje são muito maiores
que em 2008 e 2009, e o pacote do governo é o mesmo. Para voltar a se
endividar com crédito, o consumidor tem de recuperar espaço no orçamento
— diz Luiz Rabi, gerente de indicadores de mercado da Serasa Experian. Cálculos
da área econômica do banco Pine indicam que o nível de endividamento
médio é ainda maior entre as famílias da chamada classe C, com renda
mensal entre 2,5 e cinco salários mínimos (de R$ 1.555 a R$ 3.110):
chegaria a 60% da renda anual.
— Ultimamente as dívidas que esse
extrato têm contraído são mais caras que em 2009, por exemplo. Até
então, o endividamento era em CDC (crédito direto ao consumidor), agora
há dívida em cheque especial, cujos juros são mais altos — observa Marco
Maciel, economista-chefe do banco Pine. Luiz Fernando de Paula
lembra ainda que a baixa renda, além de só ter acesso a crédito com
taxas de juros mais altas, tem menos facilidade para negociar suas
dívidas com as instituições financeiras.
O encarregado
administrativo Daivison da Costa, de 31 anos, foi um dos que se viu
envolvido em dívidas que não conseguia pagar. Em 2007, ele teve um
cheque de cerca de R$ 2 mil protestado às vésperas de seu casamento. As
despesas do dia a dia e os gastos com a cerimônia e com a casa nova
dificultaram o pagamento. — Outro problema foi o parcelamento
proposto pelo banco. As parcelas eram muito altas, incompatíveis com
meus gastos mensais e com juros muito altos — conta Daivison. A
supervisora de vendas Jane Araújo, de 42 anos, contraiu uma dívida de R$
1.600 no banco em 2007, mas só deu atenção ao problema quando o débito
bateu R$ 6 mil: — Meu limite era de quase R$ 2 mil, e, a essa altura, era impossível pagar.
Silber, da USP, não vê nas medidas de estímulo ao crédito grande potencial para impulsionar a economia.—
Por mais que o governo queira, vai ser difícil esticar tanto o crédito
como já foi feito. E isso não ocorrerá por causa da estrutura atual. Os
juros ainda são muito altos e dívidas, mesmo pequenas, já comprometem
muito a renda. Além disso, os prazos dos empréstimos são curtos no
Brasil — diz Silber, lembrando que o prazo médio dos empréstimos para
pessoa física é de 600 dias, menos de dois anos.
A economista da
Confederação Nacional do Comércio (CNC) Marianne Hanson também acredita
que o endividamento vai limitar o impacto dessas medidas, porque as
pessoas estão mais cautelosas. As operações de crédito do sistema
financeiro alcançaram 49,1% do Produto Interno Bruto (PIB) no ano
passado, mais que o dobro dos 24,1% registrados em 2003. É consenso
entre os economistas que a expansão do crédito agora ocorrerá num ritmo
menos vertiginoso.
Maciel, do Pine, ressalta ainda que a redução
do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) de veículos e do
Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) nas operações de crédito são
muito restritos à indústria automotiva. (O Globo)
DO CELEAKS