Acompanhar
a atividade política no Brasil tornou-se um desafio. Sabe-se que há
políticos piores e melhores. Entretanto, é mais difícil discernir uns
dos outros. Os gatunos ficaram ainda mais pardos depois que a política
virou apenas mais um departamento da Construtora Odebrecht —o
‘Departamento de Negócios Estruturados’, eufemismo para setor de
propinas. A conspiração legislativa contra a Lava Jato, que era
envergonhada, desinibiu-se. Cresce na proporção direta do avanço dos
depoimentos resultantes do acordo de delação premiada dos executivos da
maior construtora do país.
O cerco à investigação é
suprapartidário. Envolve também o governo. Michel Temer faz juras de
amor à força-tarefa de Curitiba. Mas o Planalto comporta-se como uma
espécie de São Jorge que sai para salvar a donzela e acaba casando com o
dragão. O esforço para “estancar a sangria” faz lembrar a sucessão de
investidas de políticos italianos contra a Operação Mãos Limpas, que foi
deflagrada em 1992 e desnudou as relações orgânicas e promíscuas do
sistema político da Itália com empresas e o crime organizado.
No
Congresso brasileiro, trama-se aprovar uma anistia para todos os
políticos que receberam dinheiro ilegalmente via caixa dois. Participam
da articulação os principais partidos. Entre eles, por exemplo, PMDB,
PT, PSDB, DEM, PP e PR. A ideia é enganchar a emenda da anistia na
proposta de criminalização do caixa dois que integra o pacote de medidas
anticorrupção embrulhado pelos procuradores da Lava Jato. Alega-se que o
uso de caixa clandestino é disseminado na política. Sustenta-se, de
resto, que não se pode criminalizar a todos indistintamente.
Num
célebre discurso feito em 3 de março de 1992 no Parlamento italiano, o
ex-primeiro-ministro da Itália Bettino Craxi, um dos principais
investigados da Operação Mãos Limpas, disse o seguinte: “…Infelizmente, é
usualmente difícil identificar, prevenir e remover áreas de infecção na
vida dos partidos… Mais: abaixo da cobertura do financiamento irregular
dos partidos, casos de corrupção e extorsão floresceram e tornaram-se
interligados.”
Abusando do cinismo, Bettino Craxi prosseguiu: “O
que é necessário dizer e que, de todo modo, todo mundo sabe, é que a
maior parte do financiamento da política é irregular ou ilegal. Os
partidos e aqueles que dependem da máquina partidária […] têm recorrido a
recursos adicionais irregulares. Se a maior parte disso deve ser
considerada pura e simplesmente criminosa, então a maior parte do
sistema político é um sistema criminoso. Eu não acredito que exista
alguém nessa Casa e que seja responsável por uma grande organização que
possa ficar em pé e negar o que eu digo. Cedo ou tarde os fatos farão
dele um mentiroso.”
Em março de 1993, por iniciativa do governo do
então primeiro-ministro Giuliano Amato, foi ao Parlamento da Itália uma
proposta de descriminalização das doações ilegais de dinheiro para os
partidos políticos. A desfaçatez provocou uma reação liderada por
estudantes. Orgazinizaram-se passeatas. Escolas paralisaram suas
atividades. E a proposta não passou. A anistia tramada no Brasil para as
doações subterrâneas não é senão uma provocação às ruas, que
reaprenderam a roncar na jornada de junho de 2013.
Líder do
governo Temer na Câmara, o deputado André Moura (PSC-SE) empinou na
semana passada proposta de modificação das regras dos acordos de
leniência, como são chamadas as delações de empresas. A proposta alivia a
punição de empresas, livra seus executivos de condenações penais e
retira da mesa de negociações o Ministério Público Federal e o Tribunal
de Contas da União. Um acinte.
Acompanhado do ex-deputado Sandro
Mabel, hoje assessor do Planalto, André Moura exibiu o texto ao ministro
Torquato Jardim (Transparência), que levou o pé atrás. Havia na Câmara
um pedido para que a encrenca tramitasse em regime de urgência. Súbito,
esse requerimento foi retirado de pauta pelo presidente da Casa, Rodrigo
Maia (DEM-RJ). E Moura tentou sair de fininho, negando ser o autor do
projeto. O fantasma continua, porém, pairando sobre o plenário da
Câmara.
Simultaneamente, Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do
Senado, voltou a retirar da gaveta o projeto que altera a Lei de Abuso
de Autoridade. Relator da proposta, o senador Romero Jucá (PMDB-RR),
novo líder de Temer no Senado, bateu em retirada. Mas Renan prometeu
indicar um novo relator até quarta-feira. A banda muda do Senado adere
silenciosamente à iniciativa.
O juiz Sergio Moro e os procuradores
da força-tarefa da Lava Jato enxergaram na iniciativa de Renan uma
tentativa de intimidação. Multiinvestigado, Renan não se deu por achado.
Disse que convidará Moro e o procurador Deltan Dellagnol, coordenador
da Lava Jato, para debater o projeto no Senado.
Na Itália, os
botes tramados contra os investigadores foram ainda menos sutis. Em
julho de 1994, por exemplo, projeto de iniciativa do governo do então
primeiro-ministro Silvio Berlusconi sugeria simplesmente que fosse
abolida a possibilidade de prisão antes do julgamento para determinados
crimes. Entre eles os crimes de corrupção ativa e passiva. O time de
procuradores da Mãos Limpas ameaçou com a renúncia coletiva. As ruas
reagiram. Houve mobilizações populares defronte dos tribunais. E a
proposta foi rejeitada.
Onze anos antes de autorizar a deflagração
da Lava Jato, hoje a maior operação de combate à corrupção da história
brasileira, o juiz Sergio Moro escreveu, em 2004, um artigo sobre a
Operação Mãos Limpas. Foi desse artigo, disponível
aqui,
que o repórter retirou as informações reproduzidas acima sobre a
operação italiana. No seu texto, Moro soou premonitório. Foi como se
adivinhasse o que estava por vir.
“É ingenuidade pensar que
processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades
governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem
reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como
internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da
espécie. Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano,
é também essencial para o êxito da ação judicial.”
A Mãos Limpas
fisgou 6.069 pessoas. Entre elas 872 empresários, 1.978 agentes públicos
e 438 parlamentares. Expediram-se 2.993 mandados de prisão. ''As
investigações judiciais dos crimes contra a administração pública
espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda
de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime
organizado'', escreveu Moro no artigo de 2004. Ao final, algo como 40%
dos investigados não foram punidos. Leis foram alteradas. E os crimes
prescreveram.
No Brasil, nos casos que dependem do Supremo
Tribunal Federal, não houve nenhuma condenação. Há na Suprema Corte 42
investigações relacionadas à Lava Jato. Incluem a impressionante soma de
110 investigados. Há na lista 29 deputados federais e 13 senadores.
Nenhum foi condenado. A maioria não foi nem denunciada pela
Procuradoria-Geral da República. A delação da Odebrecht engordará os
escaninhos do Supremo. Os políticos estão cada vez mais distantes do
ideal de representantes da sociedade. As pessoas já não enxergam coisas
nossas na política. É tudo uma imensa
Cosa Nostra. - DO J.DESOUZA