O
então presidente Lula e Marco Aurélio Mello numa mesma solenidade. Em
2006, o ministro enxergou com clareza a extensão dos crimes cometidos
Sabem que
proferiu até hoje a condenação mais clara, veemente, inequívoca e
irrespondível dos mensaleiros? O ministro Marco Aurélio de Mello! Sim,
ele mesmo! Eu, que o tenho criticado muito nos últimos tempos, não teria
a menor dificuldade de assinar como se fossem minhas palavras que são
suas. E, se as reflexões daquele Marco Aurélio estão presentes no Marco
Aurélio de agora, a ambos devoto a minha admiração. Do que estou
falando? Já chego lá. Antes, algumas considerações.
Eu não sei
se os mensaleiros serão condenados ou absolvidos. Isso é com os
membros do Supremo e com a consciência de cada um. Eu não fico tentando
adivinhar o voto desse ou daquele. Limito-me a relatar e a comentar a
fala dos ministros e sua atuação dentro e fora do tribunal. Muitos
leitores andaram a me fazer cobranças por conta de algumas críticas que
fiz aqui a Marco Aurélio Mello. Compreendo a razão. Já o elogiei muitas
vezes, ele sabe disso, na contramão até da opinião considerada “correta”
pela média da imprensa. Isso nunca me pautou. Não tenho o menor receio
de ficar com a minoria se achar que ela está certa.
“E agora
critica por quê?” Porque não me alinho com pessoas, mas com ideias; não
apoio esta ou aquela personagens da vida pública em razão de afinidades
pessoais, mas de suas escolhas e atitudes. Elogiei Marco Aurélio, um
homem notavelmente inteligente, e outros tantos quando tomaram atitudes
que considerei acertadas; e os critiquei quando, a meu juízo, erraram.
Fiz consideração parecida quando tratei do ministro Dias Tóffoli. Fui
crítico severo de sua indicação, o que não impediu de reconhecer as
muitas vezes em que proferiu votos exemplares. E voltei a demonstrar meu
desconforto agora, quando não se declarou impedido, o que acho que
deveria, sim, ter feito.
Conversei
com Marco Aurélio ao telefone umas três ou quatro vezes. Encontramo-nos
uma única, num evento social. Em todas elas, uma prosa agradável, vivaz e
inteligente. Sempre admirei o que parece ser a sua independência e
certo espírito desafiador de falsos consensos. Ele sabe disso porque
escrevi isso. As minhas críticas de agora estão relacionadas,
especialmente, à sua loquacidade fora do tribunal. Não quero repisá-las
porque estão em arquivo. Costumo dizer que não dou conselhos a gente
mais rica e mais poderosa do que eu. E acrescentaria uma terceira
restrição: também não aconselho os mais sábios. Em matéria de direito,
ele é doutor, e eu não sou nem mesmo aprendiz. A minha opinião — não o
meu conselho — é a de que não deve se confundir, ainda que o fizesse por
excesso de rigor, com aqueles que pretendem fazer do STF uma caricatura
de tribunal de exceção. Só isso! Ao ser judicioso sobre alguns colegas —
ainda que pudessem estar errados —, acaba como aliado objetivo de quem
não está dando a menor bola para as instituições da República. E isso,
definitivamente, não está à sua altura e à altura de sua história no
tribunal. POUCO IMPORTA, REITERO, QUAL SEJA O SEU VOTO.
Viva este Marco Aurélio!
Agora, sim, quero retomar o primeiro parágrafo. No dia 4 de
maio de 2006, o ministro Marco Aurélio assumiu, pela segunda vez, o
cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Fez um discurso
primoroso (íntegra aqui).
No exercício da Presidência da República, estava o senador Renan
Calheiros (acho que Viajandão Inácio da Silva estava fora do país). Vejam
que coisa: Márcio Thomaz Bastos, então ministro da Justiça e hoje
advogado de um dos réus do mensalão, estava presente à posse. E ouviu do ministro as seguintes palavras. Leiam com atenção! Os destaques são meus. Volto depois.
(…)
Infelizmente, vivenciamos tempos
muito estranhos, em que se tornou lugar-comum falar dos descalabros que,
envolvendo a vida pública, infiltraram na população brasileira –
composta, na maior parte, de gente ordeira e honesta – um misto de
revolta, desprezo e até mesmo repugnância. São tantas e tão deslavadas
as mentiras, tão grosseiras as justificativas, tão grande a falta de
escrúpulos que já não se pode cogitar somente de uma crise de valores,
senão de um fosso moral e ético que parece dividir o País em dois
segmentos estanques – o da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o
poder de uma forma ilimitada e duradoura, e o da grande massa comandada
que, apesar do mau exemplo, esforça-se para sobreviver e progredir.
Não há,
nessas afirmações – que lamento ter de lançar -, exagero algum de
retórica. Não passa dia sem depararmos com manchete de escândalos. Tornou-se
quase banal a notícia de indiciamento de autoridades dos diversos
escalões não só por um crime, mas por vários, incluindo o de formação de
quadrilha, como por último consignado em denúncia do Procurador-Geral
da República, Doutor Antônio Fernando Barros e Silva de Souza. A
rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os
já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais
surpreendente, como se tudo fosse muito natural e devesse ser
assim mesmo; como se todos os homens públicos, nas mais diferentes
épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro passado justificasse os erros presentes.
A
repulsa dos que sabem o valor do trabalho árduo se transformou em
indiferença e desdém, como acontece quando, por vergonha, alguém desiste
de torcer pelo time do coração e resolve ignorar essa parte do
cotidiano. É a tática do avestruz: enterrar a cabeça para
deixar o vendaval passar. E seguimos como se nada estivesse acontecendo.
Perplexos, percebemos, na simples comparação entre o discurso oficial e
as notícias jornalísticas, que o Brasil se tornou um país do faz de
conta. Faz de conta que não se produziu o maior dos escândalos
nacionais, que os culpados nada sabiam – o que lhes daria uma carta de
alforria prévia para continuar agindo como se nada de mal houvessem
feito. Faz de conta que não foram usadas as mais descaradas falcatruas
para desviar milhões de reais, num prejuízo irreversível em país de
tantos miseráveis. Faz de conta que tais tipos de abusos não continuam
se reproduzindo à plena luz, num desafio cínico à supremacia da lei,
cuja observação é tão necessária em momentos conturbados.
Se,
por um lado, tal conduta preocupa, porquanto é de analfabetos políticos
que se alimentam os autoritarismos, de outro surge insofismável a
solidez das instituições nacionais. O Brasil, de forma
definitiva e consistente, decidiu pelo Estado Democrático de Direito.
Não paira dúvida sobre a permanência do regime democrático. Inexiste,
em horizonte próximo ou remoto, a possibilidade de retrocesso ou
desordem institucional. De maneira adulta, confrontamo-nos com uma crise
ética sem precedentes e dela haveremos de sair melhores e mais fortes.
Em Medicina, “crise” traduz o momento que define a evolução da doença
para a cura ou para a morte. Que saiamos dessa com invencíveis
anticorpos contra a corrupção, principalmente a dos valores morais, sem a
qual nenhuma outra subsiste.
Nesse
processo de convalescença e cicatrização, é inescusável apontar o papel
do Judiciário, que não pode se furtar de assumir a parcela de
responsabilidade nessa avalancha de delitos que sacode o País. Quem
ousará discordar que a crença na impunidade é que fermenta o ímpeto
transgressor, a ostensiva arrogância na hora de burlar todos os
ordenamentos, inclusive os legais? Quem negará que a já lendária
morosidade processual acentua a ganância daqueles que consideram não ter
a lei braços para alcançar os autoproclamados donos do poder? Quem
sobriamente apostará na punição exemplar dos responsáveis pela sordidez
que enlameou gabinetes privados e administrativos, transformando-os em
balcões de tenebrosas negociações?
Essa pecha
de lentidão — que se transmuda em ineficiência — recai sobre o
Judiciário injustamente, já que não lhe cabe outro procedimento senão
fazer cumprir a lei, essa mesma lei que por vezes o engessa e
desmoraliza, recusando-lhe os meios de proclamar a Justiça com
efetividade, com o poder de persuasão devido. Pois bem, se
aqueles que deveriam buscar o aperfeiçoamento dos mecanismos preferem
ocultar-se por trás de negociatas, que o façam sem a falsa proteção do
mandato. A República não suporta mais tanto desvio de conduta.
(…)
Àqueles que continuam zombando diante de tão simples
obviedades, é bom lembrar que não são poucos os homens públicos
brasileiros sérios, cuja honra não se afasta com o tilintar de moedas,
com promessas de poder ou mesmo com retaliações, e que a imensa
maioria dos servidores públicos abomina a falta de princípios dos
inescrupulosos que pretendem vergar o Estado ao peso de ideologias
espúrias, de mirabolantes projetos de poder. Aos que laboram em
tamanhas tolices, nunca é demais frisar que se a ordem jurídica não
aceita o desconhecimento da lei como escusa até do mais humilde dos
cidadãos, muito menos há de admitir a desinformação dos fatos pelos
agentes públicos, a brandirem a ignorância dos acontecimentos como tábua
de salvação.
(…)
No que depender desta Presidência, o
Judiciário compromete-se com redobrado desvelo na aplicação da lei. Não
haverá contemporizações a pretexto de eventuais lacunas da lei, até
porque, se omissa a legislação, cumpre ao magistrado interpretá-la à luz
dos princípios do Direito, dos institutos de hermenêutica, atendendo
aos anseios dos cidadãos, aos anseios da coletividade. Que
ninguém se engane: não ocorrerá tergiversação capaz de turbar o real
objetivo da lei, nem artifício conducente a legitimar a aparente vontade
das urnas, se o pleito mostrar-se eivado de irregularidades. Esqueçam,
por exemplo, a aprovação de contas com as famosas ressalvas. Passem ao
largo das chicanas, dos jeitinhos, dos ardis possibilitados pelas
entrelinhas dos diplomas legais. Repito: no que depender desta Cadeira,
não haverá condescendência de qualquer ordem. Nenhum fim
legitimará o meio condenável. A lei será aplicada com a maior
austeridade possível – como, de resto, é o que deve ser. Bem se vê que
os anticorpos de que já falei começam a produzir os efeitos almejados.
Esta é a vontade esmagadora dos brasileiros.
No
mais, é aguçar os sentidos, a coragem, é aumentar a dedicação, acurar a
inteligência e desdobrar as horas e as forças, no intuito único de
servir à aspiração geral por um pleito limpo, civilizado e justo. É o
que o Brasil merece e espera. É o que solenemente prometo ao assumir
esta Presidência.
Muito obrigado.
Voltei
Tudo foi dito ali, nas barbas do presidente em exercício — e
acho que Marco Aurélio teria dito a mesma coisa ainda que presente o
titular — e do então ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos. Marco
Aurélio tem clareza de que o escândalo apelidado de mensalão era a
expressão do “segmento da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura (…)”
O ministro
lamenta a banalização da corrupção e se refere explicitamente à
denúncia formulada pelo então procuragor-geral da República: “Tornou-se
quase banal a notícia de indiciamento de autoridades dos diversos
escalões não só por um crime, mas por vários, incluindo o de formação de
quadrilha, como por último consignado em denúncia do Procurador-Geral
da República, Doutor Antônio Fernando Barros e Silva de Souza”. E tem consciência do papel que está reservado ao Poder Judiciário: “Nesse
processo de convalescença e cicatrização, é inescusável apontar o papel
do Judiciário, que não pode se furtar de assumir a parcela de
responsabilidade nessa avalancha de delitos que sacode o País.”
Convicções
Ao Marco Aurélio que pensa e age assim, o meu reconhecimento.
Não quero aqui tomar o que vai acima como antecipação do seu voto, mas
me parece que o ministro com as convicções de 2006 iluminará o ministro
que vai votar em 2012. Afinal, sabe que os brasileiros abominam
“a falta de princípios dos inescrupulosos que pretendem vergar o Estado
ao peso de ideologias espúrias, de mirabolantes projetos de poder”.
O que eu
espero de Marco Aurélio — porque ele tem história que me autoriza a ter
esta esperança — é a consideração de que o eventual uso do dinheiro do
mensalão para cuidar de eleições (passadas ou, então, futuras) é um
elemento que agrava a situação dos réus, não uma porta de saída para a
impunidade. A ser assim, ao peculato, à lavagem de dinheiro, à corrupção
ativa, à corrupção passiva, à formação de quadrilha, a isso tudo,
juntou-se a descarada tentativa de fraudar o próprio processo
democrático. Aqueles crimes foram instrumentos de um crime de lesa
democracia.
Prefiro acreditar que o ministro de 2006 está presente no ministro de 2012, com os mesmos valores.