MÉRITO
— Joaquim Barbosa chegou ao topo de uma bem-sucedida carreira jurídica
sem precisar percorrer os conhecidos atalhos, lançar mão dos
tradicionais jeitinhos ou recorrer a padrinhos influentes (Foto: Sergio
Dutti)
O BRASIL PRECISA DE EXEMPLOS
O legado do ministro Joaquim Barbosa transcende a prisão
de um bando de corruptos poderosos. Ele mostrou que é possível fazer a
coisa certa sem precisar transigir ou flertar com o que existe de errado
Texto de Daniel Pereira, com reportagem de Robson Bonin e Hugo Marques, publicado em edição impressa de VEJA
O mineiro Joaquim Barbosa sempre acreditou no esforço pessoal. Filho
de um pedreiro e uma dona de casa, estudou em escola pública, formou-se
numa universidade federal e assumiu importantes cargos depois de ser
aprovado em concurso. À carreira no Ministério Público, acrescentou uma
sólida história acadêmica, com passagens, como estudante e professor,
por renomadas instituições de ensino do Brasil e do exterior.
Barbosa construiu sua trajetória sem a ajuda de padrinhos influentes e
sem pedir favores. Numa sociedade acostumada a atalhos duvidosos e ao
jeitinho, preferiu o árduo caminho da meritocracia. Essa biografia
chamou a atenção do presidente Lula. Em 2003, ele indicou Barbosa para o
cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
O objetivo de Lula era nomear pela primeira vez um negro para a mais
alta corte do Judiciário e, assim, tirar do papel a agenda de políticas
afirmativas do governo. O que Lula não sabia é que a escolha renderia
frutos bem maiores. Ele escalara o homem certo, na hora certa, para
desferir o mais duro golpe contra a corrupção na história recente do
país. Sorte dos brasileiros de bem, azar do PT.
Em 2012 e 2013, durante mais de sessenta sessões plenárias, Barbosa
comandou o julgamento do mensalão, como relator do processo e, depois,
também como presidente do STF. O resultado criminal é conhecido: o
Supremo concluiu que o PT subornou parlamentares para se perpetuar no
poder, durante o primeiro mandato de Lula, e condenou a antiga cúpula do
partido à prisão.
O
resultado simbólico também é conhecido: a Justiça finalmente se fez
valer para todos, sem distinção, o que foi considerado um divisor de
águas na luta contra a impunidade que há séculos privilegia os poderosos
no Brasil. Anunciadas as penas e decretadas as prisões, Barbosa se
tornou uma espécie de herói nacional, o cavaleiro vingador da capa
preta, aplaudido nas ruas e assediado para disputar as eleições.
Mas esse era apenas um dos lados da moeda. A outra face, menos
evidente, levou o ministro a anunciar, na quinta-feira, que deixará o
Supremo em junho, onze anos antes do prazo fixado para sua aposentadoria
compulsória. “Minha missão está cumprida”, disse Barbosa.
Em fevereiro, VEJA revelou que o ministro cogitava antecipar a
aposentadoria. Essa possibilidade ganhou força depois de o plenário
derrubar a condenação por formação de quadrilha imposta aos mensaleiros.
Barbosa, que se acostumara a formar a maioria, acabou derrotado na
votação.
Ele suspeitava que dali para a frente, devido à nova composição do
tribunal, tenderia a ser sempre derrotado nos embates criminais mais
polêmicos. “Essa é uma tarde triste para o Supremo. Com argumentos
pífios, foi reformada, jogada por terra, extirpada do mundo jurídico,
uma decisão plenária sólida e extremamente bem fundamentada”, lamentou o
ministro.
O
PODER NA PRISÃO — Apesar das pressões e ameaças, inclusive de morte,
Barbosa foi implacável com os mensaleiros. José Dirceu foi condenado a
sete anos e onze meses e José Genoino a quatro anos e oito meses de
cadeia por crime de corrupção (Fotos: Ailton de Freitas/Agência O Globo
:: Marlene Bergamo/Folhapress)
A reação estava diretamente relacionada às dificuldades presentes no
caso. Lula e o PT jogaram pesado para adiar o início do julgamento, numa
tentativa de facilitar a prescrição de certos crimes. Também procuraram
ministros para convencê-los a reduzir as penas da companheirada e
suavizar o enredo criminoso.
Quando o julgamento finalmente começou, Barbosa teve de comprar uma
série de brigas para tirar o tribunal de uma espécie de zona de
conforto. Uma zona de conforto que, registre-se, sempre contribuiu para
dificultar a condenação de políticos, empresários e banqueiros.
Barbosa bateu de frente com os próprios colegas para garantir e
acelerar as votações. Chegou a agredi-los verbalmente, acusá-los de
cumplicidade com chicanas e acabou isolado dentro do tribunal. Pagou um
custo pessoal que, segundo seus assessores, foi compensado pelo
benefício proporcionado à sociedade.
O ministro também partiu para um duelo aberto com os maiores
criminalistas do país. Recusou-se a recebê-los para conversas
informais. Parece irrelevante, mas não é. Não são poucos os magistrados
que fazem questão de agradar aos grandes nomes da advocacia nacional,
mesmo que por meio de pequenos gestos.
De origem humilde, Barbosa teve coragem de romper com esses “rapapés
aristocráticos”, conforme expressão lapidar cunhada pelo antropólogo
Roberto DaMatta. O custo pessoal, novamente, não foi pequeno.
“As grandes marcas dele, infelizmente, são a truculência no trato e a
intolerância com os pontos de vista que não convergiam com os dele”,
afirma Alberto Toron, advogado do petista João Paulo Cunha, o
ex-presidente da Câmara encarcerado na Papuda. Barbosa, de fato, nem
sempre lida bem com a divergência.
Muitas vezes, mostrou-se iracundo e autoritário. Certa vez, mandou um
jornalista “chafurdar na lama” porque ele ousou lhe fazer uma pergunta.
Para o ministro aposentado do STF Carlos Velloso, Barbosa pecou na
forma, mas, no caso do mensalão, acertou em cheio no conteúdo. “As
instituições valem por si, mas a grandeza depende das pessoas que fazem
funcionar as instituições.
Barbosa conduziu com firmeza um julgamento exemplar de um processo
tormentoso, com muitos réus, e não eram réus quaisquer”, diz Velloso. Se
não tivesse coragem de enfrentar tantas trincheiras, talvez o STF
estivesse até hoje às voltas com requerimentos, petições, questões de
ordem…
Depois do mensalão, Barbosa definiu duas prioridades. Uma delas era
participar do julgamento sobre as perdas decorrentes dos planos
econômicos. Trata-se de um processo bilionário que opõe correntistas a
instituições financeiras. No STF, especulava-se que o ministro, após
mandar políticos e empresários para a cadeia, votaria contra os bancos.
Com a análise desse caso econômico adiada novamente, Barbosa decidiu
antecipar a aposentadoria. A outra prioridade era garantir a eficácia
das penas aplicadas aos mensaleiros.
Barbosa se insurgiu contra os privilégios concedidos a eles na
cadeia. Recentemente, suspendeu a autorização de trabalho externo. Com
base num laudo médico, revogou a prisão domiciliar de José Genoino. O
ex-ministro José Dirceu nunca recebeu aval para trabalhar fora do
presídio.
Os advogados dos mensaleiros recorreram dessas decisões ao plenário
do STF. Não está certo se o julgamento do recurso ocorrerá antes ou
depois da aposentadoria de Barbosa.
Se a saída tiver acontecido, será sorteado um novo relator, e a
presidência já estará sob a responsabilidade de Ricardo Lewandowski.
Afilhado político da ex-primeira-dama Marisa Letícia, Lewandowski é
lhano no trato, tem boas relações com os colegas e os advogados e
defendeu a absolvição de Dirceu e Genoino no processo. Especialista nos
“rapapés aristocráticos”, ele é a antítese de Barbosa.
O PT não vê a hora de seu algoz sair de cena. De certa forma, também
se cansou da briga. “A postura dele não foi de um estadista do Poder
Judiciário. Constatamos uma postura carregada de ódio que não caberia a
um juiz”, disse o deputado Vicentinho, líder do PT na Câmara, ao
comentar a aposentadoria.
SUCESSOR
— Ricardo Lewandowski, um crítico ferrenho de Joaquim Barbosa, vai
assumir a presidência (Foto: Fellipe Sampaio/Supremo Tribunal Federal)
Essa declaração é legítima e faz parte do jogo democrático. Pena que o
PT não pare por aí. Militantes do partido na internet, como VEJA
mostrou, chegaram a ameaçar Barbosa de morte. “Contra Joaquim Barbosa
toda violência é permitida, porque não se trata de um ser humano, mas de
um monstro e de uma aberração moral das mais pavorosas. Joaquim Barbosa
deve ser morto”, escreveu um deles.
Extenuado, o ministro quer se afastar da artilharia petista e, mais
importante, virar a página do mensalão. Para ele, o assunto está
encerrado, pacificado.
Não é à toa. Sob sua batuta, o Supremo deu aos brasileiros uma lição
de moralidade e intransigência com as roubalheiras. Uma lição que até
desafetos, como o ministro Marco Aurélio, fizeram questão de ressaltar:
“O Supremo, como colegiado, acabou por reafirmar que a lei é lei para
todos indistintamente e que não se agradece a esse ou aquele ato a
partir da ocupação da cadeira no Supremo”.
Barbosa não agradeceu a Lula, o que permitiu ao país dar um passo
importante em sua escalada civilizatória. Eis aí um grande legado.
A meritocracia do esforço
Muito pobre na infância, Joaquim Barbosa estudou, trabalhou, foi
aprovado em concurso público e chegou à mais alta corte de Justiça do
país sem precisar de amigos influentes, favores ou uma mãozinha de
políticos
1. Nascido em uma família humilde de Paracatu (MG), Joaquim Barbosa
teve de trabalhar desde cedo para sustentar a casa. Filho de um pedreiro
e uma dona de casa, ajudava o pai a fabricar tijolos e a entregar lenha
2. Aos 16 anos, Barbosa foi sozinho para Brasília, arrumou emprego em
uma gráfica, e terminou o ensino médio, sempre estudando em colégio
público
Em
1976, com a beca de formado em Direito, já oficial de chancelaria do
Ministério das Relações Exteriores (Foto: Reprodução/VEJA)
3. Aos 22 anos, tornou-se oficial de chancelaria do Ministério das
Relações Exteriores. Depois acabou reprovado num concurso para
diplomatas devido, diz ele, a preconceito racial
4. Formado em direito, foi aprovado no concurso para procurador da
República. Fez doutorado na Sorbonne, em Paris, foi professor visitante
na Universidade Colúmbia, em Nova York, e na Universidade da Califórnia
Barbosa foi aprovado em concurso para procurador da República, cargo que exerceu entre 1984 e 2003 (Foto: Reprodução/VEJA)
5. Em 2003, Joaquim Barbosa estava nos Estados Unidos quando foi convidado pelo ex-presidente Lula a assumir a vaga no STF
DO RICARDO SETTI-REV VEJA