Lista na eleição evita que cidadão puna políticos e autoanistia os deixa livres para cometer crimes
28 mar 2017, 09h19
Ninguém ouviu, mas ao longo de todo o domingo passado um grande suspiro de alívio percorreu o Brasil do Oiapoque ao Chuí, com uma parada significativa em Brasília, capital federal. Todos os políticos com algum mandato no Legislativo ou no Executivo, federal, estadual ou municipal, comemoraram secretamente, sem ousar sequer aparentar felicidade nem na intimidade da alcova, à hora de se recolher ao tálamo, a outonal ausência da cidadania nas ruas mais importantes das maiores cidades brasileiras. Para evitar os mais descarados golpes da História desde a Independência ─ a manutenção da prerrogativa de foro, a autoanistia no uso de caixa 2 e, acima de tudo e de todos, a lista fechada dos candidatos nas eleições – o povo não se mobilizou, como o fizera antes para protestar contra o Brasil oficial em 2013 e pelo impeachment de Dilma em 2015 e 2016.
Em 2013, assim que o povo voltou pra casa e os black blocs pararam de depredar o patrimônio alheio, público ou privado, Dilma Rousseff anunciou as decisões com que fingiu atender ao clamor das ruas roucas: Assembleia Constituinte exclusiva para a reforma política e financiamento público de campanhas eleitorais. Nunca a estupidez pessoal de um ser humano (o que ela pelo menos aparenta ser) desserviu a tantos semelhantes de uma vez só. Em 2016 o Congresso Nacional a depôs por outros crimes, fingindo atender ao mesmo clamor. Mentira! Os congressistas depuseram a “presidenta” porque não suportavam o desprezo e a indiferença com que ela os maltratava, usando o poder para humilhá-los, mesmo ao custo de perdê-lo. Isso ficou claro quando foi revelada a senha do movimento tido como golpista pelos depostos com ela: “Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria”. A sentença consagrou o autor como o frasista preferencial de todos os governos, Romero Jucá, pernambucano, senador por Roraima, militante do PMDB e serviçal de todos os presidentes – de Fernando Henrique, do PSDB, a Lula e Dilma, do PT.
O ilustre prócer, atualmente na presidência do maior partido do País, o PMDB, posseiro dos maiores postos do Legislativo e do Executivo da República, o nominado Caju da lista de propinas da Odebrecht, também não teve pejo de reclamar quando tentaram limitar o foro privilegiado. Definiu o privilégio como “suruba seletiva” e exigiu que dela todos participassem. Todos os políticos, os mandatários, os poderosos do regime, naturalmente. Como a anistia reclamada pela oposição para avalizar a abertura democrática da ditadura de Geisel e Figueiredo: “ampla, geral e irrestrita”. A metáfora indecorosa da República indecente, contudo, nunca será mais pornográfica do que a prática republicana da venda por facilidades financeiras para ultrapassar as dificuldades do decoro político.
As extraordinárias circunstâncias que permitiram, primeiro, a Ação Penal 470, vulgo mensalão, e, depois, a Operação Lava Jato, dita petrolão, terminaram por quebrar um ancestral paradigma do Brasil dos coronéis e dos titãs populistas, aquele segundo o qual só iam para a cadeia pretos, pobres e prostitutas. Frequentam os cárceres da “república de Curitiba” vários dos mais ricos empreiteiros pátrios, inclusive o maioral de todos, Marcelo Odebrecht, e alguns “heróis do povo brasileiro”, que assaltaram bancos para financiar a guerrilha e, depois, saquearam o Estado inteiro, sem exceção de cofre, por poder, fortuna e conforto. No entanto, ainda não foi quebrada a barreira estabelecida por Artur Bernardes na Primeira República: “aos amigos, tudo; aos inimigos, o rigor da lei”. Com uma adaptação: “aos mandatários, tudo; aos sem-mandato, a lei mais rigorosa”. Preso, Marcelo Odebrecht contou que comprou Lula e Dilma e deles obteve tudo o que precisava para prosperar mais do que os outros, aceitando, é claro, a companhia do cartel. Mas, pelo menos até agora, nenhum detentor de mandato de poder republicano paga por seus delitos. A exceção à regra é, claro, Eduardo Cunha, que ousou cuspir na cruz.
No impeachment de Dilma Rousseff, o verdadeiro golpe foi dado, cinicamente, por Renan Calheiros e Ricardo Lewandowski: o fatiamento do artigo constitucional que a privaria de direitos políticos para que pudesse ser merendeira de escola. O que, aliás, representaria grave risco para a saúde da infância e da juventude do Brasil. Depois do “só se for a pau, Juvenal”, miríades de golpes se sucederam contra a Carta que, de tão vilipendiada, pode ser chamada de minima minimorum, em vez de Máxima. Foi o caso da permissão para Renan Calheiros delinquir presidindo o Senado desde que saísse da “linha sucessória”, que, aliás, nem existe, pois não há sucessor definido do vice que assumiu a Presidência. Quem quer que o substitua terá de convocar eleição indireta para ocupar o lugar. E também foi permitido ao vassalo Rodrigo Maia reeleger-se presidente da Câmara no meio da legislatura. Mais um escárnio na conta!
Tudo, porém, é café pequeno para o que se anuncia nesta algaravia de todo dia. Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), já deu a deixa para a cassação da chapa Dilma-Temer sem criar atropelos à gestão federal. Cassa-se a chapa, decreta-se a inelegibilidade da titular e permite-se ao reserva que fique em campo. Ou seja, autorizar-se-lo-á (mesóclise dupla em homenagem a sua volúpia pelo fracionamento de verbos) a disputar (e vencer) a indireta para suceder-se a si mesmo no Congresso Nacional, que tantas alegrias lhe tem propiciado.
Isso ainda é lana caprina comparado ao que os parlamentares se reservam em matéria de prêmio de consolação por terem sido delatados. Conseguiram beneplácito dos “datas vênias” da STF (Suprema Tolerância Federal) para desprezar a igualdade de todos perante a lei e decretar que caixa 2 é crime para empresários, mas não para políticos.
Ressuscitaram o projeto de Dilma do financiamento público de campanhas eleitorais para mantê-las com seus custos proibitivos, o que, definitivamente, não é uma tradição da República, por mais insana que ela já tenha sido antes. E, para completar, escolheram dois capitães do mato do Conselheiro de Caetés para levantar muros da vergonha no “parlamanto”. Wadih Damous (PT-RJ), jurisconsulto particular do ex-deus, batalha para excluir os presos da possibilidade de serem premiados ao delatar, desfigurando norma legal adotada pelo Brasil oficial no rastro do resto do mundo. E Vicente Cândido (PT-SP), relator da tal “reforma política”, apareceu com a teoria de que lista fechada de candidatos a cargos no Legislativo em eleições proporcionais (não distritais) é usada em “80%” (o cálculo é dele) dos países democráticos do mundo.
Lembro-me bem – se me lembro! de ter acompanhado eleições com listas em que os maiorais da elite política compunham o congresso do país a seu bel prazer e proveito. O social-democrata AD de Rómulo Gallegos dividia o butim com a democracia cristã da Copei de Rafael Caldera. O pobre povo amontoado nas favelas de Caracas a caminho do aeroporto de Maiquetia pisou na balança e dessa divisão subiram Hugo Chávez e seu sucessor Nicolás Maduro. A lista fechada foi a ditadura da elite política a caminho da tirania metida a socialista dos bolivarianos da Venezuela.
Ainda assim, o Brasil real, escorchado, talvez desiludido com os resultados pífios e o cinismo crescente do País oficial, ainda caçando cofres para limpar, desistiu de ir às ruas para reclamar. E deixou aparecerem no asfalto vazio os nostálgicos da ditadura militar, de direita. Daí,foi ensurdecedor o silêncio monstruoso das cidades sem povo do Brasil afundado no pântano da miséria, da corrupção e da maior crise econômica da História. Talvez nos reste dançar o tango argentino, como no poema Pneumotórax, de Manuel Bandeira, ou rezar um ato de contrição, como a mãe deste escriba o aconselhava quando, na infância, não conciliava o sono. Contra todos esses golpes em marcha, nem se o bispo de Barra, na Bahia, benzesse toda a água do São Francisco se operaria o milagre da nossa redenção.
O jurista Modesto Carvalhosa, especialista em legislação contra a corrupção, recomenda uma Constituinte independente para mudar tudo na política, performance bonds (adotados nos EUA desde 1894) para tirar o poder de empreiteiros corromperem políticos e burocratas, e uma lista negra de políticos safados para não sufragar na próxima eleição. Minha lista pessoal contém todos os mandatários dos Poderes Executivo e Legislativo, acrescentada de uma devassa impiedosa para reformar todas as instâncias do Judiciário.
O resto são panos quentes para confortar moribundo.
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