Os meios de comunicação, no Brasil e numa porção de países do
Primeiro Mundo, muito civilizados, prósperos e democráticos, estão com
uma doença que pelo jeito não tem cura. Publicam notícias, comentários e
“conteúdo” segundo uma tábua de mandamentos que não deixa nenhuma
dúvida sobre o que está certo e o que está errado, o que é bom e o que é
ruim, o que é permitido e o que deveria ser proibido – só que não
combinam com o público se ele próprio, o público, está de acordo com
isso tudo. Os comunicadores estão cada vez mais convencidos de que a sua
maneira de ver o mundo é a melhor, não apenas para o mundo, mas para
leitores, espectadores e ouvintes; não parecem ter nenhuma dúvida a
respeito.
O
resultado é que estão sendo cada vez menos representativos do público
que imaginam representar. Dão informações que esse público não está
interessado em receber e opiniões que não está disposto a compartilhar.
Ensinam coisas que ele não quer aprender. Falam de valores que não são
os seus – ou não necessariamente os seus. Torcem por causas que não são
obrigatoriamente as suas. Elogiam uma série de comportamentos, condenam
outros tantos, e em ambos os casos deixam uma advertência clara: é assim
que nós, órgãos de comunicação, esperamos que vocês, público, se
comportem. Só existem duas maneiras de avaliar as coisas neste mundo.
Uma é a maneira errada. A outra é a nossa. Qual é a surpresa, então, em
que a mídia esteja com tantos problemas?
Não é preciso, para ver o tamanho do problema, recorrer a casos
extremos como a eleição de Donald Trump para a Presidência dos Estados
Unidos. Depois de atacar a sua candidatura como o pior momento da
humanidade desde a vinda da peste negra, a imprensa americana e a
internacional têm certeza, agora, de que sua vitória nos levará de volta
à Idade da Pedra. Deveria estar mais do que óbvio, se fosse assim
mesmo, que só um débil mental votaria nesse homem. Mas é claro que não
foi isso que aconteceu, como é claro que ninguém está em pânico só
porque a imprensa diz que todo mundo deveria estar em pânico.
No Brasil de hoje, então, o descolamento entre meios de comunicação e
público parece caminhar para o modo mais extremo. O que dizer quando
nas últimas eleições para prefeito os vencedores nas duas maiores
cidades do Brasil foram justo os dois candidatos mais detestados pela
mídia? Estão operando lado a lado, aí, duas linguagens opostas – a dos
jornalistas e a de dezenas de milhões de cidadãos comuns.
Os exemplos se aplicam a um mundo de coisas. Os comunicadores, em sua
maioria, são a favor da ocupação de escolas por grupos de organizações
de estudantes, ou a veem com compreensão quase ilimitada; fazem um voto
de confiança sem restrições no idealismo dos jovens e sua vontade de
reformar o nosso ensino. São a favor da ocupação dos espaços públicos
por marginais de todo tipo – acham que seu direito é maior que o direito
do restante da população de utilizar em paz o mesmo espaço. São a favor
de praticamente todo tipo de invasão (que chamam de “ocupação”), de
lugar público ou privado; são contra a liberação desses locais pela
polícia, mesmo com ordem judicial, e sua devolução aos legítimos donos;
estão convencidos de que a polícia, sem exceção, age “com brutalidade”.
Há um critério rigoroso na escolha das palavras. A imprensa fala
sempre em “manifestantes”, “militantes”, “estudantes”, “desabrigados” e
até em “camponeses” – nunca, em nenhum caso, são “invasores”. Não fala
mais “favela”, palavra hoje condenada como preconceituosa, elitizante e
fascista; tem de ser “comunidade”. A imprensa brasileira continua
falando do golpe militar de 1964 como se fosse algo que aconteceu ontem,
e alerta para os “perigos” de se voltar, a qualquer momento, à mesma
situação; esquece que só tinham chegado à maioridade, em 1964, pessoas
que têm hoje pelo menos 70 anos de idade.
Nossa mídia dá a entender, cada vez mais, que ter um automóvel é uma
falha moral – e que o importante, hoje, não é a propriedade, e sim o uso
do veículo. Jamais lhe ocorre que para milhões de brasileiros o carro é
um instrumento de liberdade, e sua propriedade um sonho individual
importante. Ao contrário da imprensa, a população não acha que o
problema do Brasil é ter gente de mais na cadeia; acha que é ter gente
de menos. Não acha que o principal problema da segurança pública seja a
polícia – acha que são os bandidos. Não acha que a fé evangélica seja
uma ameaça.
Dá para escrever um “Manual de Redação” inteirinho com essas regras. Só que não são as regras do público. DO A.NUNES
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