'Defesa vê caixa 2 como conduta corriqueira', diz Eliana Calmon
Ministra critica tese de advogados no mensalão e diz que escândalo 'soa como corrupção'
Felipe Recondo e Fausto Macedo - Folha de Brasília
BRASÍLIA - A poucos metros do
plenário do Supremo Tribunal Federal, a corregedora Nacional de Justiça,
Eliana Calmon, acompanha o julgamento do mensalão e revela sua
expectativa. "É uma grande oportunidade de estabelecermos alguns
valores, morais, éticos, políticos, por isso o julgamento do mensalão é
tão importante", disse. Para ela, a defesa dos réus trata a tese do
caixa 2 como "se fosse conduta corriqueira, socialmente consentida".
Eliana Calmon diz que não conhece as provas dos autos, mas para ela o
escândalo "soa como corrupção". Sobre o comportamento dos 11 ministros
no julgamento que o País acompanha desde o dia 2, ela prefere não
opinar. Mas perguntada sobre José Antonio Dias Toffoli, ex-assessor do
PT, a corregedora salienta que "o assunto está na pauta do dia porque o
povo anotou".
Na última quarta-feira, a ministra
recebeu o Estado em seu gabinete no Anexo I da sede do STF, uma sala
cujas janelas se voltam para os fundos do Supremo. A ministra se prepara
para deixar o cargo de xerife do Judiciário em setembro. Depois de ver a
Justiça por dentro, ela se diz "assustada" com o que constatou –
desvios e desmandos, corrupção, enriquecimentos pessoais e contracheques
milionários. Na entrevista, afirma ainda que depois de denunciar a
existência de "bandidos de toga", sofreu resistência do então presidente
do STF, Cezar Peluso: "Ele tentou me inviabilizar".
Estado: Não é hora de o Supremo Tribunal Federal dar um basta na cultura do dinheiro sujo na política?
Eliana
Calmon: E quem sabe o Supremo não vai dar? É uma grande oportunidade de
estabelecermos alguns valores, um julgamento importantíssimo. Valores
morais, valores éticos, políticos, não é? Valores de conduta de
cidadania.
Estado: A defesa dos réus do mensalão quer cravar que tudo não passou de caixa 2 de campanha eleitoral. A tese vai vingar?
Eliana
Calmon: Como se fosse conduta corriqueira, socialmente consentida. Não
conheço as provas dos autos, mas para mim o mensalão soa como corrupção
(e não caixa 2). Eu me impressionei pelas imagens (a cena da entrega do
dinheiro nos Correios), até hoje me choca. Não posso ignorar que este é
um país de caixa 2. Isso é relativizado na hora que se vai examinar os
fatos.
Estado: O Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) puniu juízes que agiram parcialmente por causa
de relações com as partes. No julgamento do mensalão discutiu-se sobre a
suspeição do ministro Dias Toffoli. O exemplo não deve vir de cima?
Eliana
Calmon: Isso está na pauta do dia. Não vou qualificar, por uma questão
de hierarquia, questão disciplinar. Mas o assunto está na pauta do dia
porque o povo anotou.
Estado: O modelo de financiamento de campanha deve ser alterado?
Eliana
Calmon: Ninguém ignora que nós precisamos fazer uma reforma política
porque o financiamento de campanha neste país é uma vergonha. Nós,
magistrados, ignoramos isso? Não. Se é um problema generalizado, é um
problema que conta com a conivência de todos, de toda a Nação, tanto que
até hoje não se tomou nenhuma providência.
Estado: O STF vai ser julgado pela sociedade no julgamento do mensalão?
Eliana
Calmon: O STF está com muito cuidado neste julgamento do mensalão
porque a Nação está olhando. Será um julgamento bastante técnico.
Estamos no ápice da manifestação democrática do País. Alguns magistrados
ainda não se aperceberam de que nós podemos ser julgados. É assim que
acontece em qualquer democracia. A sociedade julga os serviços prestados
por qualquer servidor público, e ministro é servidor público. Eu sou
servidora pública. O STF está numa posição difícil, tem de prestar
satisfação para os jurisdicionados. Ele tem um problema político por
resolver, porque há realmente interesses políticos que estão em jogo. A
Nação toda está mobilizada, com os olhos voltados para o Supremo. E a
saída do Supremo é julgar tecnicamente.
Estado: Como foi a convivência com Peluso?
Eliana
Calmon: Foi socialmente boa, só que ele é uma pessoa difícil. Eu
insistia muito para ter um diálogo, mas sempre encontrei pouca
receptividade. Despachávamos normalmente, uma vez por semana, mas de uma
forma bastante seca, rápida. Essa convivência não me deixava à vontade,
eu não me sentia fazendo parte de uma equipe. Comecei a sentir uma
corregedoria separada da gestão do CNJ e isso me incomodava bastante. Eu
fui me encolhendo dentro desse universo CNJ para ser possível, então,
fazer uma administração à margem. A Corregedoria era ignorada.
Estado: Quando a sra. apontou "bandidos de toga" tentaram afastá-la?
Eliana
Calmon: Naquele momento, meu entendimento foi de que o ministro Peluso
quis publicizar uma insatisfação que já era dele. Se essa insatisfação
fosse generalizada, naturalmente eu ficaria absolutamente impedida de
continuar como corregedora. Ele pessoalmente ligou para os tribunais e
pediu que tomassem a mesma medida. Ele queria que os tribunais se
reunissem para examinar a nota de repúdio e divulgar. Eu sei disso
porque no STJ, o presidente à época disse: 'O ministro Peluso telefonou e
pediu para eu reunir o plenário para aderir à nota de repúdio'. Isso
também foi feito no Tribunal Superior do Trabalho, que emitiu nota
assinada por todos os ministros, com exceção do ministro Ives Gandra.
Estado: Qual era a intenção?
Eliana
Calmon: Interromper a minha atividade. Se eu estou inviabilizada com a
magistratura, eu não posso continuar corregedora, fico desmoralizada. A
hora que eu chegar num tribunal eu estou inviabilizada, ninguém acredita
numa pessoa que a magistratura repudiou, uma pessoa que quer o mal da
magistratura. Essa foi a ideia. Superei porque tinha consciência de que
não pertencia àquilo que diziam. O que estava na nota não era minha
intenção, eu estava certa do que estava fazendo. Veio um apoio
generalizado, como se a nota fosse um estopim. Recebi apoio até de
ministros do STF, telefonemas, e-mails e este país explodiu de apoio. A
mídia foi o grande veículo, o Estado fez editorais. Aí nós marchamos.
Estado: Pensa em ingressar na política?
Eliana
Calmon: Eu só sou magistrada, não tenho aptidão para a política. Sou
uma pessoa que fala as coisas, não faço favores. Os meus amigos dizem
'Eliana não faz favores, não é amiga dos amigos'. Eu sou amiga, mas
dentro da minha atividade profissional eu não tenho amigo, não faço
favor porque é uma questão de princípio. No dia em que fizer um favor,
eu faço dez.
Estado: Em muitos Estados é
baixo o índice de condenações por improbidade e os salários dos
magistrados são altos. Faz alguma relação entre essas duas situações?
Eliana
Calmon: Faço. Este é um país preconceituoso, dominado por elites
econômicas e políticas que ainda têm peso grande nos tribunais. E é
dentro desse espírito elitista, patrimonialista, que nós temos
dificuldades de mudança de cultura. Ainda há magistrados que têm a
concepção de que isso é normal, para as elites tudo é permitido e
relativizam os atos de improbidade. É uma prática em alguns Estados.
Estabelecer salários altos para, dessa forma, ter a conivência da
magistratura. Temos de acabar com esse compadrio de tribunais com
governadores. Chefes do Executivo, às vezes, repassam verbas para altos
salários para terem o quê? A compreensão do Judiciário, a conivência.
Estado: No Tribunal de
Justiça (TJ) do Rio, onde as condenações por improbidade não superam dez
casos, salários oscilam entre R$ 100 mil e R$ 150 mil.
Eliana
Calmon: No Rio houve um complô de tal forma que hoje nós temos TJ,
Poder Legislativo e o Executivo todos coniventes com aqueles salários
altíssimos pagos aos desembargadores. Isso não pode ser a troco de nada,
porque o Rio padece de uma série de deficiências. E nós vamos encontrar
o quê? Uma absoluta inação do Poder Judiciário para com alguns
segmentos, algumas demandas. Querem ver o problema? Os grupos de
extermínio. Nós encontramos grupos de extermínio em processos no Ceará,
na Bahia, em Alagoas, esses Estados mostram que pelo menos são abertos
os processos. No Rio, não.
Estado: A Corregedoria investiga a evolução patrimonial de magistrados e a discrepância com salários?
Eliana
Calmon: Os processos estão para ser abertos. Eu ainda não sei como foi
que chegou esse dinheiro, se foi por venda de sentença. Os juízes vão
ter de explicar. Na sindicância alertamos (o magistrado): 'Seu
patrimônio está a descoberto, venha explicar o motivo de seu patrimônio
crescer se seus ganhos são insuficientes'. Eles não conseguiram
explicar. Vamos propor processos disciplinares. São de 7 a 10
magistrados. A concentração maior está em Mato Grosso do Sul. O CNJ tem
amedrontado um pouco, estabeleceu um freio. Mas não é suficiente.
Precisamos da atuação das Corregedorias locais. Eu estou assustada. Vejo
muita melhora, mas nós precisávamos ter muito mais energia para vencer.
A magistratura de primeiro grau é a mais saudável, mais idealista, tem
menos convivência com as elites, não se mistura. Os juízes do primeiro
grau precisam tomar as rédeas do Judiciário. Eu defendo eleição direta
na escolha (da cúpula dos tribunais), participação da primeira
instância.
DO GENTE DECENTE
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