segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Um desmentido, outras festas, lança-perfume e a droga da promiscuidade e da impunidade

Quando escrevi o post sobre o episódio Tóffoli-Noblat, não sabia que o próprio Eduardo Pertence, um dos filhos de Sepúlveda Pertence, havia entrado em contato com o jornalista para desdizer o que dissera em sua primeira mensagem. Escreveu Noblat no Twitter:
“Eduardo Pertence acaba de me telefonar. Pediu desculpas. Reconheceu q onde estava não dava p/ouvir o que Tóffoli disse ou não.”
É mesmo, é? Parece que esse rapaz muda de ideia com a ligeireza com que evoca o nome do pai. Lamentável! Em tempo: quando o ministro Dias Toffoli disparou a sua metralhadora cheia de mágoas contra o jornalista, estava em companhia de Kakay, um dos advogados do mensalão.
Algo me dizia aqui que essas personagens todas já haviam se reunido antes numa mesma notícia: Eduardo Pertence, Dias Toffoli, Kakay… E era verdade. Reli um post escrito aqui no dia 24 de setembro do ano passado. Ele remete a uma reportagem publicada na VEJA, de autoria de Daniel Pereira e Rodrigo Rangel, que reproduzo na íntegra. Vale a pena ler até o fim. É tudo espantoso!
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Dá-se como regra que em Brasília os assuntos mais candentes não são resolvidos nos gabinetes e nos plenários, mas em restaurantes, quartos de hotel e festas particulares. Na semana passada, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), a segunda mais alta corte do país, transformou em pó a mais extensa investigação já feita sobre a familia do presidente do Senado, José Sarney. Realizada entre 2007 e 2010, a operação mapeou os negócios do clã maranhense nas abas do poder público, f1agrou remessas milionárias para o exterior, além de dinheiro do contribuinte indo parar em contas de empresas controladas, segundo a polícia, por “laranjas” do primogênito do senador, o empresário Fernando Sarney. Transações quase sempre sustentadas por verbas de órgãos historicamente comandados por apadrinhados do superpoderoso parlamentar, como as estatais do setor elétrico. De tão complexo, o caso se desdobrou em cinco inquéritos. Três deles estavam prestes a se transformar em processos judiciais. Antes que isso acontecesse, porém, veio a decisão do STJ.
Uma das turmas do tribunal considerou que juízes de primeira instância não poderiam ter autorizado a quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico de Fernando Sarney e de outros investigados apenas com base em informações do Coaf, o órgão governamental encarregado de monitorar operações financeiras suspeitas. Foi uma transação de 2 milhões de reais, realizada no fim do ano eleitoral de 2006 e mapeada pelo Coaf, que serviu como ponto de partida para a investigação. Incumbidos da operação, Polícia Federal e Ministério Público discordam, obviamente, da decisão. Advogados criminalistas, claro, festejam. Independentememe de qual lado está com a razão, o fato é que o veredicto do STJ dá força à sensação de que os poderosos e aqueles que orbitam em seu redor nunca experimentam a força da lei no Brasil. É mais um elemento a confirmar a fama de paraíso da impunidade. Fama danosa ao país, mas que garante uma vida tranquila a figuras de proa da República às voltas com denúncias graves. Gente como os notórios Paulo Maluf, Luiz Estevão, Jader Barbalho e Renan Calheiros, beneficiados por um caldo cultural que tem como ingredientes a promiscuidade entre agentes públicos e empresários, a falta de apetite das instituições para punir certas castas e a letargia da população diante de malfeitos.
Para entender as razões que protegem políticos e corruptores do acerto de contas com a Justiça, é preciso retroceder ao descobrimento. Diz o professor e doutor em história Ronald Raminelli, da Universidade Federal Fluminense: “A impunidade é uma prática que veio para cá com os portugueses. Na Europa daquele período, os nobres e poderosos tinham privilégios e não eram submetidos às mesmas leis dos homens comuns. A diferença é que os europeus foram se livrando dessa tradição ao longo do tempo, mas aqui ela perdura até hoje”. Na gênese dessa prática está a necessidade de autopreservação da elite política – comportamento que se cristaliza, por exemplo, nas absolvições de parlamentares criminosos e na dificuldade do Congresso em aprovar leis saneadoras na seara ética. “Para os poderosos, até hoje fica a interpretação da lei da melhor maneira possível. Há uma rede de proteção em que as leis são sempre interpretadas de acordo com os interesses dos grupos dominantes”. prossegue Raminelli.
A Justiça é uma engrenagem indissociável desse processo. O problema começa na forma como são preenchidas as vagas nos tribunais superiores. Os ministros são escolhidos pelo presidente da República. Antes de assumirem, têm de ser sabatinados e aprovados pelo Senado. “O processo de escolha é uma verdadeira simbiose entre Legislativo. Executivo e Judiciário e foi levado a um ponto intragável, em que há sempre a perspectiva, por parte dos magistrados. de agradar aos políticos de plantão, que podem ajudá-los a galgar postos mais altos na Justiça”, afirma o procurador Alexandre Camanho, presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República. “Virou uma grande bancada de compadres, onde todos se protegem, se frequentam, e quem quiser ter vaga no STJ ou no STF tem de usufruir de proximidade e prestígio com os políticos.” Com mais de cinquenta anos de vida pública, ex-presidente da República e pela quarta vez no comando do Senado, ao qual cabe realizar as sabatinas, Sarney construiu uma rede de relações e de influência sem precedentes – com ramificações em todos os poderes, principalmente no Judiciário.
Relator do caso que resultou no arquivamento do processo que investigou a família Samey, o ministro Sebastião Reis Júnior foi empossado em junho passado no STJ. Um de seus amigos diletos é o  advogado Antonio Carlos de Almeida Castro. Kakay, como o advogado é conhecido em Brasília, também é amigo de Sarney e defensor do clã maranhense há tempos. Essa relação de proximidade entre os três teve alguma coisa a ver com a decisão da semana passada? Certamente não. Mas relações assim fomentam determinadas lendas. “O Sebastião é meu amigo há muito tempo, mas não atuei nesse caso, não conheço os detalhes do processo nem sabia que ele era o relator”. diz Kakay. Em fevereiro, o advogado organizou uma feijoada na mansão em que mora, em Brasília, que reuniu ministros. senadores e advogados famosos. Sebastião Reis era um dos convidados. Na ocasião, apesar de ainda ser aspirante à vaga no STJ. já. era paparicado como “ministro” por alguns convivas. O ministro do Supremo Tribunal Federal José Dias Toffoli também participou da feijoada. que varou a madrugada. Ah. as festas e os quartos de hotel em Brasflia.
Festança
No dia 17 passado, um sábado, Toffoli, Kakay e representantes de famosas bancas de advogados de Brasília voltaram a se encontrar em uma festa, em Araxá, Minas Gerais, no casamento de um dos filhos do ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence. O aeroporto da cidade não via um movimento assim tão imenso fazia muito tempo. Os convidados mais famosos chegaram a bordo de aviões particulares, inclusive o ministro Dias Toffoli. Em nota, ele explicou que o avião lhe fora cedido pela Universidade Gama Filho, do Rio de Janéiro, onde dá aulas. Naquele dia, por coincidência, o ministro, que estava junto de sua companheira, informou que tinha um compromisso de trabalho no campus que a instituição mantém em Araxá.
Sepúlveda Pertence é o presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência – uma espécie de vigilante e fiscal do comportamento das autoridades do Executivo. Além de Kakay e Toffoli, ele recebeu como convidados o ex-senador Luiz Estevão (condenado a 31 anos de prisão e que deposita suas últimas esperanças em se safar da cadeia nos recursos que serão julgados no STJ e no Supremo) e o empresário Mauro Dutra (processado por desvio de dinheiro público) – e advogados que defendem ou já defenderam ambos. Toffoli é relator de um dos processos de Luiz Estevão no Supremo. Os quartos do hotel mais luxuoso da  cidade foram ocupados, portanto, por juízes, réus e advogados que atuam em processos comuns. A feijoada de Brasília terminou na madrugada do dia seguinte, com um inofensivo karaokê. A festa de Araxá também avançou a madrugada, embalada por música eletrônica. Havia, porém, uma surpresa guardada para o final.
Lança-perfume
Depois das 3 da manhã, as bandejas dos garçons passaram a circular com frascos de lança-perfume, uma droga ilegal, que pode levar à prisão de quem a distribui. Quem a consome, se flagrado, também tem de se explicar à Justiça. “Teve gente que passou mal no banheiro, mas foi tudo de boa”, conta um dos convidados. Àquela hora, rezemos, os guardiães das leis, incluindo os anfitriões, já haviam se recolhido aos seus aposentos. Não teriam testemunhado, assim, o que, pelas leis vigentes no país, ainda é considerado crime. No dia seguinte, os jatinhos estacionados no aeroporto decolaram em direção a Brasília. Na segunda-feira, quando começa a semana de trabalho, os convivas passam a chamar-se de excelências. Voltam a ser juízes, advogados e réus. Só na aparência. infelizmente.
Volto a agosto de 2012
O noivo era justamente Eduardo Pertence, que está lá no primeiro parágrafo deste post. Era isso o que eu queria dizer quando falei em promiscuidade. Ainda voltarei a esse tema para indagar e responder: “Quando um homem público ou uma autoridade deixa de ser homem público e autoridade?”
Por Reinaldo Azevedo

O caso Noblat-Toffoli e a promiscuidade de Brasília. Ou: A República dos Fidalgos cercada pela ralé — nós todos!

Vejam este quadro do francês Jean-Baptiste Debret, que retratou o Brasil do começo do século 19. Olhem ali o escravo a proteger do sol o nhonhô que faz xixi na rua. Os “donos do poder”, para lembrar o livro de Raymundo Faoro, evocado por Roberto Gurgel na sua denúncia, continuam a fazer xixi, agora sobre a República e a Constituição. E os escravos somos nós, os pagadores de impostos do país dos fidalgos.
Recebi muitos pedidos para que escreva algo sobre o post publicado na madrugada de sábado pelo jornalista Ricardo Noblat em seu blog, relatando um episódio estupefaciente. Saía ele de uma festa, em Brasília, quando, disse, foi colhido por uma metralhadora de impropérios disparados por ninguém menos do que José Antonio Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal, membro de um colegiado que distingue apenas 11 pessoas na República.
O ministro estaria descontente com uma opinião expressa por Noblat, que também havia defendido que ele se declarasse impedido de participar do julgamento. Reproduz o jornalista as palavras que teriam sido ditas pelo ministro (em vermelho):
— Esse rapaz é um canalha, um filho da puta.
Repetiu “filho da puta” pelo menos cinco vezes. E foi adiante:
— Ele só fala mal de mim. Quero que ele se foda. Eu me preparei muito mais do que ele para chegar a ministro do Supremo.
Comentar o quê?
Divirjo de Noblat em muitas escolhas. Quando se trata de coisa relevante, digo aqui a razão. Mas pergunto: por que motivo inventaria uma história cabeluda como essa? O jornalismo petralha definiu os seus inimigos de estimação, não é? Aqueles que estariam sempre, segundo seus delírios, perseguindo os heróis petistas. Noblat não está entre os alvos fixos da turma. José Dirceu, se não me engano, é colunista do seu blog — Toffoli também teria se referido a esse fato com esta fala:
— O Zé Dirceu escreve no blog dele. Pois outro dia, esse canalha o criticou. Não gostei de tê-lo encontrado aqui. Não gostei.
Tendo acontecido assim, vê-se um Toffoli tomando, de público, as dores de Zé Dirceu.
Brasília promíscua
Trabalhei em Brasília em 1996. Detesto sair de casa, mas fui a algumas poucas festas — poucas: minha filha mais velha tinha acabado de completar um ano, e minha mulher estava grávida da segunda; preferia ficar com elas. Já então estranhava o que chamei de “promiscuidade brasiliense”.
Não havia beberagem no Planalto Central que não juntasse jornalistas, deputados, senadores, ministros, quadros da burocracia… Desenvolvi, desde aquela época, tese que tenho até hoje: houvesse no Brasil tabloides de modelo inglês, a República cairia. E não seria necessário praticar nenhuma das delinquências do “News of the World”.  Se querem saber, o Brasil seria muito mais saudável. Quantas vezes se viram e se veem respeitáveis autoridades a sair carregadas de restaurantes da moda, entupidas de álcool, sem que se tenha publicado uma miserável nota nos jornais? Por que não? Ah, isso tudo é vida privada!
Uma ova!!! O jornalismo brasiliense desenvolveu uma gigantesca tolerância para desvios de conduta de homens públicos. O pior é que isso está ligado, lá vou eu, ao “fontismo”. Faz parte da camaradagem. Jornalista que decidir contar o que viu nessas festas ou nesses convescotes sabe que está marcado. Ninguém mais vai querer falar com ele — e pode ser alvo de críticas dos próprios colegas. 
Noblat não teria escrito nada sobre a festa não fossem as ofensas de que foi alvo. Tratava-se, segundo fiquei sabendo, de um encontro na casa de Fernando Neves, ex-ministro do TSE. O blogueiro do Globo não era o único jornalista. Havia outros. Toffoli não era a única autoridade. Havia outras. Lá estava Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, um dos advogados de defesa do mensalão — dos mais estrelados —, em processo no qual Toffoli é… juiz!
“É assim no mundo inteiro, Reinaldo!” Não! Errado! NÃO É ASSIM NO MUNDO INTEIRO! Não no mundo democrático. Lamento! Esses eventos reúnem todas as características da antiga corte, que separava os fidalgos — ainda que pudesse ter suas divergências — da ralé.
Testemunho
Enviaram-me há pouco uma mensagem — não sei se é comentário publicado no blog de Noblat ou carta aberta; pouco importa — em que um rapaz chamado Eduardo Pertence contesta as informações publicadas pelo jornalista. Vale a pena ler. É um mimo e um emblema do que estou dizendo aqui.
“Caro Noblat,
Aprendi a lhe respeitar e admirar desde criança, por consequência do meu pai, Sepúlveda Pertence, seu amigo e admirador.
Contudo, não posso deixar de demonstrar meu espanto com essa leviana notícia. Estava eu, junto ao meu pai, nessa mesma festa. Você foi recebido na mesa dela, com todas as loas e elogios.
Fiquei na festa até o final, chegando a acompanhar o Min. Toffoli até o seu carro, quando ele foi embora. Afirmo não ter presenciado nada parecido com o que você noticiou aqui.
Não vi, nem ouvi dele, nada assemelhado as loucuras aqui publicadas. De minha parte, testemunho que isso não houve. De sua parte, espero que o Mensalão não esteja alterando sua noção de realidade.
Continue, fora isso, sendo o grande e admirável jornalista que sempre foi. Com respeito, mas espanto.
Eduardo Pertence.”
Comento
Sendo verdadeira essa mensagem (refiro-me à origem do texto, não ao seu conteúdo), noto a ligeireza com que o filho evoca o nome do pai para demonstrar que, no fim das contas, todos pertencem à mesma grei: à dos homens incomuns. Noblat é tratado como aquele que é recebido à mesa — afinal, jornalistas gozam da fidalguia por uma espécie de tolerância, não de mérito de berço, né? — e que acabou traindo a confiança da turma. Eduardo Pertence assegura que o fato não se deu (se ele fala a verdade, Noblat seria o quê?), mas expressa seu respeito ao outro, que segue sendo uma pessoa admirável, embora, segundo ele, minta um pouquinho… O que Eduardo tem de seu para asseverar que o outro falta com a verdade? O nome “Pertence” e o fato de conhecer o blogueiro desde criança…
Ah, sim, para quem não lembra: Sepúlveda Pertence é ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e é o atual presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República.
Fidalgo quer dizer “filho de algo”. Se estudarem a origem espanhola da expressão, chegarão a “hi d’algo”, que designava “home de dinheiro”, por oposição ao Zé Ninguém, ao despossuído.
Eu estou entre aqueles que consideram que um dos males de Brasília — apenas um deles — é ter criado uma ilha da fantasia que protege do povo os fidalgos. O poder público se tornou algo a ser compartilhado entre “os iguais” na fidalguia. Os “diferentes” ficam na periferia: literalmente, o resto do Brasil.
Estou entre aqueles que acham que deputados, senadores, ministros de estado, ministros do Supremo, autores em geral perdem boa parte do direito que os homens comuns têm à chamada “vida privada”. Eu até poderia encher a cara e dar vexame na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé — embora nunca o tenha feito, que me lembre ao menos… Isso não é nem deve ser notícia. Não carrego a força de uma representação. Não recebo dinheiro público para ser um homem exemplar. Não disponho dos instrumentos de qualquer dos Três Poderes da República.
Autoridades da República têm de saber se portar — e, por óbvio, saber beber. Aliás, como regra geral, todos deveriam ter um norte ético: “Se beber, não xingue ninguém”.
E fica aqui um convite aos coleguinhas de Brasília: comecem a contar tudo o que vocês veem em festas e restaurantes. Terá um poder saneador da República maior do que CPIs e julgamentos do Supremo.
PS – Ah, sim: Nelson Jobim também estava lá. Mas é inútil perguntar se ele viu alguma coisa.
 Por Reinaldo Azevedo
REV VEJA

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