O país acompanha perplexo as revelações dos acordos de colaboração premiada da dupla Joesley e Wesley Batista do grupo JBS. Para além das discussões em torno das filmagens de políticos recebendo malas de dinheiro e envoltos em conversas não republicanas, a indignação também se voltou para as benesses concedidas pelo Procurador-Geral da República aos irmãos Batista, em troca das informações e documentos delatados. Mesmo diante do lucro de cifras astronômicas em negociatas com o poder público e do que se possa considerar um “recorde mundial” de corrupção de políticos (1.829, no total), no acordo firmado com o MPF, a dupla escapou de sofrer sanção penal, devendo apenas pagar multa pessoal de 110 milhões de reais, com carência de um ano, em dez vezes.
Para tentar compreender como se chegou a um acordo assim vantajoso é preciso levar em conta o que é, como funciona e porque a colaboração premiada ganhou este destaque ambivalente.
A colaboração premiada é um instrumento de dupla funcionalidade: serve tanto para ampliar o quadro probatório em investigações de delitos complexos, quanto como instrumento de defesa. Não obstante esteja regrada desde 1990, ganhou fôlego e nova dimensão a partir da Lava Jato, tanto em razão de sua melhor regulamentação dada pela lei 12.850/13, quanto pelo fato de que as teses de prescrição e nulidade deixaram de ser opções defensivas concretas. Depois da Lei 12.234, de 2010, não há mais a chamada “prescrição retroativa” na fase de investigação o que, somado à mudança de interpretação do STF, em fevereiro de 2016, quanto ao início de execução da pena, agora possível depois da condenação em segundo grau, ainda pendentes recursos para os tribunais superiores, torna a opção pela colaboração uma última cartada defensiva.
Instalou-se, então, com potência inédita, uma nova dualidade no processo penal brasileiro: ao lado do modelo “tradicional”, originário da Europa continental e orientado por uma lógica de princípios, se apresenta o instituto da colaboração premiada, inspirado no modelo de plea bargain norte-americano e orientado por uma lógica utilitarista, de custo/benefício.
No modelo “tradicional” são observadas as garantias de presunção de inocência, de contraditório, de não autoincriminação, do direito ao silêncio e da carga probatória ser toda da acusação. Aqui as partes produzem provas perante o juiz a fim de convencê-lo a seguir suas teses, com liberdade na valoração probatória, exigindo apenas uma fundamentação adequada. Ao final, em caso de condenação, o juiz aplica a pena prevista em lei, sem negociações e sem descontos premiais. A chance de condenação em casos do colarinho branco, nos termos deste modelo tradicional é mais rara.
Porém, no modelo de colaboração premiada, a situação é diversa, pois, fruto de negociação entre as partes, o acusado abre mão da presunção de inocência (deve confessar), da não autoincriminação (deve apresentar as provas que têm contra si); do direito ao silêncio (deve falar toda vez que for convocado); do contraditório em juízo (adere à tese acusatória); e de promover a “captura psíquica” do juiz (concorda com a condenação e entrega provas contra terceiros). Em troca recebe um prêmio, que pode ser a diminuição da pena ou, até mesmo, pena alguma. O juiz, por sua vez, apenas homologa o acordo realizado entre as partes, servindo o processo mais para julgar os corréus, delatados pelo colaborador.
Portanto, na colaboração premiada, impera uma lógica de mercado e não uma visão garantista de princípios. E talvez esteja aí a dificuldade de boa parte da população brasileira compreender o resultado da negociação entabulada com os irmãos Joesley e Wesley. A sociedade não está acostumada com esse modelo no qual o criminoso leva tantas vantagens que pode até sair impune com a conivência do Estado. Aliás, nem mesmo os atores processuais estão acostumados. Aprende-se na prática como funciona essa lógica de mercado: os investigados têm informações e documentos que podem alcançar coautores da organização criminosa e querem “vendê-los” ao Estado. Interessa a “compra”? Quanto vale a “mercadoria”? Que “preço” o Estado está disposto a “pagar”? Não há fórmula única. Ainda que a Lei 12.850/13 estabeleça alguns critérios de fixação de “preços” ela dá margem para negociar, podendo chegar à “pena zero”. A relevância das informações, a urgência em fechar um acordo, a pressão interna e externa, a possibilidade de perder de um “bom negócio”, o emocional, tudo influencia os termos do contrato a ser firmado e, dependendo do caso, como explica a Psicologia Cognitiva, é possível um encurtamento do processo decisório na hora de “fechar a compra”. Ganha mais quem negocia melhor e quem tem o tempo a seu favor.
No caso concreto, parte dos crimes estavam para acontecer dali a cinco dias do fechamento de um pré-contrato de colaboração com o PGR e medidas de produção de provas que necessitam de autorização do STF eram exigidas. Analisar as provas apresentadas pelos colaboradores, ouvir as gravações, atestar, precariamente, suas autenticidades, elaborar as petições com fundamentações adequadas, protocolizá-las, aguardar suas formalizações e as respectivas decisões do Ministro Fachin, operacionalizar as interceptações de comunicação telefônica, as ações controladas e as escutas ambientais, são providências naturalmente morosas. O tempo, portanto, jogava a favor dos irmãos. Na mesma senda, as informações relevantíssimas para o país não poderiam ser ignoradas e, sabia-se, jamais seriam obtidas pelos meios de investigação tradicionais. No fechamento do acordo, ponto para os irmãos Batista que se beneficiaram da lei.
Muitos se perguntam: mas não dá para rever esse acordo? A primeira resposta é não. Nos termos da lei, uma vez homologado pelo Judiciário, somente em caso de quebra do contrato pelos investigados é que seria possível reverter o cenário pactuado. No entanto, em se tratando do STF, não seria surpresa se o colegiado revisse a decisão de homologação singular do Ministro Relator. Uma única brecha para tanto seria questionar a aplicação do §4º do art.4º da Lei 12.850/13 que permite o não oferecimento da denúncia apenas quando se conjugam os critérios de não ser o líder da organização criminosa e ser o primeiro a fechar o acordo de colaboração. Estes pontos não estão muito claros no caso concreto e, aqui, abre-se uma possibilidade, remota, diga-se.
De resto, é relevante aprender com o caso, tomando-se consciência de que esse jogo de compra e venda não é próprio da formação acadêmica de promotores e advogados. Talvez tenha chegado a hora de se criar uma disciplina de técnicas de negociação nas Faculdades de Direito. Do contrário, nesse novo universo do processo penal, sentar à mesa para tratar com investigados que têm ampla vivência em processos de negociação, calejados e acostumados com o mundo empresarial, pode ser arriscado. Vale o aprendizado oportunizado a cada novo acordo na Lava Jato. Novos tempos e novas ferramentas exigem novas expertises.
- O conteúdo do presente texto reflete a opinião do autor, não constituindo, em seus termos, necessariamente, a posição dos demais membros da Escola Superior de Direito Público.
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Acesso 11/06/2017 - DO ESDP
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