quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Hipocrisia marca abertura do ano no Congresso


No Brasil, a hipocrisia tornou-se uma forma de patriotismo. Nesta quinta-feira, os delatados Eunício Oliveira e Michel Temer se encontram com a homologadora de delações Cármen Lúcia. Vestidos com suas melhores roupas e munidos de suas maiores virtudes, os chefes dos três Poderes da República farão suas mais convincentes poses na sessão de abertura do ano legislativo no Congresso Nacional. Cada gesto, cada cumprimento, cada sorriso, cada frase dos seus discursos será uma pose. A sucessão de poses comporá um quadro plástico que ilustra, da forma mais paradigmática possível, o ponto a que chegou a política brasileira.
As cenas que a TV Senado transmitirá ao vivo não são opcionais. Prevista na Constituição, a sessão solene de abertura do ano legislativo ocorre sempre no dia 2 de fevereiro. Serve para que o Executivo e o Judiciário informem ao Legislativo seus planos para cada exercício. Em sua mensagem presidencial, Temer realçará a natureza parlamentar do seu governo, dirá que as coisas já estiveram piores na economia e pedirá empenho aos aliados para aprovar reformas duras de roer como a da Previdência. Na sequência, os microfones serão franqueados a Cármen Lúcia. Caberá ao delatado Eunício, eleito na véspera para suceder o réu Renan Calheiros no comando do Senado e do Congresso, pronunciar o discurso de encerramento.
Conhecido muldialmente como o país do jeito para tudo, o Brasil vai se revelando o país que não tem jeito. É como se existisse na nação uma falha estrutural. Uma auto-indulgência congênita que frustra todas as tentativas de reforma. Uma maldição mais forte do que o sentimento de culpa. Uma urucubaca que faz com que a hipocrisia conduza a uma constatação asfixiante: o escândalo, mesmo quando escancarado, é sempre menor do que o sistema de conveniências tácitas. Delatados e homologadora cumprem o protocolo pelo bem do país. A desordem passa a ser a nova ordem. Busca-se a retomada da normalidade a partir do aproveitamento da anormalidade.
É mais ou menos como disse Fernando Henrique Cardoso em entrevista ao blog no início da semana: “Está tudo caótico, tudo meio solto, todo mundo meio tonto. […] É nesses momentos de caos que o país consegue caminhar.” O ex-presidente tucano recordou seus tempos de ministro da Fazenda do então presidente Itamar Franco. “Havia uma situação caótica, semelhante à atual. Saíamos de um impeachment, tivemos o escândalo dos anões do Orçamento, o governo era de transição.” Deu no Plano Real. Mas o próprio FHC só é otimista até certo ponto. O ponto de interrogação. “Se a crise ficar muito grande, perde o controle”, ele disse.
No momento, a principal crise do Brasil é de semântica. Antes de concluir se o país avançará em meio ao caos é preciso combinar o que é uma crise “muito grande”. Convém definir quesitos, escolher critérios. “Muito grande” se mede pelos 81 inquéritos envolvendo 361 investigados da Lava Jato à espera de julgamento no STF ou pelas 120 condenações já sacramentadas por Sérgio Moro, somando 1.257 anos, 2 meses e 1 dia de cadeia? Que peso devem ter nos cálculos as 77 delações em que os corruptores da Odebrecht listaram duas centenas de políticos? Como contabilizar os três anos de recessão, os 12 milhões de desempregados e o desmantelamento dos serviços públicos?
Enquanto não se chega a um acordo que permita ao Brasil falar a mesma língua, Brasília vai divertindo a plateia com solenidades como a sessão de abertura do ano legislativo de 2017. Mas convém não exagerar no patriotismo. Por trás das poses das autoridades é preciso que exista uma noção qualquer de moral. Sob pena de os brasileiros imaginarem que o abismo, como o inferno da escatologia cristã, é mais uma ficção admonitória do que a realidade de uma crise terminal. DO J.DESOUZA

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