Nenhum outro corpo policial pode existir na
República. Se não fosse assim, cada órgão de poder criaria a sua
“polícia” própria, como a que existe no Senado
Publicado no Estadão
A prisão, no recinto do Senado Federal, do chefe da sua milícia – o
Pedrão – e três de seus companheiros põe à mostra até que ponto os donos
daquela Casa, nas últimas décadas, a tornaram um feudo para a prática
de grandes crimes e de refúgio de notórios corruptos. Para tanto os
sucessivos presidentes do outrora respeitável Senado da República
formaram uma milícia, totalmete à margem do sistema constitucional, a
que, pomposamente, denominaram “Polícia Legislativa”, também alcunhada
de “Polícia do Senado”.
Não se podem negar a esse agora notório exército particular
relevantes trabalhos de inteligência – do tipo CIA, KGB –, como a
célebre violação do painel de votações daquele augusto cenáculo, ao
tempo do saudoso Antônio Carlos Magalhães e do lendário José Roberto
Arruda, então senador e depois impoluto governador do Distrito Federal. E
nessa mesma linha de sofisticação tecnológica a serviço do crime –
agora de obstrução de Justiça – a milícia daquela Casa de Leis promove
“varreduras”, nos gabinetes e nos solares e magníficos apartamentos onde
vivem esses varões da República, a fim de destruir qualquer prova de
áudio que porventura possa a Polícia Federal obter no âmbito das
investigações instauradas pelo STF.
Acontece que o poder de polícia só pode ser exercido pelos órgãos
instituídos na Carta de 1988, no seu artigo 144, e refletidos nos
artigos 21, 22 e 42, dentro do princípio constitucional de assegurar as
liberdades públicas. Assim, somente podem compor o organograma da
segurança pública constitucional a Polícia Federal (incluindo a
Rodoviária e a Ferroviária) e as Polícias Civis e Militares dos Estados
(incluindo o Corpo de Bombeiros).
Nenhum outro corpo policial pode existir na República. Se não fosse
assim, cada órgão de poder criaria a sua “polícia” própria, como a que
existe no Senado. Também seriam criadas tais forças marginais nos
tribunais superiores e nos Tribunais de Justiça dos Estados, nas
Assembleias Legislativas, nos Tribunais de Contas, nas Câmaras
Municipais, cada um com seu exército particular voltado para contrastar e
a se opor aos órgãos policiais que compõem o estrito e limitado quadro
de segurança pública estabelecido na Constituição.
Cabe, a propósito, ressaltar que todos os órgãos policiais criados na
Carta Magna de 1988 estão submetidos à severa jurisdição administrativa
do Poder Executivo, da União e dos Estados, sob o fundamento crucial de
que nenhum ente público armado pode ser autônomo, sob pena de se tornar
uma milícia. Nem as Forças Armadas – Exército, Marinha e Aeronáutica –
fogem a essa regra de submissão absoluta ao Ministério da Defesa, pelo
mesmo fundamento.
E não é que vem agora o atual chefe da nossa Câmara Alta declarar
textualmente que a “polícia legislativa exerce atividades dentro do que
preceitua a Constituição, as normas legais e o regulamento do Senado”?
Vai mais longe o ousado presidente do Congresso Nacional, ao afirmar que
o Poder Legislativo foi “ultrajado” pela presença, naquele templo
sagrado, da Polícia Federal, autorizada pelo Poder Judiciário. Afinal,
para o senhor Renan, o território do Senado é defendido pela chamada
polícia legislativa. Ali não pode entrar a Polícia Federal, ainda mais
para prender o próprio chefe da milícia – o Pedrão.
E com esse gesto heroico o preclaro chefe do Congresso Nacional proclama mais uma aberração: o da extraterritorialidade interna.
Como se sabe, a extraterritorialidade é concedida às embaixadas
estrangeiras que se credenciam num país e ali têm instalada a sua
representação diplomática. Trata-se, no caso, da extraterritorialidade
externa, que garante a inviolabilidade da embaixada e a imunidade de
jurisdição de seus membros, em tempos de paz e de guerra.
Mas não para aí a extraterritorialidade interna proclamada pelo
grande caudilho do Senado. As palacianas residências e os apartamentos
dos senadores e senadoras tampouco podem ser violadas pela Polícia
Federal. Trata-se de um novo conceito de Direito Internacional Público
inventado pelo grande estadista pátrio: a noção de extraterritorialidade
estendida. Ou seja, o domicílio de um representante do povo é incólume
às incursões da Polícia Federal autorizadas pelo Poder Judiciário.
Foi o que ocorreu em agosto, quando o ilustre marido de uma senadora
do Paraná foi preso na residência do casal e dali foram retirados
documentos comprometedores. A reação foi imediata: marido de senadora,
estando na casa onde com ela coabita, não pode ser ali preso, pois se
trata de espaço extraterritorial interno estendido!
E assim vai o nosso país, que não para de andar de lado em matéria de
instituições republicanas. E o fenômeno é impressionante. Basta o sr.
Calheiros declarar que o território do Senado é inviolável para que a
tese seja acolhida por um ministro do Supremo, numa desmoralização do
próprio Poder Judiciário, que se autodesautoriza, na pessoa do ilustre
magistrado de primeiro grau que acolheu as providências da Polícia
Federal no território livre do Senado Federal.
E, last but not least, o senhor das Alagoas, não contente com o
reconhecimento da legitimidade de sua milícia e da extraterritorialidade
interna, por força do despacho do ministro Teori Zavascki, propõe-se,
com o maior rompante, próprio dos destemidos senhores medievais, a
cercear as atividades da Polícia Federal, do Ministério Público e do
Poder Judiciário, sob a égide do abuso do poder, para, assim, livrar-se,
ele próprio, e liberar dezenas de representantes do povo no Congresso
do vexame das “perseguições políticas” que se escondem nos processos por
crime de corrupção, que nunca praticaram, imagine!
E vivam o foro privilegiado, a futura Lei de Abuso de Autoridade e os
demais instrumentos e interpretações, omissões e postergações do STF,
que, cada vez mais, garante a impunidade desses monstros que dominam o
nosso Congresso Nacional, sob o manto de lídimos representantes do povo
brasileiro.
Que vexame, que vergonha! DO A.NUNES
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