Mergulhada em denúncias de corrupção
e fraudes em contratos que podem ter tirado R$ 10 bilhões de seus
cofres, com ex-diretores presos e sob a mira da Polícia Federal, a
Petrobrasvê mais uma tempestade se aproximar no horizonte. O Ministério
Público do Tribunal de Contas da União (TCU) quer entender por que a
Petrobras pagou, em agosto deste ano, US$ 434 milhões (R$ 1,126 bilhão) a
mais que o previsto em contrato à YPFB, a estatal boliviana de petróleo
e gás, pela “extração teórica” de um combustível “sem nenhuma
utilidade”.
A investigação do Ministério Público
do TCU ainda não contempla o valor real dessa fatia. Ele pode chegar a
US$ 596 bilhões, com a soma de um repasse de US$ 100 milhões (R$ 259,6
milhões) aos bolivianos em 2010 e do perdão de uma multa de US$ 62
milhões (R$ 161 milhões), por falhas na entrega do produto. O anúncio do
perdão foi feito pelo presidente boliviano, Evo Morales, para a
imprensa local, na cidade de Santa Cruz de la Sierra, durante a
assinatura do acordo milionário com a Petrobras. No Brasil, a benesse
não foi divulgada. Os pagamentos foram feitos no início de 2010, após
Morales ser reeleito pela primeira vez, e em agosto deste ano, às
vésperas das eleições nos dois países. Os detalhes da ficção por trás
dos pagamentos estão num aditivo ao contrato de fornecimento de gás
entre Bolívia e Brasil a que ÉPOCA teve acesso.
A soma das operações na Bolívia, US$
596 milhões – ou R$ 1,550 bilhão –, supera o prejuízo contábil de US$
530 milhões (R$ 1,376 bilhão) deixado pela compra da refinaria de
Pasadena, outro escândalo sob investigação. Com uma diferença: no caso
de Pasadena, a Petrobras ficou com a refinaria, que pode valer menos que
o valor pago, mas existe – é um ativo. A YPFB recebeu milhões de
dólares pela “extração teórica” de um subproduto do gás já vendido
anteriormente à Petrobras, como estabelecido no aditivo do contrato.
“Esse aditivo não tem sentido comercial nem técnico. Muda a regra e não
oferece nenhuma vantagem em troca. Está fora das melhores práticas da
indústria do petróleo, que lida com contratos de longo prazo. É uma
jabuticaba internacional”, afirma o advogado Claudio Pinho, professor da
Fundação Dom Cabral na área de Petróleo e Gás. “Em mais de 20 anos no
setor, nunca vi um contrato que vendesse gás com a molécula fracionada.”
Eis um resumo das tecnicalidades da
manobra. O documento estabeleceu que a Petrobras deveria pagar mais pela
“extração teórica” da “parte rica” do gás (elementos com nomes que
lembram as aulas de química, como etano, metano, propano e butano;
submetidos a alta pressão e baixas temperaturas, eles se tornam
líquidos). A operação seria como se um frigorífico, depois de ter
negociado com um criador de gado o preço da arroba do boi, tivesse de
pagar uma quantia a mais pela “extração teórica” do filé-mignon que
havia naquela arroba. Com um agravante: a extração dessa parte nobre do
gás, tratada no aditivo como “teórica”, jamais foi realizada. Por uma
razão simples. Não existe no Brasil nem na Bolívia indústria
processadora capaz de dar conta de extrair a “parte rica” de 30 milhões
de metros cúbicos de gás por dia, volume do fornecimento da Bolívia.
Para ter uma ideia, a maior unidade brasileira, em Caraguatatuba,
processa 7 milhões de metros cúbicos por dia.
Outro aspecto que chamará a atenção
dos investigadores: a Agência Nacional do Petróleo (ANP) precisaria
autorizar a importação do gás líquido. Consultada, a ANP informou que
“não autorizou a importação de líquidos do gás natural proveniente da
Bolívia”, porque hoje há “importação de gás natural por gasoduto”. A
importação do gás liquefeito, afirma a ANP em nota, precisaria ser feita
“de forma segregada. A separação dos líquidos na Bolívia e sua
importação por meio de instalação dutoviária específica”, depois de
obtida “uma autorização prévia da ANP”.
Herança das negociações do
ex-presidente Lula com Evo, o acerto de contas entre as duas
petrolíferas, concluído em setembro, foi comunicado de forma seca ao
mercado como “um acordo vantajoso”. Na mesma nota, a Petrobras admitiu
que o negócio teria um impacto negativo de US$ 268 milhões no balanço
trimestral – aquele cuja divulgação foi adiada para se adequar às
investigações em andamento na Operação Lava Jato.
A história da cooperação entre
Brasil e Bolívia na área de gás é antiga. As primeiras tratativas datam
de 1975, quando o governo Ernesto Geisel assinou o primeiro acordo para a
construção de um gasoduto. O projeto só saiu do papel no governo
Fernando Henrique Cardoso, em 1996, quando Brasil e Bolívia assinaram o
Tratado de La Paz. Dos 3.150 quilômetros do gasoduto, 2.593 foram
planejados em território brasileiro. As obras começaram em 1997. O
primeiro trecho foi inaugurado ainda na era FHC, e a Petrobras se tornou
a maior empresa em atividade na Bolívia. A relação produtiva entre os
dois países começou a estremecer em 2006, quando Evo, escudado na
decisão de um plebiscito, nacionalizou o gás. Militares invadiram as
refinarias, também as da Petrobras. Na época, o ex-presidente Lula
afirmou: “Não faremos retaliação a um país infinitamente mais pobre que o
Brasil, um povo mais faminto que o povo brasileiro”. Em alguns meses,
chegou-se a um acordo, extremamente desfavorável ao Brasil. As
refinarias foram expropriadas, e os royalties dispararam. Os impostos
sobre a produção subiram de 50% para 82% – e a receita boliviana com
impostos subiu de US$ 673 milhões, em 2005, para US$ 5,85 bilhões, em
2013. No ano passado, a Petrobras venceu uma licitação para explorar gás
em Santa Cruz, região com as maiores reservas. Aqui, o consumo do gás
boliviano permanece em ascensão. Em 2013, cresceu 17,8%.
LINHA DIRETA
O ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Ele negociava diretamente com o ministro Carlos Villegas (como mostra o documento ao lado) (Foto: Alan Marques/Folhapress)
O ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró. Ele negociava diretamente com o ministro Carlos Villegas (como mostra o documento ao lado) (Foto: Alan Marques/Folhapress)
Durante as negociações sobre os
líquidos contidos no gás natural, ocorreu um movimento pouco usual em
negociações envolvendo nações. A partir de determinado momento, o então
diretor da Área Internacional da Petrobras, Nestor Cerveró, alvo de
investigações na Operação Lava Jato, passou a tratar do assunto
diretamente com o ministro boliviano para a área de Energia, Carlos
Villegas (hoje presidente da YPFB). Pela praxe diplomática, ministros
negociam com ministros; diretores de estatal, com diretores de estatal.
“Dirijo-me ao senhor com o propósito
de avançar nos entendimentos que temos tido nos últimos dias sobre o
pagamento pelos líquidos contidos no gás natural”, escreve Cerveró, em
correspondência de 12 de dezembro de 2007 para o então ministro
Villegas. No dia anterior, em papel timbrado da República da Bolívia,
Villegas afirmava que “o uso dos líquidos pagos pela Petrobras será de
livre disponibilidade em território brasileiro, contanto que se instale
uma planta de extração de líquidos em território boliviano”. A tal
“planta de extração de líquidos” nunca foi construída. A Petrobras
confirma que os líquidos nunca foram separados. Continuam, portanto,
dissolvidos no gás que vem da Bolívia, porque “elevam o poder calorífico
do combustível”. (A quantidade mínima de energia no gás é prevista
nesse tipo de contrato.)
A Petrobras afirma que, em troca do
aditivo, o Brasil terá prioridade na remessa de gás que ela própria
venha a descobrir na Bolívia. Considerando que a Bolívia não tem mercado
para seu gás, que os demais vizinhos não rivalizam em porte com o
mercado brasileiro e que sempre foi interesse do Brasil garantir esse
suprimento, a nota da Petrobras reafirma o óbvio. “Diante da competição
do gás que virá da Bacia de Santos, quem tenta se garantir é a Bolívia”,
diz o consultor François Moreau, especialista no setor de petróleo e
gás. “O Brasil pagou por algo que não existe. Um pagamento retroativo,
sem benefício econômico.”
O contrato de fornecimento de gás
com o Brasil rende para a Bolívia US$ 4 bilhões por ano. O combustível é
transportado pelo gasoduto Brasil-Bolívia. Sem saída para o mar, a
Bolívia tem como desafio aproveitar sua principal riqueza, a maior
jazida de gás natural livre (sem petróleo associado) do continente. A
Bolívia tem duas fábricas de extração de líquido de gás natural. Uma
está em obras. A outra, em funcionamento há um ano em Santa Cruz,
exporta combustível para Uruguai, Peru e Paraguai. O aditivo contratual
está disponível no site da YPFB e pode ser um bom caminho para a
investigação descobrir como uma “extração teórica” se transformou num
prejuízo bilionário, que nada tem de teórico.
*Fonte: Época
DO MARIOFORTES
Nenhum comentário:
Postar um comentário