Magistrados suecos não têm secretária e só podem tirar até 35 dias de férias.
Por Claudia Wallin, BBC
"Não almoço à custa do dinheiro do contribuinte", me disse certa vez o
juiz sueco Göran Lambertz, em tom quase indignado, na Suprema Corte da Suécia.
A pergunta que inflamou a reação do magistrado era se, assim como
ocorre no Brasil, os juízes da instância máxima do Poder Judiciário
sueco têm direito a carro oficial com motorista e benefícios
extra-salariais como auxílio-saúde, auxílio-moradia, gratificação
natalina, verbas de representação, auxílio-funeral, auxílio pré-escolar
para cada filho, abonos de permanência e auxílio-alimentação.
"Não consigo entender por que um ser humano gostaria de ter tais
privilégios. Só vivemos uma vez e, portanto, penso que a vida deve ser
vivida com bons padrões éticos. Não posso compreender um ser humano que
tenta obter privilégios com o dinheiro público", acrescentou Lambertz.
"Luxo pago com o dinheiro do contribuinte é imoral e antiético", completou o juiz sueco.
Nesta semana, o presidente Michel
Temer sancionou o reajuste de 16,38% nos salários dos ministros do STF
(Supremo Tribunal Federal) e da procuradora-geral da República, o
que aumenta a remuneração dos magistrados de R$ 33 mil para R$ 39 mil. O
reajuste foi garantido após acordo que condicionou o aumento do salário
à revogação do auxílio-moradia de R$ 4,3 mil a juízes de todo o país.
Na sexta-feira, entretanto, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, recorreu da decisão
- o ministro do Supremo Luiz Fux suspendeu no último dia 26 o benefício
para todas as carreiras do Judiciário - e pede que o auxílio-moradia
seja mantido para os membros do Ministério Público.
Em um Brasil em crise, o aumento terá um efeito cascata sobre a
remuneração de todo o funcionalismo público, e, segundo técnicos da
Câmara, deverá produzir um impacto de R$ 4,1 bilhões anuais nos cofres
da União e dos Estados.
Na Suécia, o salário dos magistrados da Suprema Corte - que não têm
status de ministro - é de 109,5 mil coroas suecas, o que equivale a
aproximadamente R$ 46 mil. Uma vez descontados os altos impostos
vigentes no país, os vencimentos de cada juiz totalizam um valor líquido
de 59 mil coroas suecas, segundo dados do Poder Judiciário sueco - o
equivalente a cerca de R$ 25 mil.
"Isso é o que se ganha, e é um bom salário. Pode-se viver bem com
vencimentos desse porte, e é suficiente", diz Lambertz. Ex-professor de
Direito da Universidade de Uppsala e ex-Provedor de Justiça (Ombudsman)
do Governo, Göran Lambertz chefiou ainda uma das divisões do Ministério
da Justiça antes de se tornar juiz da Suprema Corte, cargo vitalício que
ocupou até recentemente.
Benefícios extra-salariais, oferecidos a juízes de todas as instâncias
no Brasil, não existem para juízes suecos de nenhuma instância.
"Privilégios como esses simplesmente não são necessários. E custariam
muito caro para os contribuintes", diz à BBC News Brasil o jurista sueco
Hans Corell, ex-Secretário-Geral Adjunto da ONU para Assuntos
Jurídicos.
"Não quero emitir julgamentos sobre sistemas de outros países, pois eles têm seus próprios motivos e tradições. Mas não temos esse tipo de tradição na Suécia", observa Corell.
Nas demais instâncias do Judiciário, o salário médio bruto de um juiz
na Suécia é de 66 mil coroas suecas, o que equivale a aproximadamente R$
28 mil. Em valores líquidos, o salário médio dos juízes é de cerca de
41 mil coroas suecas - aproximadamente R$ 17,4 mil. O salário médio no
país é de 32,2 mil coroas suecas (cerca de R$ 13 mil), de acordo com as
estatísticas da confederação sindical sueca LO (Landsorganisationen).
Negociações sindicais na Suécia
Para reivindicar reajustes salariais, os juízes suecos seguem o mesmo
procedimento aplicado aos trabalhadores de qualquer outra categoria: as
negociações sindicais.
A negociação dos reajustes salariais da magistratura se dá entre o
sindicato dos juízes suecos (Jusek) e o Domstolsverket, a autoridade
estatal responsável pela organização e o funcionamento do sistema de
justiça.
O aumento salarial dos magistrados trata normalmente da reposição da
perda inflacionária acumulada no período de um ano, e que se situa em
geral entre 2% e 2,5%.
"Nossos reajustes seguem geralmente os índices aplicados às demais
categorias de trabalhadores, que têm como base de cálculo os indicadores
gerais da economia e parâmetros como o nível de aumento salarial dos
trabalhadores do IF Metall (o poderoso sindicato dos metalúrgicos
suecos)", explica o juiz Carsten Helland, um dos representantes da
categoria no sindicato dos juízes.
A negociação depende essencialmente do orçamento do Domstolsverket, que é determinado pelo Ministério das Finanças.
"Os juízes têm influência limitada no processo de negociação salarial",
diz Carsten. "As autoridades estatais do Domstolsverket recebem a verba
repassada pelo governo, através do recolhimento dos impostos dos
contribuintes, e isso representa o orçamento total que o governo quer
gastar com as Cortes. A partir desse orçamento, o Domstolsverket se faz a
pergunta: quanto podemos gastar com o reajuste salarial dos juízes?",
explica.
"Não podemos, portanto, lutar por salários muito maiores. Podemos
apenas querer que seja possível ganhar mais", acrescenta ele.
Na Suprema Corte sueca, os reajustes salariais seguem a mesma regra aplicada ao restante da magistratura.
Perguntado se juízes suecos considerariam reivindicar benefícios
extra-salariais como auxílio-alimentação e gratificação natalina, o juiz
Carsten Helland dedica os segundos iniciais da sua resposta a uma
sessão de risos de incredulidade.
"Juízes não podem agir em nome dos próprios interesses, particularmente
em tamanho grau, com tal ganância e egoísmo, e esperar que os cidadãos
obedeçam à lei", diz o juiz.
"Um sistema de justiça deve ser justo", ele acrescenta.
"As Cortes de um país são o último posto avançado da garantia de justiça em uma sociedade, e, por essa razão, os magistrados devem ser fundamentalmente honestos e tratar os cidadãos com respeito. Se os juízes e tribunais não forem capazes de transmitir essa confiança e segurança básica aos cidadãos, os cidadãos não irão respeitar o Judiciário. E, consequentemente, não irão respeitar a lei", enfatiza.
É simplesmente impossível, segundo Carsten, imaginar a aprovação de benefícios extra-salariais a juízes na Suécia.
"Porque não temos um sistema imoral", ele diz. "Temos um sistema
democrático, que regulamenta o nível salarial da categoria dos
magistrados, assim como dos políticos. E temos uma opinião pública que
não aceitaria atos imorais como a concessão de benefícios para alimentar
os juízes às custas do dinheiro público", assinala Carsten Helland.
Juízes sem secretárias nem carros oficiais
No antigo palacete que abriga a Suprema Corte sueca, próximo ao Palácio
Real de Estocolmo, imensas pinturas a óleo retratam nobres
representantes da corte no passado, como marcas de um tempo em que havia
lacaios e a aristocracia era predominante no Poder Judiciário. Nos
pequenos escritórios dos juízes, não há secretária na porta, nem
assistentes particulares.
No sistema sueco, os magistrados contam com uma equipe de assistentes
que trabalha, em conjunto, para todos os 16 magistrados da corte. São
mais de 30 profissionais da área de Direito, que auxiliam os juízes em
todos os aspectos de um caso jurídico.
O tribunal conta ainda com uma equipe de cerca de quinze assistentes
administrativos, que auxiliam a todos os juízes. Ou seja: nenhum juiz
tem secretária ou assistente particular para prestar assistência
exclusiva a ele, e sim profissionais que lidam com aspectos específicos
dos casos julgados pela corte.
E nenhum juiz - nem mesmo o presidente da Suprema Corte - tem direito a carro oficial com motorista.
Para ir ao trabalho na Suprema Corte, o agora aposentado Göran Lambertz
pedalava 15 minutos todos os dias desde a sua casa até a estação
central da bucólica cidade de Uppsala, que fica a cerca de 70km de
Estocolmo. De lá, tomava um trem e viajava 40 minutos até o centro de
Estocolmo, de onde caminhava a pé para a Corte.
A casa do juiz é surpreendentemente modesta. No pequeno jardim, ficam
as bicicletas. A porta de entrada dá acesso a uma estreita sala de
estar, decorada com mobiliário simples que remete aos anos 70. Ao fundo,
uma escada em madeira liga os dois andares da residência, cada um com
60 metros quadrados de área. Junto à escada, um corredor conduz a uma
minúscula cozinha, onde o juiz prepara seu café e sua comida: não há
empregados.
Férias: máximo de 35 dias
O período máximo de férias a que os juízes suecos têm direito é de 35
dias por ano. A variação depende da idade do magistrado: juízes de até
29 anos têm 28 dias de férias, e a partir de 30 anos de idade o período é
de 31 dias anuais. Juízes acima de 40 anos passam a ter direito a 35
dias de férias.
No Brasil, a lei determina que os juízes, diferentemente dos demais trabalhadores, têm 60 dias de férias por ano.
Qualquer cidadão pode checar as contas dos tribunais e os ganhos dos
juízes. Autos judiciais e processos em andamento também são abertos ao
público.
"As despesas dos juízes também podem ser verificadas, embora neste
aspecto não exista muita coisa para checar. Juízes usam muito pouco
dinheiro público, e não possuem benefícios como verba de representação.
Os juízes suecos recebem seus salários, e isso é o que eles custam ao
Estado. As exceções são viagens raras para alguma conferência, quando
seus gastos com viagem e hotel são custeados. Com relação às contas
bancárias privadas de um juiz, elas só podem ser verificadas se o juiz
for suspeito de um crime", diz Lambertz.
Na Suprema Corte, funcionários atendem solicitações de cidadãos para
verificar as contas ou examinar documentos de processos judiciais.
"Cópias dos arquivos também podem ser solicitadas. Não há nada a
esconder. A idéia básica é que tudo o que é decidido nos tribunais do
país é aberto ao público. O sistema judiciário sueco não é perfeito, mas
não é impenetrável", afirma o magistrado.
Fiscalização dos juízes
Não há um órgão específico para supervisionar os juízes. Mas entidades
como o Ombudsman do Parlamento e o Provedor de Justiça têm poderes para
fiscalizar de que maneira os tribunais lidam com diferentes casos,
quanto dinheiro eles gastam e se atuam de forma eficiente.
Não há foro privilegiado para juízes e desembargadores. Também não há
registro de casos de magistrados suecos envolvidos em corrupção.
"Entre juízes, nunca ouvi falar de um caso de corrupção em toda a minha
vida. E os juízes jamais ousariam. Acho que nenhum juiz sueco jamais
aceitaria um suborno. É algo tão proibido, que chega a ser impensável. É
distante demais das nossas tradições. E, se algum ato irregular for
cometido, ele será reportado à polícia. Por isso, mesmo se algum juiz
pensar em cometer um ato impróprio, ele não o fará. Porque teria medo de
ser reportado à polícia", diz Göran Lambertz.
Presentes a juízes, segundo Lambertz, também são inaceitáveis.
"Ninguém ofereceria a um juiz coisas como dinheiro, viagens de cruzeiro ou mesmo garrafas de bebida. Isso simplesmente não acontece. Na época do Natal, um banco, por exemplo, pode querer oferecer um presente a autoridades e órgãos públicos. Mas isso nunca acontece nos tribunais."
Um Judiciário que perde o respeito da população pode provocar "uma
explosão de desordem na sociedade", alerta o magistrado sueco:
"Quando o sistema de justiça de um país não é capaz de obter o respeito dos cidadãos, toda a sociedade é rompida pela desordem. Haverá mais crimes, haverá cada vez maior ganância na sociedade, e cada vez menos confiança nas instituições do país. Juízes têm o dever, portanto, de preservar um alto padrão moral e agir como bons exemplos para a sociedade, e não agir em nome de seus próprios interesses", diz Göran Lambertz.
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