sexta-feira, 7 de dezembro de 2018
ESTRATÉGIA - A campanha de Lula, o candidato que nunca existiu: os “institutos de pesquisa” lhe davam a liderança. |
Mais do que tudo, talvez, a mídia não chegou nem perto de entender uma
realidade evidente: a maioria do público brasileiro, nos dias de hoje,
pensa basicamente o contrário do que pensam os jornalistas e os donos
dos veículos de comunicação. Texto certeiro de J. R. Guzzo, publicado na edição de Veja que estará nas bancas neste final de semana:
É fácil saber o que aconteceria com uma empresa de ônibus que vende
nos seus guichês da rodoviária de São Paulo uma passagem para Belo
Horizonte, por exemplo, e leva o passageiro para Piracicaba. Vive
fazendo isso, aliás, pois a sua grande dificuldade é anunciar no
letreiro a cidade para onde o ônibus realmente está indo. O que
aconteceria é o seguinte: os passageiros, um dia, não iriam mais viajar
com essa companhia para lugar nenhum. Chega, diriam eles — assim não dá
mais. Da mesma forma, se uma pessoa costuma lhe dizer coisas que nunca
acontecem, ou simplesmente vive contando mentiras, o mais provável é que
você deixe de prestar atenção no que ela diz. Num processo na Justiça,
igualmente, uma alegação falsa feita por uma das partes pode lhe causar
sérios problemas: todo o resto da sua versão passa a correr o risco de
ficar sob suspeita. Para sorte de muita gente, porém, nem tudo funciona
assim. A memória dos seus clientes é mais tolerante, ou mais fugaz — e,
portanto, mais disposta a esquecer que lhes disseram uma coisa que não
aconteceu, ou disseram uma coisa e aconteceu outra, ou, ainda, que
aconteceu justamente o contrário do que lhes foi dito que iria
acontecer. Faz parte dessa gente de sorte, hoje em dia, a mídia
brasileira.
Mas será mesmo sorte — ou, ao contrário, é um problema cinco-
estrelas que ninguém está vendo direito? Os leitores, ouvintes e
telespectadores podem estar em relativo silêncio, mas há sinais de que a
tolerância do público a pagar passagens para uma cidade e ser
depositado em outra está deixando de ser uma proteção garantida para a
imprensa. Ninguém reclama em praça pública — mas o consumidor de
informação nunca reclama em praça pública. Um dia ele simplesmente vai
embora, sem dizer até logo, e não volta mais. Quando os proprietários de
órgãos de comunicação, e os jornalistas que trabalham neles, percebem o
que aconteceu, já é tarde. A menos que tenham o suporte de uma
fortaleza financeira em seu conjunto de negócios, podem encomendar o
caixão — e os cemitérios brasileiros de jornais, revistas, rádios,
televisões e, ultimamente, páginas eletrônicas que se imaginavam a
última palavra em matéria de jornalismo moderno estão cada vez mais
lotados. A diminuição do público interessado em acompanhar o que a mídia
lhe diz não começou agora, é claro. Há dez ou quinze anos a migração
passou a ganhar volume — e não parou mais, por motivos que já foram
explicados em milhões de palavras, a maioria delas, aliás, lida por bem
pouca gente. Mas, pelo menos no caso do Brasil, provavelmente não tinha
havido até esta última campanha eleitoral uma oportunidade tão clara de
medir o tamanho da distância, a cada dia maior, que separa hoje o que a
imprensa imprime ou põe no ar daquilo que existe nos corações, mentes e
sentimentos da audiência. É um abismo. A mídia diz uma coisa. O público
acha o contrário. A mídia anuncia que vão acontecer os fatos A, B e C.
Não acontece nenhum dos três. A mídia quer que as pessoas façam isso ou
aquilo. As pessoas fazem exatamente o oposto.
Para que ficar tentando esconder a realidade? O que acaba de
acontecer na eleição, muito simplesmente, foi o maior fiasco que os
meios de comunicação brasileiros já viveram em sua história recente. É
melhor assinar logo o boletim de ocorrência, admitir que alguma coisa
deu horrivelmente errado e pensar, talvez, se não seria o caso de
averiguar quais falhas foram cometidas. Por que a mídia ignorou a lista
de desejos, claríssima, que a maioria da população estava apresentando
aos candidatos? Por que não tentou, em nenhum momento, entender por que
um número cada vez maior de eleitores se inclinava a votar em Jair
Bolsonaro? Durante meses seguidos, os comunicadores brasileiros tentaram
provar no noticiário que coisas trágicas iriam acontecer para todos se
Bolsonaro continuasse indo adiante — mas nunca pensaram na possibilidade
de que milhões de brasileiros estivessem achando que essas coisas
trágicas, justamente essas, eram as que consideravam as mais certas para
o país. A mídia, na verdade, convenceu a si própria de que não estava
numa cobertura jornalística, e sim numa luta do bem contra o mal. Em vez
de reportar, passou a torcer e a trabalhar por um lado na campanha,
convencida de ter consigo a “superioridade moral”. Resultado: disputou
uma eleição contra Jair Bolsonaro e perdeu, por mais de 10 milhões de
votos de diferença.
Não é função dos órgãos de comunicação disputar eleições, é claro,
muito menos perder. É o pior dos mundos. Já que decidiram fazer a coisa
errada, engajando o seu trabalho a favor de um lado e contra o outro,
deveriam, pelo menos, evitar o papelão de acabar surrados pelo candidato
que declararam “inimigo” e por seus quase 58 milhões de eleitores.
Isso, para usar português claro, significa que você está falando, mas
ninguém está ouvindo o que você diz — ou ouvindo tão pouco que não faz
diferença nenhuma. É a tal “credibilidade” — a sua capacidade de ser
acreditado entre os semelhantes, ou levado a sério por eles. No caso da
eleição de Jair Bolsonaro, a credibilidade foi para o espaço. Como
passar seis meses seguidos ou mais fazendo uma operação contínua contra o
candidato menos equipado materialmente para disputar a campanha
eleitoral e constatar, no dia da apuração, que todo esse esforço não
resultou em nada? A conclusão é que o público está pouco ligando para o
que a mídia lhe diz. A partir daí, ela se torna irrelevante na vida
real. Fica como arquibancada em jogo de futebol: xinga o juiz de ladrão e
o técnico de burro, mas não altera em nada o resultado do placar.
Os fatos estão aí, confirmando a futilidade de projetos para ganhar
eleições livres, hoje em dia, sem combinar o resultado com as pessoas de
carne e osso que vão votar. Inventou-se como estratégia, desde o
começo, que o ex-presidente Lula era candidato à Presidência da
República em 2018 — não apenas isso, a mídia garantia que ele era o
favorito disparado para ganhar. Foi uma falsificação integral. Lula não
podia ser candidato, porque estava e está na cadeia, condenado a mais de
doze anos como ladrão em duas instâncias da Justiça brasileira. Mas os
“institutos de pesquisa” asseguravam que Lula tinha “40% dos votos”, que
havia “avançado mais X pontos”, que ganhava de todos os outros
candidatos — e a imprensa, em peso, reproduzia essa fábula em suas
manchetes. Só quando o próprio Lula, em pessoa, anunciou que não era
candidato, as pesquisas retiraram o seu nome da lista. No meio-tempo,
manteve-se viva por vários dias a ficção de que “a ONU” iria obrigar o
Brasil a aceitar a candidatura — chegaram a convocar o STF para julgar
essa aberração. Sai Lula, entra Fernando Haddad. Sete dias antes da
eleição, uma das “pesquisas” deu Haddad com “22%”, numa “ascensão” que
só poderia levá-lo, matematicamente, à vitória. Para não deixar dúvidas,
todos os meios de comunicação repetiram até o dia da eleição que
Bolsonaro perderia de “todos os outros candidatos” no segundo turno, em
“todas as pesquisas”. Deu-se o exato contrário.
Nos dias finais da campanha apareceu uma reportagem tentando mostrar
que haviam sido feitas doações para que Bolsonaro pagasse uma campanha
de notícias falsas contra os adversários — em cima disso, pediu-se a
“anulação do primeiro turno”, inclusive com atrizes da Globo exigindo,
num vídeo eleitoral especialmente irado, “uma atitude” do Supremo.
Falsa, mesmo, só a reportagem — reproduzida maciçamente através da
imprensa até morrer de inanição, por ausência de fatos, de pé e de
cabeça. A brutal tentativa de homicídio que Bolsonaro sofreu em Juiz de
Fora foi geralmente tratada como uma notícia menor, fruto natural do
“ódio” trazido à campanha em grande parte por ele próprio. Até hoje, a
maioria dos jornalistas se refere ao episódio como “a facada”; é
jornalisticamente incorreto escrever que um criminoso quis assassinar
Bolsonaro. Desde o início da campanha, os mais potentes cérebros da
análise política do Brasil deram como fato científico que a candidatura
de Bolsonaro iria “desaparecer” assim que começasse o horário eleitoral
obrigatório na TV, no qual ele contava com poucos segundos. No mundo dos
fatos, Bolsonaro ganhou a eleição — e o candidato que tinha o maior
tempo de TV não conseguiu nem 5% dos votos.
Mais do que tudo, talvez, a mídia não chegou nem perto de entender
uma realidade evidente: a maioria do público brasileiro, nos dias de
hoje, pensa basicamente o contrário do que pensam os jornalistas e os
donos dos veículos de comunicação. Tem valores opostos aos dos
comunicadores. Aprova o que a mídia condena. Condena o que a mídia
aprova. É a favor da polícia, que a imprensa considera inimiga dos
pobres, e contra os bandidos, que os jornalistas consideram vítimas da
injustiça social. Os heróis da imprensa, como a vereadora Marielle, não
são os heróis da população. E nem o que a imprensa divulga maciçamente
como sendo problemas essenciais para o Brasil é percebido da mesma
maneira pela massa — homofobia, racismo, fascismo, machismo,
“agrotóxicos”, terras indígenas, torturas cometidas quarenta anos atrás
são vistos mais com indiferença do que com indignação. Em questões como a
conveniência de eliminar as diferenças entre os gêneros masculino e
feminino, deixando em segundo plano as leis da biologia, mídia e maioria
estão simplesmente em posições opostas.
Naturalmente, há um preço a pagar por tudo isso. Ele aparece na
dificuldade cada vez maior, por parte da mídia, de fazer avanços na
única questão que realmente interessa: a batalha pelo público. Ninguém
tem ouvido histórias de veículos que triplicaram seus leitores ou sua
audiência nos últimos anos; é perfeitamente óbvio, assim, que o método
que vem sendo utilizado pela mídia para fazer o seu trabalho está dando
errado. Como poderia estar dando certo se os resultados são um desastre?
O aviso das eleições está aí. A televisão, em seu conjunto, deixou de
existir como um fator de importância numa eleição brasileira — é como se
tivesse sido jogada uma bomba de hidrogênio em cima dela.
Até quatro anos atrás era no programa eleitoral obrigatório que tudo
se decidia numa campanha; hoje ele não vale nada. Os “institutos de
pesquisa” também podem publicar os números que bem entenderem na mídia.
Não são capazes de mudar coisa alguma. Não quando dizem que Dilma
Rousseff seria “a senadora mais votada do Brasil” — e ela acaba em
quarto lugar. Os meios de comunicação, enfim, fizeram uma guerra sem
descanso contra Bolsonaro — e sua influência foi absolutamente nula no
resultado da eleição.
A internet, o Facebook, o Twitter e o restante do arsenal nuclear que
a tecnologia eletrônica despeja a cada momento sobre o universo das
comunicações mudaram a política no Brasil em 2018. Há muitos anos vêm
transformando a imprensa num animal cada vez mais diferente de tudo o
que possa ter sido — e não há sinais de que essa história venha a tomar
um novo rumo. Em momentos como este, é uma tragédia que a imprensa
brasileira venha demonstrando, no conjunto daquilo que publica em seus
veículos, uma inteligência inferior à inteligência média dos seus
leitores, ouvintes e espectadores. Desse jeito, torna-se cada vez mais
inútil para eles. Da mesma maneira, é complicado manter-se em estado de
hostilidade eterna perante o público. É como dizer a todos: “Não
queremos mais você por aqui. Vá ler outra coisa. Pista”. Ninguém vai
chegar a lugar nenhum por aí.DO O.TAMBOSI
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