quinta-feira, 12 de julho de 2018
Atitudes do Executivo, Legislativo e Judiciário traem e desmoralizam o Estado de Direito, escreve o jornalista José Nêumanne no Estadão:
A
incrível e absurda malandragem perpetrada por três representantes do
povo de um partido que diz servir aos trabalhadores e respeitar a
democracia, com a cumplicidade de um desembargador federal, no primeiro
domingo da Copa da Rússia sem o Brasil, expôs a explícita desmoralização
do nosso Estado de Direito. Finda a semana em que os flagrantes delitos
no registro espúrio de sindicatos no Ministério do Trabalho afundaram o
Poder Executivo no pântano do descrédito, a manobra escusa tentada para
retirar Lula da cela pela porta dos fundos foi a gota d’água que
inundou as enlameadas cavernas do Judiciário.
Às
vésperas de agosto, mês tido como “do desgosto”, o cidadão brasileiro já
tinha sido exposto a sórdidos truques de parlamentares, legitimados
para legislar em nome do povo. O projeto do deputado Nelson Marquezelli
(PTB-SP) perdoando as dívidas das multas de caminhoneiros e
transportadoras que provocaram pane seca e desabastecimento de
combustíveis e víveres foi incluído no relatório de Osmar Terra (MDB-PR)
que torna o frete mínimo obrigatório. Essa iniciativa do Legislativo,
com as bênçãos do Executivo, que distribui verbas do depauperado erário a
mancheias entre deputados das bancadas governistas, reproduz hoje a
mesma relação sórdida já antes condenada pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). O arrombamento da ordem constitucional, que consagra o mercado
livre, para resolver uma crise criada pela ousadia dos chantagistas, que
expuseram a fragilidade de um governo impopular e desacreditado, não
passa de uma versão contemporânea do mensalão, que abriu a temporada de
caça aos gatunos.
Durante
curto interregno, a cúpula do Judiciário apoiou o combate à corrupção,
efetuado por uma geração competente e proba de policiais, procuradores,
juízes e desembargadores federais das instâncias iniciais. Isso deu à
população espoliada a sensação de que a Justiça sanearia os altos e
podres Poderes da República. Mas tal aliança durou muito pouco.
Logo as
brechas, pelas quais criminosos de colarinho-branco passavam para ficar
fora do alcance da lei, se abriram nas divisões internas da cúpula da
atividade judiciária, em que boas iniciativas sempre sucumbiram ao
corporativismo e à corrupção. Essas câmaras escuras são percorridas
mercê da negação do decantado espírito da colegialidade, do qual somente
uma ministra da “Suprema Corte”, Rosa Weber, parece ser adepta. Ao
contrário dela, os outros quatro que deram votos vencidos na decisão
pela jurisprudência que autoriza prisão de condenados em segunda
instância – a dupla Mello e de Mello, Lewandowski e Toffoli – aliaram-se
ao pagão novo Gilmar. E a desafiam em capciosas decisões monocráticas.
A
tabelinha Lava Jato-STF não resistiu à nada gloriosa entrada dos tucanos
nas listas dos delatados da operação. Isso causou a guinada de 180
graus de Gilmar, dos que apoiaram a jurisprudência firmada em três
votações de 2016 para os adeptos da distorção de preceitos
constitucionais. Essa prática é antiga. Tendo confessado que redigiu
artigos da Constituição que não foram aprovados pela maioria do
plenário, Nelson Jobim ora é tido por alguns como presidenciável da
conciliação em outubro. E o então presidente do STF Ricardo Lewandowski
rasurou cinicamente o artigo da Constituição que proíbe condenados em
impeachment de exercer cargo público por oito anos. A canetada, sugerida
por Renan Calheiros, permite hoje que Dilma se candidate ao Senado pelo
PT.
Quem não
redigiu nem rasurou a Carta Magna apela para a leitura errada do artigo
5.º, segundo o qual ninguém é “considerado culpado antes do trânsito em
julgado” de seu processo. A extensão da isenção da culpa à proibição da
prisão ou à presunção de inocência, finda na segunda instância, não
está no dicionário, mas pode ser incluída, mercê do “poder da grana, que
ergue e destrói coisas belas” (apud Caetano Veloso).
Recentemente,
o ministro Mello soltou traficantes condenados em segunda instância com
a mesma desfaçatez com que Gilmar concedeu habeas corpus a clientes da
banca da mulher. E Toffoli devolveu o ex-chefe Dirceu, condenado em
segunda instância a mais de 30 anos de prisão, ao doce lar. Atribui-se a
esse duas vezes apenado (no mensalão e no petrolão) o planejamento da
molecagem do desembargador do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região
(TRF-4) Rogério Favreto, por ele indicado, a desafiar os colegas, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF, mandando soltar o mais
famoso presidiário do Brasil.
Si non è
vero, è ben trovato (se não é verdade é bem pensado), diria don Vito
Corleone, O Poderoso Chefão da ficção de Mário Puzo. A fresta parecia
promissora para o trio Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous,
dois deputados federais e um levado à vaga aberta pela pressão do
dirigente Quaquá na prefeitura do Rio. Um dos 27 desembargadores do
TRF-4 em seu primeiro plantão teria de ser mais sensível à ideia
“original” de que a pré-candidatura de Lula à Presidência seria o fato
novo para lhe permitir conceder o habeas corpus pedido à sorrelfa. Meia
hora depois do início do plantão do simpatizante na sexta-feira, deram à
luz o mostrengo.
Como
Toffoli, Favreto serviu a Dirceu. E como Toffoli mandou a jurisprudência
da prisão pós-segunda instância às favas. Não havia mais a
possibilidade de contar com o relaxamento da classificação do Brasil
para a semifinal da Copa, pois a seleção de Tite fora eliminada duas
horas e meia antes. Não é correto, então, perguntar se não combinaram
com os belgas e pensar que a molecagem, de que a defesa de Lula se
fingiu distante, passaria incólume na euforia geral.
Mas
quando setembro vier, Toffoli, que como Favreto nunca foi juiz, será
presidente do STF e terá à mão o martelo para triturar a jurisprudência
dos colegas, Moro, o TRF-4 e o STJ. E retirar Lula da cadeia. Ingênuo
será pensar que ele seria menos cínico que Favreto.
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