quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Cármen Lúcia vê ‘arbítrio’ em indulto de Temer


A ministra Cármen Lúcia foi implacável com o professor de direito constitucional Michel Temer ao suspender os efeitos do decreto de indulto natalino editado por ele em 22 de dezembro. Endossando integralmente os argumentos da procuradora-geral da República Raquel Dodge, a presidente do Supremo Tribunal Federal considerou plausíveis as alegações de que Temer incorreu em desvio de finalidade, invadiu competências do Legislativo e do Judiciário e favoreceu a impunidade de criminosos do colarinho branco. “O indulto constitucionalmente previsto é legitimo apenas se estiver em consonância com a finalidade juridicamente estabelecida”, anotou a ministra a certa altura. “Fora daí é arbítrio.”
O decreto de Temer foi de uma generosidade sem precedentes. Perdoou 80% das penas e 100% das multas de condenados por crimes não violentos —entre eles a corrupção e a lavagem de dinheiro. Diferentemente de decretos anteriores que limitavam o indulto aos condenados a menos de 12 anos de cadeia, a anistia de Temer alcançou todos os sentenciados, independentemente do tamanho de suas penas.
“Indulto não é prêmio ao criminoso nem tolerância ao crime”, lecionou Cármen Lúcia em seu despacho. “Nem pode ser ato de benemerência ou complacência com o delito, mas perdão ao que, tendo-o praticado e por ele respondido em parte, pode voltar a reconciliar-se com a ordem jurídica posta.”
A ministra acrescentou: “Se não for adotado na forma da legislação vigente transmuda-se o indulto em indolência com o crime e insensibilidade com a apreensão social que crê no direito de uma sociedade justa e na qual o erro é punido e o direito respeitado. Mas a humanidade com os que purgaram pelo seu erro criminal, na forma do direito estabelecido, encontra o veio do perdão pela nova chance oferecida ao condenado.”
Cármen Lúcia abriu aspas para Ruy Barbosa ao ensinar que o espírito que deve guiar um presidente na hora de conceder indulto é o espírito público. “Todos os Chefes de Estado exercem essa função melindrosíssima com o sentimento de uma grande responsabilidade, cercando-se de todas as cautelas, para não a converter em valhacouto dos maus e escândalo dos bons.”
A suspensão do indulto de Temer foi determinada por Cármen Lúcia em caráter liminar (provisório). Plantonista no recesso do Judiciário, a ministra considerou que a urgência justificava o atendimento do pedido da procuradora Raquel Dodge. Em fevereiro, quando terminar o recesso, o processo irá à mesa do relator, ministro Luís Roberto Barroso. Escolhido por sorteio, ele redigirá o voto a ser submetido ao plenário do Supremo, dono da palavra final sobre a inconstitucionalidade apontada pela Procuradoria.
Ecoando Raquel Dodge, Cármen Lúcia considerou que há indícios suficientes para considerar que a natureza humanitária do indulto foi convertida no decreto editado por Temer em “benemerência sem causa e, portanto, sem fundamento jurídico válido.” Considerou-se que o decreto superou “os limites do indulto”. Além de desguarnecer o processo penal, Temer invadiu a “competência típica e primária dos poderes Legislativo e Judiciário.” No português das ruas: Temer foi além de suas sandálias, ultrapassando os limites da Constituição e atuando como juiz.
A ministra avaliou também que o decreto presidencial deu “concretude à situação de impunidade, em especial aos denominados ‘crimes de colarinho branco’, desguarnecendo o erário e a sociedade de providências legais voltadas a coibir a atuação deletéria de sujeitos descompromissados com valores éticos e com o interesse público garantidores pela integridade do sistema jurídico.”
A presidente da Suprema Corte olhou de esguelha para a anistia que Temer concedeu às multas impostas aos criminosos. Para ela, além impor prejuízos à sociedade, a generosidade do presidente com o bolso dos bandidos não orna com o caráter humanitário do instituto. “Indulto de pena pecuniária significa, num primeiro exame, relativização da jurisdição e agravo à sociedade, afastando-se da natureza do indulto, de sua condição de bem feito para melhorar a convivência social segundo o direito.”
Recordou, de resto, que o Supremo já “firmou jurisprudência no sentido de que, para que o condenado possa obter benefício carcerário, incluído a progressão de regime por exemplo, faz-se imprescindível o adimplemento da pena de multa, salvo motivo justificado, o que bem demonstra a inadequação de se prever indulto para tais situações.”
O despacho de Cármen Lúcia mencionou outras duas excentricidades do decreto de Temer. Numa, o presidente concedia indulto até mesmo para pessoas brindadas com a “suspensão condicional do processo”. Noutra, estendeu a anistia a condenados já beneficidos com “penas alternativas”.
No primeiro caso, anotou a presidente do Supremo, o perdão a quem ainda nem foi sentenciado corresponderia a uma “extinção antecipada da punibilidade”. No segundo caso, seriam beneficiados condenados que foram contemplados anteriormente com providências que “já caracterizariam um favorecimento de política criminal” —por exemplo: a substituição da prisão por penas privativas de direitos ou a concessão de liberdade condicional.
Não bastasse o fato de ser considerado um constitucionalista de mostruário, Temer foi assessorado na edição do decreto de indulto pela Casa Civil da Presidência e pelo Ministério da Justiça. Se prevalecer o ponto de vista de Cármen Lúcia e Raquel Dodge, ficará demonstrado que errar é humano. Mas escolher o erro suspeitamente planejado por equipes de duas pastas ministeriais, só mesmo um presidente como Temer, que carrega duas denúncias criminais sobre os ombros e está cercado de auxiliares encrencados na Lava Jato.
Josias de Souza

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