Josias de Souza
Em discurso feito na noite desta quarta-feira (1º), a procuradora-geral da República Raquel Dodge disse que sua agenda inclui “a luta pelo fim da impunidade”. Para que isso ocorra, ela acrescentou, será necessário defender no Supremo Tribunal Federal a manutenção da decisão que autorizou a prisão a partir das condenações na segunda instância do Judiciário. Dodge falou na abertura do 34º Encontro Nacional dos Procuradores da República, em Porto de Galinhas (PE).
O Supremo discutirá o tema pela terceira vez. Há chances reais de recuo. Ministros que votaram a favor da abertura das celas já na segunda instância ensaiam uma meia-volta. Se isso acontecer, disse Raquel Dodge, a credibilidade do Judiciário será tisnada.
Dodge declarou: “O sistema de precedentes vinculantes adotado no Brasil exige que a decisão do Pleno do STF, que afirmou a constitucionalidade da prisão após a segunda instância, seja respeitada, sob pena de reversão da credibilidade nas instituições, como capazes de fazer a entrega da prestação jurisdicional de modo seguro, coerente e célere.” Presente ao evento, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, também defendeu a prisão na segunda instância.
Num instante em que o Ministério Público Federal aconselha o governo a revogar a portaria que dificultou o combate ao trabalho análogo à escravidão, Raquel Dodge injetou o vocábulo “escravos” no seu pronunciamento. Disse que é papel da instituição que dirige proteger os “escravos de outros seres humanos” e combater “os “escravos da ganância.” Vai abaixo a íntegra do pronunciamento da procuradora-geral da República:
Senhor Presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República Queridos amigos do Ministério Público, caríssimos familiares, nosso esteio em todas as horas, nas amenas e nas mais difíceis,
É uma alegria estar entre amigos e na companhia das pessoas que dividem conosco o amor pelo Ministério Público; e que acreditam que, ao prestarmos o serviço público que a Constituição nos atribuiu, estamos ajudando a melhorar a vida de todos os brasileiros, seja quando defendemos direitos, bens e valores constitucionais, seja quando cuidamos da qualidade das políticas públicas.
Agradeço muito especialmente à ANPR pelo convite para participar deste encontro. Cercaram-me de muitos cuidados e gentilezas, que recebo e agradeço de coração, pois sei que cuidam também de cada um de vocês, como há tantos anos, para que esta nossa reunião anual seja um momento muito especial, de convivência fraterna e de cultivo do sentimento de pertencimento a esta grande instituição que é o Ministério Público Federal. É aqui que nos reencontramos, cultivamos nossa amizade, estreitamos nossos laços e aproximamos nossas famílias, em uma estratégia necessária para dividirmos as dificuldades e também o prazer que é ser membro do Ministério Público.
A ANPR elaborou este ano, mais uma vez, a lista tríplice para o cargo de Procurador-Geral da República, credenciando-se para que uma dentre os mais votados pelos Procuradores da República viesse a ocupar este honroso cargo. Isto se deve à credibilidade que a ANPR angariou ao longo dos anos, em uma história sempre coerente de luta pela democracia, pelo vigor das instituições públicas, pelo aprimoramento das leis e, sobretudo, pela independência e autonomia do Ministério Público e de seus membros. Agradeço à ANPR e a cada um pelo êxito desta medida que reforça a autonomia da instituição.
Devo dizer-lhes que tenho mantido um diálogo frequente e estreito com o Presidente e a Diretoria da ANPR e que sempre estarei atenta a toda oportunidade para promover uma aproximação transparente e leal em relação a todos os temas que exigem nossa atenção comum. Esta é a minha disposição, pela simples razão de que considero a ANPR uma das mais importantes instituições brasileiras, em razão de sua luta pela democracia, iniciada quando ainda não a tínhamos, e também por seu incansável trabalho de fortalecimento das instituições democráticas.
É uma honra estar aqui.
Ninguém acima da lei, ninguém abaixo da lei
O zelo pela dignidade humana pode ser expresso neste mote. Ninguém é superior a outrem, a ponto de não ser tocado pela lei. Ninguém é inferior a outrem, a ponto de sequer ser protegido pela lei.
Escravos e corruptos nos lembram que, em uma sociedade profundamente desigual, e onde o patrimônio público, comum a todos, tem sido corrompido na elevada proporção revelada pela Lavajato, o Ministério Público deve sempre agir com firmeza e coragem no cumprimento de suas atribuições cíveis e criminais, sob as balizas da lei. Há os que se tornam escravos de outros seres humanos porque são vulneráveis à exploração, não têm outra esperança e carecem do apoio necessário para romper o gueto da desigualdade. Há os corruptos, que são escravos da ganância e perpetuadores da desigualdade, porque suas condutas não só desviam recursos públicos necessários para socorrer os mais necessitados, como promovem a nociva ideia de que alguns estão acima da lei.
Estavam. Aos poucos, por causa da firmeza de muitas instituições, dentre elas o Ministério Público, a defesa da dignidade humana e de uma sociedade mais honesta e mais justa abre espaço, no debate público, para uma agenda diferente no país: cobra-se resultado, transparência e punição. Esta é uma agenda que impulsiona transformação para uma situação humana e social melhor para todos os cidadãos.
Este é o ponto essencial do trabalho do Ministério Público, zelar pela dignidade humana, pela integridade dos indivíduos, para que suas diferenças de raça, credo, religião ou opção sexual não dê ensejo à discriminação, mas seja celebrada como oportunidade de livre expressão de sua personalidade e fator relevante para construção de uma sociedade plural e fraterna.
É na dignidade humana que encontramos o elemento da nossa igualdade. Somos iguais em dignidade. Esta poderosa ideia não viceja em muitos países no mundo contemporâneo e, mesmo no nosso, encontra obstáculos que permitem o bullying em escolas, a violência no campo, o assassinato de índios, a falta de saneamento nas cidades, serviços de educação sem qualidade, dificuldade de acesso a água potável ou a serviços de saúde adequados e necessários.
Para cuidar de tantos problemas que atingem os brasileiros, o Ministério Público precisa ter uma agenda ampla, que inclua a permanente defesa de direitos fundamentais e também ações criminais, pois tanto precisamos promover a prevenção e a punição de crimes que atinge os bens jurídicos mais importantes , como precisamos cuidar da segurança pública, defender o direito de minorias, zelar por políticas públicas de qualidade, pela liberdade de expressão, pela democracia, sempre observando o devido processo legal, o duplo grau de jurisdição, o princípio da presunção de inocência e a dignidade da pessoa humana, que são conquistas da civilização moderna necessárias em uma sociedade justa e igualitária.
Nossa agenda mais recente deve incluir a luta pelo fim da impunidade. Para isto, é necessário defender no Supremo Tribunal Federal o início da execução da pena quando esgotado o duplo grau de jurisdição, com a condenação do réu pelo Tribunal intermediário. O sistema de precedentes vinculantes adotado no Brasil exige que a decisão do Pleno do STF, que afirmou a constitucionalidade da prisão após a segunda instância, seja respeitada, sob pena de reversão da credibilidade nas instituições, como capazes de fazer a entrega da prestação jurisdicional de modo seguro, coerente e célere.
Em uma sociedade em que todos são iguais em dignidade e direitos, precisamos cuidar para que nossos bens comuns não sejam destruídos. Um dos principais é a água, que começa a faltar nas cidades e no meio rural. Falta água potável. Grandes rios urbanos estão indevidamente poluídos, por saneamento urbano inadequado e pelo descontrole da poluição. O risco de rompimento de grandes barragens ameaça outros rios, enquanto o desastre de Mariana ainda não resultou em punição aos infratores nem em indenização das famílias. O desmatamento tem aumentado e precisa ser imediatamente contido, porque são rios voadores, segundo o INPE, que mantém a floresta. Estas são situações, dentre tantas outras, que precisam ser revertidas com a atuação zelosa do Ministério Público.
Precisamos manter nosso trabalho contra a corrupção, para que os esforços seguros feitos últimos anos permaneçam nos vindouros, para atingir uma inabalável cultura de honestidade no uso do dinheiro público.
Iniciamos, neste mês de outubro, uma data muito especial, de contagem dos trinta anos do novo Ministério Público, criado pela Constituição de 1988. Ao longo dos próximos doze meses, relembraremos as conquistas de cada área de atuação do Ministério Público Federal, para compreendermos com mais clareza o impacto de nosso trabalho e o papel transformador que ele tem sobre a sociedade e a vida das pessoas. Queremos saber como temos contribuído e onde podemos melhorar, de olho nos próximos trintas anos.
Temos de começar reconhecendo publicamente e agradecendo aos fundadores da ANPR, que são também os fundadores do novo Ministério Público, por sua atitude serena e visionária. Muitos estão nesta sala, a nos lembrar, com discrição mas persistentemente, a importância das três garantias constitucionais e da autonomia do Ministério Público. Nunca é demais declarar que, não fosse esta visão, não estaríamos aqui hoje com a disposição de prosseguir no trabalho que eles iniciaram com a grande responsabilidade e a esperança de que nosso legado, às gerações futuras, honre o que deles recebemos.
E ao fim, possamos juntos dizer, como no mote que abracei no caminho que me conduziu ao mandato de Procuradora-Geral da República, ninguém acima da lei, ninguém abaixo da lei.
Um abraço amigo, cordial e agradecido a cada um. Uma boa confraternização para todos.
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