Josias de Souza
Ao sonegar a autorização para que o Supremo Tribunal Federal analise as denúncias da Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer, a Câmara livra o presidente da abertura de ações penais. Mas os deputados não podem impedir que Temer seja alvejado por investigações criminais. Autoridades ouvidas pelo blog avaliam que o aprofundamento das apurações pode ser indispensável para checar indícios e preservar as provas que irão compor os processos que Temer terá de responder depois que deixar a Presidência.
A Câmara já sobrestou a denúncia em que Temer foi acusado de corrupção passiva. Estima-se que, até o final do mês, os deputados congelarão também a denúncia que atribui ao presidente os crimes de organização criminosa e obstrução da Justiça. De mãos atadas, os ministros do Supremo não podem converter as denúncias em ações penais. Algo que transformaria Temer em réu e provocaria o seu afastamento do cargo de presidente por pelo menos 180 dias, até o julgamento das ações. Será necessário, porém, definir o que fazer com os processos, que não se extinguem.
Um ministro do Supremo declarou ao blog que a continuidade das investigações é um “imperativo processual”. Segundo ele, o próprio Ministério Público Federal deve pedir à Suprema Corte autorização para realizar novas diligências. Ouvida, a nova procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirmou por meio de sua assessoria que “não vai adiantar o posicionamento” que planeja adotar. Prefere aguardar pela decisão da Câmara em relação à segunda denúncia formulada contra Temer por Rodrigo Janot, seu antecessor na chefia do Ministério Público.
No último mês de junho, quando ainda era apenas uma candidata à sucessão de Janot, Raquel Dodge discutiu num debate a hipótese de investigar o presidente. Divergiu da colega Sandra Cureau sobre a interpretação do paragrafo 4º do artigo 86 da Constituição, que anota: “O presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.”
Para Sandra Cureou, o texto constitucional protege o presidente de investigações relativas a crimes praticados antes do início do mandato. Raquel Dodge sustentou na época que seria possível promover investigações contra o presidente, desde que a Procuradoria se abstivesse de formular uma denúncia antes do término do mandato.
Raquel Dodge trocou seu raciocínio em miúdos: “Me refiro à possibilidade [de investigação] com os argumentos de que ninguém está acima da lei e, também, para preservar os vestígios e as provas. Mas isso deve ser feito com cautela, para não manchar o mandato do presidente da República.” Por analogia, pode-se intuir que Dodge, agora acomodada na poltrona de procuradora-geral, terá a mesma preocupação com a preservação de vestígios e provas relacionadas às denúncias já formuladas contra Temer.
Ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, o jurista Carlos Ayres Britto disse ao blog o seguinte: “Ninguém, nem parlamentar nem o presidente da República, está a salvo de investigações criminais. Por quê? O objeto da investigação, o crime a apurar, a autoria a elucidar, tudo isso pode se esfumar, pode se dissipar, pode desaparecer no tempo. É sagrado o objeto da investigação. Ninguém pode ser blindado quanto a essa possibilidade.”
Ayres Britto explicou que a Constituição faz uma clara distinção entre investigação e ação penal. “Se você olhar o artigo 5º, item XII, verá que há ali uma distinção que explica tudo. Nesse trecho, a Constituição, quando autoriza a quebra do sigilo de correspondência e da comunicação telefônica, ela diz que é ‘por ordem judicial’, para fins de ‘investigação criminal ou instrução processual penal.’ Veja que são coisas diferentes. A investigação criminal antecede o oferecimento da denúncia. A investigação vem antes do processo penal propriamente dito. Uma coisa é investigação preliminar, outra coisa é o processo penal já instaurado, com o nome de instrução.”
Ou seja, conforme a explicação de Ayres Britto, uma autorização do Supremo para a realização de investigações contra Temer não comprometeria a decisão da Câmara de sobrestar a eventual abertura de ação penal contra o presidente. Visaria apenas evitar que o “objeto da investigação”, o “crime” e a “autoria” se dissipassem entre a decisão da Câmara e o término do mandato do presidente.
Relator da Lava Jato no Supremo até sua morte num acidente aéreo, o ex-ministro Teori Zavascki também fez considerações sobre o tema num despacho que assinou em 15 de maio de 2015. Nessa época, Dilma Rousseff ainda era presidente. E o PPS, partido que integrava a oposição, movera uma ação para questionar um posicionamento de Rodrigo Janot.
O então procurador-geral dizia que Dilma desfrutava de “imunidade temporária” na Lava Jato por conta do parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição, aquele trecho do texto constitucional que prevê que o presidente da República, enquanto estiver exercendo o mandato, “não pode ser responsabilidado por atos estranhos ao exercício de suas funções.”
No seu despacho, Teori aderiu à tese segundo a qual o presidente não está imune a investigações. Ele evocou a jurisprudência do próprio Supremo: “Não se nega que há entendimento desta Suprema Corte no sentido de que a cláusula de exclusão de responsabilidade prevista no parágrafo 4º do artigo 86 da Constituição não inviabiliza, se for o caso, a instauração de procedimento meramente investigatório, destinado a formar ou a preservar a base probatória para uma eventual e futura demanda contra o chefe do Poder Executivo.” (veja reprodução abaixo)
Embora tenha dado razão ao PPS, Teori afirmou em sua decisão que, no caso de Dilma, Janot alegara que, naquela ocasião, não havia indícios mínimos de crime que justificassem a abertura de inquérito contra o presidente. Assim, o Supremo deixaria de agir não por vedação constitucional, mas por falta de provocação da Procuradoria. “Cabe exclusivamente ao procurador-geral da República requerer abertura de inquérito, oferecer a inicial acusatória e propugnar medidas investigatórias”, justificou-se o então relator da Lava Jato.
Em relação a Temer a situação é outra. Afora as duas denúncias formuladas por Janot, ambas referentes à delação da JBS, o presidente foi mencionado em outras duas circunstâncias, ambas sujeitas a investigação. Numa o delator Márcio Faria, ex-executivo da Odebrecht, disse que Temer participou de uma reunião em seu escritório em São Paulo, em 15 de julho de 2010.
Neste encontro, disse o delator, discutiu-se a troca de dinheiro por favorecimento à empreiteira. Participaram também da conversa os ex-presidentes da Câmara Henrique Eduardo Alves e Eduardo Cunha. Ambos estão presos. Ouvido na ocasião em que o tema ganhou as manchetes, Temer reconheceu que houve o encontro. Disse que o interlocutor manifestara o interesse em colaborar financeiramente com o PMDB. Alegou, porém, que a reunião foi rápida e “não se falou em doação nem em obras da Petrobras”.
Temer também foi mencionado em inquérito que envolve dois de seus ministros: Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência). Substituto de Teori na relatoria da Lava Jato, o ministro Edson Fachin já escreveu sobre a dupla: “Há fortes elementos que indicam a prática de crimes graves, consistentes na solicitação por Eliseu Padilha e Moreira Franco de recursos ilícitos em nome do PMDB e de Michel Temer, a pretexto de campanhas eleitorais.”
É contra esse pano de fundo conturbado que Raquel Dodge terá de decidir o que fazer com as investigações referentes às denúncias sobre a JBS, que a Câmara impede que virem ações, e também sobre os inquéritos relativos à delação da Odebrecht, que não avançaram porque se referem a crimes supostamente cometidos antes de Temer virar presidente.
Ensaio!
Josias de Souza
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