ÉPOCA teve acesso aos documentos que
expõem a compra sistemática de centenas de políticos brasileiros
DIEGO ESCOSTEGUY
29/07/2017 - 00h34 - Atualizado 29/07/2017 14h32
>> Trecho da reportagem de capa da ÉPOCA desta semana:
Demilton
de Castro e Florisvaldo de Oliveira estavam suando. No estacionamento
da JBS em São Paulo, eles tentavam, sem sucesso, enfiar uma volumosa
caixa de papelão num limitado porta-malas de Corolla. Plena
segunda-feira e aquele sufoco logo cedo. Manobra para cá, manobra para
lá, e nada de a caixa encaixar. Até que, num movimento feliz, ela
deslizou. Eles conseguiram. Estavam prontos para desempenhar a tarefa a
que Florisvaldo fora designado. E que ele tanto temia. Dez dias antes,
Florisvaldo despencava até uma rua na Vila Madalena, também em São
Paulo, para fazer uma espécie de “reconhecimento do local” onde teria de
entregar R$ 1 milhão em espécie. Seu chefe, o lobista Ricardo Saud,
havia encarregado Florisvaldo do delivery de propina para o então
vice-presidente da República,
Michel Temer.
O funcionário, leal prestador de serviço e carregador de mala, não
queria dar bola fora. Foi dar uma olhada em quem receberia a bufunfa. Ao
subir as escadas do prediozinho de fachada espelhada, deu de frente com
a figura inclemente de João Batista Lima Filho, o coronel faz-tudo de
Temer. “Como é que você me aparece aqui sem o dinheiro?”, intimou o
coronel. “Veio fazer reconhecimento de que, rapaz?” Florisvaldo tremeu.
“Ele me tocou de lá”, comentou com os colegas, ainda assustado. Receoso
da bronca que viria também do chefe, Florisvaldo ficou quietinho, não
contou a Saud que a entrega não fora feita.
Naquele
1º de setembro de 2014, Saud, o lobista, batia as contas dos milhões em
propina que distribuía de lá para cá, para tudo que é político de tudo
que é partido – a JBS não discriminava ninguém. “Cadê o dinheiro do
Temer?” Florisvaldo admitiu sua falha. “Tá doido, Florisvaldo? Vai
entregar esse dinheiro agora!” Lembrando da pinta do coronel, o
funcionário replicou: “Só se o Demilton for comigo”. Toca Florisvaldo e
Demilton a tentar enfiar a caixa com notas de R$ 50 no porta-malas.
Demilton, quatro décadas de empresa, é o planilheiro da JBS. A Odebrecht
tinha o drousys, o software de distribuição de propinas. A JBS tem
Demilton, exímio preenchedor de tabelas do Excel. Demilton topou ajudar o
amigo. Os dois deixaram o estacionamento da JBS ao meio-dia.
Florisvaldo, meio nervoso, tocou a campainha. Depois de instantes
angustiantes, o coronel Lima apareceu. “Trouxeram os documentos?”,
perguntou Lima. Florisvaldo já tomava fôlego para carregar a caixa de
papelão escada acima, mas o coronel ordenou que o dinheiro fosse
depositado no porta-malas do carro ao lado. “Não tem perigo com essa
parede espelhada aí?” Florisvaldo era todo paúra. “Não, fica tranquilo.”
A transação estava completa.
Aquele 1º de setembro de 2014 era
mais um dia intenso na maior compra já promovida no Brasil, segundo as
evidências disponíveis, de uma eleição – de centenas de eleições. A JBS
dos irmãos
Joesley
e Wesley Batista, maior empresa do país, viria a gastar, ou investir,
quase R$ 600 milhões naquela campanha. R$ 433 milhões em doações
oficiais, R$ 145 milhões entre pagamentos a empresas indicadas por
políticos e dinheiro vivo – tudo isso já com a Lava Jato na rua. No
raciocínio dos irmãos e de alguns de seus executivos, hoje delatores, os
pagamentos, seja pelo caixa oficial, seja por empresas indicadas pelos
políticos, seja diretamente por meio de dinheiro vivo, eram um
investimento por favores futuros ou uma quitação por favores pretéritos.
Favores não republicanos, evidentemente. Ou seja, havia uma relação de
troca entre o dinheiro que saía da empresa e o que o político fazia por
ela – mesmo que essa troca, em alguns momentos, não fosse verbalizada,
por tão corriqueira e natural num quadro de corrupção sistêmica. Havia,
em muitos casos, uma relação de troca criminosa, que se tipifica como
corrupção.
Assim que a delação da JBS veio a público, em maio, a força irrefreável das provas contra o presidente Michel Temer e o senador
Aécio Neves,
provas de crimes em andamento, assim como a crise política que se
instalou imediatamente, escamoteou o poder igualmente destrutivo dos
crimes pretéritos cometidos por executivos da JBS – e por centenas,
talvez milhares, de políticos. As provas apresentadas foram largamente
ignoradas. Como os delatores haviam fechado o acordo poucas semanas
antes, a empresa ainda não tinha levantado tudo o que poderia e deveria,
em termos de evidências para corroborar os crimes descritos nos anexos
da colaboração. Agora, a um mês do prazo estipulado para entregar à
Procuradoria-Geral da República todas as evidências necessárias, os
delatores e a JBS já dispõem de um novo e formidável conjunto de
documentos.
Nas
últimas semanas, ÉPOCA teve acesso, com exclusividade, a esses papéis
inéditos – milhares deles. Investigou os principais casos ali presentes e
obteve informações, reservadamente, junto a alguns dos envolvidos nos
episódios mais relevantes dos crimes apontados nas delações. Há
planilhões de propina que perfazem quase dez anos de campanhas – da
eleição municipal de 2006 à eleição presidencial de 2014. Há
comprovantes bancários. Há notas fiscais frias. Há contratos
fraudulentos. Há, ainda, depósitos em contas secretas no exterior. Em
comum, as evidências corroboram ou comprovam pagamentos ilícitos a
políticos, numa escala que, ao menos no Brasil, nem mesmo a Odebrecht
atingiu. De 2006 a 2017, a contabilidade da propina da JBS – e outras
empresas dos irmãos Batista – a políticos é espantosa: R$ 1,1 bilhão.
Mais precisamente, R$ 1.124.515.234,67. Desse volume extraordinário de
pagamentos, R$ 301 milhões ocorreram em dinheiro vivo e R$ 395 milhões
por meio de empresas indicadas por políticos. Houve, por fim, R$ 427,4
milhões em doações oficiais.
Da primeira parte dessa investigação,
que ÉPOCA publica agora, emergem provas consistentes sobre casos
conhecidos por poucos, como pagamentos fraudulentos a empresas indicadas
por Temer à JBS, na distante campanha presidencial de 2010. Ou, ainda,
dos pagamentos igualmente fraudulentos a empresas indicadas por José
Serra em sua campanha presidencial, também em 2010. Há as provas dos
famosos extratos das duas contas mantidas por Joesley nos Estados Unidos
– e não na Suíça – com saldo de propina no BNDES, por combinação com o
ex-ministro da Fazenda Guido Mantega. São aquelas contas cujo saldo,
cerca de US$ 150 milhões, serviu para financiar a campanha de Dilma em
2014 – e também dos partidos que toparam, por valores altíssimos,
aliar-se a ela.
Surgem com especial força, no entanto, casos
inéditos, como a propina de US$ 1 milhão paga a Antonio Palocci, em
2010, por meio de uma conta nos Estados Unidos. Ou os pagamentos em
dinheiro vivo ao presidente do Senado, Eunício Oliveira, entre outros
parlamentares; e a ministros do governo Temer, como Bruno Araújo,
Gilberto Kassab, Helder Barbalho e Marcos Pereira. Kassab, por exemplo,
também aparece como beneficiário de um valor extraordinário em propinas,
recebidas, segundo os documentos, até o ano passado: R$ 18 milhões.
O
acervo, sobre o qual os investigadores da Procuradoria-Geral da
República vão se debruçar por meses, demonstra que a JBS comprava
sistematicamente políticos de todos os partidos. Não havia critério
ideológico; o valor do político era proporcional a sua capacidade de
proporcionar benefícios à empresa. Em estados como Ceará, Mato Grosso do
Sul e Santa Catarina, onde a JBS tinha mais interesses comerciais, a
quantidade de propina distribuída era proporcionalmente maior. Como a
JBS tinha interesses e vendas em todo o território nacional, os
investimentos em políticos alcançavam o país inteiro, com uma
capilaridade superior ao esquema da Odebrecht. Enquanto a Odebrecht, uma
empreiteira, atuou no atacado, na compra de políticos maiores, a JBS,
no comércio de carne, atuava no varejo, em busca não só dos grandes
líderes nacionais, como também dos políticos regionais que poderiam
remover obstáculos.
O crescimento da JBS é rápido, explosivo.
Entre 2006 e 2014, a receita líquida do grupo cresceu cerca de 2.800%,
dos R$ 4,3 bilhões de uma grande empresa brasileira para os R$ 120,5
bilhões características de uma gigante mundial, graças em boa parte ao
bom relacionamento com o PT, que lhe proporcionou acesso a fartos
financiamentos amigos do BNDES, o Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social. Quanto mais crescia, mais a JBS tinha negócios pelo
país, mais seus interesses se diversificavam, mais ela precisava do
governo e dos políticos. Por isso, no mesmo período, a propina
distribuída subiu junto. Os registros internos mostram um salto de
4.900% nos gastos com corrupção, de R$ 12,5 milhões em 2006, ano da
reeleição do então presidente,
Luiz Inácio Lula da Silva, para R$ 617 milhões em 2014, na reeleição de
Dilma Rousseff.
Em 2006, a JBS pagou propina para políticos de 11 partidos em seis
estados; em 2014 foram beneficiados integrantes de 27 partidos em todos
os estados brasileiros.
Tais volumes necessitavam de um
acompanhamento cuidadoso e de uma logística afiada. A operação rotineira
da propina era artesanal. Em vez de um Setor de Operações Estruturadas e
do drousys, como tinha a Odebrecht, a JBS tinha Demilton e Florisvaldo,
os dois funcionários dedicados. Os acertos com os políticos eram feitos
por Joesley Batista (na maioria dos casos), por seu irmão Wesley (em
poucos casos) e pelo lobista Ricardo Saud, todos colaboradores da
Procuradoria-Geral da República. Uma vez que o crédito fosse aprovado
por Joesley, Demilton era avisado por telefone ou pessoalmente e se
encarregava de combinar com quem de direito. Nos casos em que bastava
pagar uma empresa indicada pelo político, Demilton só tinha de cobrar as
notas fiscais frias; em alguns casos, nem isso: os interessados
entregavam os papéis e Demilton entregava dinheiro vivo. Para depósitos
no exterior, Demilton acionava um doleiro chamado Chico, baseado no
Uruguai. Demilton organizava a conta-corrente do grupo com Chico: os
pedidos de pagamento eram feitos por e-mail e nunca falhavam. Para fazer
pagamentos próprios de propina no exterior, a JBS tinha duas contas no
banco Julius Bär em Genebra, na Suíça, a Lunsville International e a
Valdarco Investments – aliás, foi de lá que saíram os pagamentos para
Palocci e para manter o silêncio do doleiro Lúcio Funaro, entre outros
que quiseram receber no exterior.
No Brasil havia facilidades das
quais só a JBS dispunha. Com clientes no varejo espalhados por todo o
país, como supermercados, atacados e frigoríficos, havia um fornecimento
garantido de dinheiro vivo para atender à demanda dos políticos. Assim,
boa parte dos pagamentos nessa modalidade era resolvida com uma
ligação. Seja no Rio de Janeiro, seja em Minas Gerais, Demilton entrava
em contato com o cliente e pedia que separasse um valor. Era comum que
empresários e até políticos buscassem valores diretamente, tamanha a
despreocupação com a operação ilegal. Foi assim com o senador Ciro
Nogueira, do Piauí, o principal líder do PP, partido que apoia o governo
Temer; foi assim com Raimundo Colombo, governador de Santa Catarina
pelo PSD, com o suplente de senador Antonio Carlos Rodrigues, do PR de
São Paulo, e com o ministro da Integração Nacional, Helder Barbalho, do
PMDB.
No Nordeste, onde a chaga do voto de cabresto ainda persiste
e a facilidade para lavar dinheiro em postos de gasolina ou compra de
gado é maior, Joesley Batista encarregou o publicitário André Gustavo,
uma espécie de Marcos Valério de Pernambuco, para cuidar de entregas de
dinheiro. Quando necessário, Joesley autorizava a contratação de um
carro-forte e André recolhia o dinheiro nos clientes da JBS e
transportava até o político que deveria ser beneficiado. Foi André quem,
segundo a JBS, organizou a entrega de propina em dinheiro vivo ao
presidente do Senado, Eunício Oliveira, ao senador Jader Barbalho e a
seu filho, o ministro Helder Barbalho, todos do PMDB.
André Gustavo foi preso nesta semana
na 42ª fase da Operação Lava Jato, acusado de ajudar o ex-presidente do
Banco do Brasil e da Petrobras Aldemir Bendine a chantagear a
Odebrecht, obter uma propina de R$ 3 milhões e lavar dinheiro. Como
Marcos Valério, André Gustavo está na cadeia.