Josias de Souza
Os delatores da Odebrecht escancararam no Tribunal Superior Eleitoral o lado avesso da política, por onde circulam os malandros e as verbas espúrias. De todas as revelações, a mais fascinante foi feita por José de Carvalho Filho. Funcionário do segundo escalão do departamento de propinas da construtora, coube-lhe organizar a logística do repasse de R$ 4 milhões ao grupo político de Michel Temer. Ele disse que a conta ficou meio milhão mais cara. Insinuou que desapareceram R$ 500 mil numa espécie de Triângulo das Bermudas que tinha como vértices Eliseu Padilha, José Yunes e Eduardo Cunha. Ludibriada, a Odebrecht viu-se compelida a pagar a mesma cifra duas vezes.
Os R$ 4 milhões eram parte de uma bolada maior, de R$ 10 milhões, liberada nas pegadas de um jantar no Palácio do Jaburu, com a presença do anfitrião, Michel Temer, e de Marcelo Odebrecht. Ficou combinado que os outros R$ 6 milhões seriam despejados nas arcas do comitê de Paulo Skaf, que disputava o governo de São Paulo. Orientado pelo ex-diretor da Odebrecht Claudio Melo Filho, que participara do repasto do Jaburu, José de Carvalho procurou Eliseu Padilha, outro comensal da residência oficial do então vice-presidente.
Amigo e confidente de Temer, Padilha forneceu os endereços para a entrega da mercadoria. Um pedaço da verba, fixado em R$ 1 milhão, destinava-se a Eduardo Cunha. E deveria ser levado ao escritório paulistano do advogado José Yunes, outro amigo de Temer. Dias depois, o delator forneceu a Padilha a senha que Yunes teria de pronunciar para receber a grana: “Morango”.
Acertados os detalhes, o dinheiro foi repassado ao destinatário. Súbito, José de Carvalho foi procurado por Cunha. Tiveram o que o delator chamou de “uma discussão acalorada”. Fora de si, Cunha, então deputado federal, mostrou a ira que tinha por dentro: “Eu recebi uma ligação extemporânea do Eduardo Cunha me cobrando, comentando que ele não recebeu R$ 500 mil”, rememorou o delator da Odebrecht.
Intrigado, José de Carvalho obteve na Odebrecht uma cópia do protocolo de entrega do dinheiro. Coisa devidamente assinada pela secretária de Yunes. Procurou Claudio Melo, o superior hierárquico que jantara no Jaburu com Temer e Marcelo Odebrecht. Sugeriu uma conversa com Eliseu Padilha. Contactado, Padilha realçou as qualidades do seu preposto: “O senhor Yunes é uma pessoa de mais ou menos 70 anos, é de minha confiança, dificilmente não teria registrado isso”.
''Eu vi o recibo assinado pela senhora Cida [supostamente a secretária de Yunes].”, disse o delator José de Carvalho em seu depoimento à Justiça Eleitoral. “Ainda assim, o mal-estar permaneceu. E a empresa deliberou fazer outro pagamento de R$ 500 mil reais.” O segundo pagamento foi feito a um preposto do próprio Cunha. A senha mudou de “morango” para “agenda”.
José Yunes, um amigo que convive com Temer há quase cinco décadas, já havia pendurado um álibi nas manchetes. Fez cara de enganado. Acusou o também amigo Eliseu Padilha de usá-lo como “mula involuntário”. Sustentou em entrevistas e num depoimento “espontâneo” à Procuradoria da República que recebera em seu escritório, em São Paulo, um pacote das mãos do doleiro Lúcio Funaro, homem de Eduardo Cunha. Nessa versão, Yunes saiu para o almoço e, quando voltou, o pacote já havia sido recolhido com sua secretária por alguém que cuja identidade ele diz desconhecer.
Padilha trancou-se em seus rancores e mandou dizer aos repórteres que não comentaria as declarações de Yunes e o depoimento dele à Procuradoria. Ficou boiando no ar uma interrogação: os dois se desentenderam em público ou fizeram uma dobradinha para distanciar o amigo Michel Temer do caixa dois da Odebrecht? A dupla talvez leve a resposta para o túmulo. De concreto, sabe-se apenas que Eduardo Cunha, o amigo desprezado, e Marcelo Odebrecht, o comensal tóxico, estão presos em Curitiba. Soltos, Yunes e Padilha acham que não devem nada a ninguém. Muito menos explicações.
Se soubesse que se defrontaria com malandragens mais refinadas que as suas, Marcelo Odebrecht, o príncipe da construção pesada talvez tivesse organizado seu próprio governo em vez de insistir em comprar o dos outros. Da Odebrecht jamais se poderia dizer que fez acordos espúrios com a Odebrecht em troca de contratos superfaturados. Num governo da Odebrecht, evidentemente, todas as obras públicas seriam da Odebrecht. De cara, seria eliminada a necessidade de licitações. E haveria uma restauração instantânea da moralidade. Num governo 100% da Odebrecht talvez fosse necessário decretar o fim da República. Nada de extraordinário para um país que, na prática, já convive com uma espécie de monarquia à moda brasileira. Reina a avacalhação. DO J.DESOUZA
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