Elio Gaspari mistura alhos com bugalhos e oferece bugalho como se alho fosse
Não
tem jeito. Os esquerdistas são os primeiros a admitir, na prática, que
suas teses são íntimas do crime. Ou, dito de outro modo, que a
realização de seus objetivos não dispensa a ação criminosa. Ou expresso
ainda de maneira diversa: que o mal praticado em nome dos seus
princípios virtudes são, e não defeitos. Não fosse assim, essa conversa
asquerosa, indecorosa mesmo, sobre se é golpista ou não pregar a
deposição de Dilma não seria nem sequer esboçada, absurda que é por sua
própria natureza.
E,
neste ponto, paro para tratar de um erro severo cometido por um
jornalista que de esquerda nunca foi, o que evidencia que o equívoco não
é monopólio de camaradas e companheiros. Uma colega me censurou numa
conversa amistosa na sexta: “Você não deveria divergir de outros
jornalistas em seus textos; basta que você exponha o seu ponto de vista.
Os leitores e ouvintes farão seu próprio juízo”. Era uma advertência de
quem tem afeto por mim, não o contrário. Quando divirjo deste ou
daquele, nem sempre desperto simpatias.
Entendo
as razões dessa minha amiga, mas não concordo. Jornalistas também podem
e devem ser nominados, especialmente quando se trata de uma divergência
respeitosa. Vamos lá. Em sua coluna publicada na Folha e no Globo neste
domingo, Elio Gaspari elenca 10 momentos de crise na história do Brasil
e convida o leitor a opinar se houve ou não ação golpista: 1969, 1968,
1964, 1961, 1955, 1945, 1937, 1930, 1891 e 1889. As datas aparecem na
mesma sequência de sua coluna.
Não
vou entrar em detalhes porque este post não teria fim. Se eu tivesse de
votar, diria, sem pestanejar, que o desfecho de todos esses casos foi
golpista. A propósito: quem inventou o “golpe do bem” de 1889, 1930,
1945 ou 1955 foi a historiografia marxista. Eu, por exemplo, não
reconheço essa categoria. Mas avanço.
É
sintomático que Gaspari não tenha incluído em sua lista de datas o ano
de 1992, que marca a deposição de Fernando Collor de Mello, a única
situação que guarda similaridade com a atual. Por que não se especula
se, naquele caso, houve ou não, afinal de contas, um golpe parlamentar?
Se
Gaspari quer que a história possa, de algum modo, ser instrutiva e se
acha que as comparações podem iluminar o presente, então é preciso
comparar alho com alho, bugalho com bugalho. Misturar alhos e bugalhos
só obscurece a inteligência. A exemplo do que se vê agora, em 1992,
amplos setores da sociedade repudiavam um governo que, ao lado dos
desastres que perpetrava na economia e na administração, via-se cercado
de casos de corrupção. Mais: evidenciou-se que a sua legitimidade estava
ferida porque o próprio processo que o elegeu deitava raízes na
corrupção e no malfeito.
O
que 2015 tem a ver com cada uma das dez datas elencadas por Gaspari
além de nada? Eu o desafio a demonstrar por que vivemos uma realidade
tão distinta de 1992. E, parece-me, ele não saberia me dizer onde está a
diferença, a menos que aderisse, e agora volto para o ponto inicial do
meu texto, à tese de que os crimes, quando cometidos por esquerdistas,
são naturalmente virtuosos.
O partido
É nauseante que petistas e afins venham agora defender o mandato de Dilma em nome das urnas, como se uma eleição conferisse ao governante o direito de agredir as instituições que conferem legalidade e legitimidade a seu mandato. Urna não é tribunal de absolvição, não. Ao contrário: a mesma lei que elege também aponta os caminhos da deposição. E Dilma pode, sim, ser deposta segundo o arcabouço legal. Golpe seria rasgá-lo para mantê-la no cargo.
É nauseante que petistas e afins venham agora defender o mandato de Dilma em nome das urnas, como se uma eleição conferisse ao governante o direito de agredir as instituições que conferem legalidade e legitimidade a seu mandato. Urna não é tribunal de absolvição, não. Ao contrário: a mesma lei que elege também aponta os caminhos da deposição. E Dilma pode, sim, ser deposta segundo o arcabouço legal. Golpe seria rasgá-lo para mantê-la no cargo.
Onde
estavam, em 1992, as vozes que hoje gritam “golpe!” quando se fala no
impeachment de Dilma? E ainda bem que não se manifestaram então, porque
estariam mesmo erradas. Aquele presidente perdeu a legitimidade à medida
que ficou claro que a sua corte havia se enterrado na ilegalidade para
elegê-lo e para consolidar o seu poder.
Ou
alguém tentará me convencer de que era inaceitável acusar a deposição
de Collor de “golpe!” porque ele era só um representante do
conservadorismo rastaquera, que nem expressão partidária tinha, mas que
é, sim, correto tachar de golpe a eventual deposição de Dilma porque,
afinal, ela é de esquerda e pertence ao PT? Então os crimes que
legitimaram a cassação do mandato de Collor não podem legitimar a
cassação do mandato de Dilma?
É
preciso ter memória e vergonha na cara, não é? Uma, eu tenho, porque
Deus me deu; a outra é uma escolha. Vocês querem ler a íntegra da
denúncia oferecida contra Collor à Câmara? Está aqui.
Não pensem que aquela peça apresentava alguma “prova” incontestável
contra o então presidente. Nada disso! O que lá se lê é um juízo
político. Querem um exemplo? Pois não!
“O impeachment não é uma pena ordinária contra criminosos comuns. É a sanção extrema contra o abuso e a perversão do poder político. Por isso mesmo, pela condição eminente do cargo do denunciado e pela gravidade excepcional dos delitos ora imputados, o processo de impeachment deita raízes nas grandes exigências da ética política e da moral pública, à luz das quais hão ser interpretadas as normas do direito positivo”.
“O impeachment não é uma pena ordinária contra criminosos comuns. É a sanção extrema contra o abuso e a perversão do poder político. Por isso mesmo, pela condição eminente do cargo do denunciado e pela gravidade excepcional dos delitos ora imputados, o processo de impeachment deita raízes nas grandes exigências da ética política e da moral pública, à luz das quais hão ser interpretadas as normas do direito positivo”.
A petição dizia mais — e peço que vocês avaliem se ela serve para Dilma:
“Nos regimes democráticos, o grande juiz dos governantes é o próprio povo, é a consciência ética popular. O governante eleito que se assenhoreia do poder em seu próprio interesse, ou no de seus amigos e familiares, não pratica apenas atos de corrupção pessoal, de apropriação indébita ou desvio da coisa pública: mais do que isso, ele escarnece e vilipendia a soberania popular”.
“Nos regimes democráticos, o grande juiz dos governantes é o próprio povo, é a consciência ética popular. O governante eleito que se assenhoreia do poder em seu próprio interesse, ou no de seus amigos e familiares, não pratica apenas atos de corrupção pessoal, de apropriação indébita ou desvio da coisa pública: mais do que isso, ele escarnece e vilipendia a soberania popular”.
E o que lhes parece isto aqui?
“É por essa razão que a melhor tradição política ocidental atribui competência, para o juízo de pronúncia dos acusados de crime de responsabilidade, precisamente ao órgão de representação popular. Representar o povo significa, nos processos de impeachment, interpretar e exprimir o sentido ético dominante, diante dos atos de abuso ou traição da confiança nacional. A suprema prevaricação que podem cometer os representantes do povo, em processos de crime de responsabilidade, consiste em atuar sob pressão de influências espúrias ou para a satisfação de interesses pessoais ou partidários.”
“É por essa razão que a melhor tradição política ocidental atribui competência, para o juízo de pronúncia dos acusados de crime de responsabilidade, precisamente ao órgão de representação popular. Representar o povo significa, nos processos de impeachment, interpretar e exprimir o sentido ético dominante, diante dos atos de abuso ou traição da confiança nacional. A suprema prevaricação que podem cometer os representantes do povo, em processos de crime de responsabilidade, consiste em atuar sob pressão de influências espúrias ou para a satisfação de interesses pessoais ou partidários.”
Já
sugeri uma vez e o faço de novo. Se e quando as oposições apresentarem
uma denúncia contra Dilma à Câmara, sugiro que se copiem exatamente
esses termos, que pareceram tão corretos às esquerdas de então e aos
colunistas oficialistas que hoje insistem em apontar “golpe” onde há
apenas o exercício cristalino da lei.
E
a Gaspari sobra uma dica final: é preciso tomar cuidado com a
comparação. Pode acontecer de ela não só deixar de iluminar o presente
como ainda servir para obscurecer o passado. DO JTOMAZ
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