Ricardo
Mendonça, editor-assistente de “Poder” da Folha, escreveu um dos textos
mais estúpidos que li nos últimos tempos. Não! Não é estúpido porque eu
discorde dele. Eu já discordei de muita coisa que achei inteligente e
bem pensada, embora recusasse o mérito. É estúpido porque afronta os
fatos.
Segundo o
Datafolha, a rejeição a Serra em São Paulo é de 52%, número de que
duvido. Mas vá lá. Mendonça tenta especular sobre os motivos. Segundo
diz, não seria só a renúncia à Prefeitura porque, ao deixar o cargo, o
tucano se elegeu governador com votação consagradora. Fato! Também não
seria só a reprovação ao governo Kassab, uma vez que 42% consideram sua
gestão ruim ou péssima — índice inferior ao daquela suposta rejeição.
Então Mendonça resolveu ter uma ideia, a saber:
“Serra sempre associou sua imagem a temas libertários. Era o ex-líder da UNE, o intelectual caçado por Pinochet, o ministro que combateu a Aids. Desde 2010, porém, sua figura, suas campanhas e seus neoaliados aparecem majoritariamente ligados a outras pautas. Repúdio visceral ao aborto, supervalorização de alianças evangélicas, escandalização de um kit contra o preconceito. Por que o eleitor não haveria de desconfiar?”
“Serra sempre associou sua imagem a temas libertários. Era o ex-líder da UNE, o intelectual caçado por Pinochet, o ministro que combateu a Aids. Desde 2010, porém, sua figura, suas campanhas e seus neoaliados aparecem majoritariamente ligados a outras pautas. Repúdio visceral ao aborto, supervalorização de alianças evangélicas, escandalização de um kit contra o preconceito. Por que o eleitor não haveria de desconfiar?”
Não sei
quem é Mendonça, que idade tem ou o que pensa da vida. Não me interessa!
Aí está um parágrafo intelectualmente delinquente, que tem de entrar
para a história dessa campanha eleitoral como exemplo da adesão
envergonhada, oblíqua e eticamente dolosa de setores da imprensa a uma
candidatura — no caso, a de Haddad.
Trata-se
de uma adesão envergonhada porque, obviamente, o “analista” não declara
seu voto — embora os mais atentos possam presumir. É oblíqua porque o
autor trata suas próprias escolhas como ponto de equilíbrio e de bom
senso, desprezando os fatos. E é eticamente dolosa porque faz com que
sua militância pareça apenas uma análise isenta.
A
linguagem é um vírus, o que Mendonça ainda não descobriu. A escolha do
adjetivo “visceral” para qualificar o repúdio ao aborto é dessas piadas
involuntárias que atropelam o pensador… Eu desafio esse rapaz a
encontrar uma só declaração de Serra sobre o tema que apele ao discurso
rancoroso. Assim como Dilma se declarou favorável à legalização, Serra
se disse contrário em 2010 porque indagado a respeito. Com muito mais
ênfase do que ele, quem se pronunciou no mesmo sentido foi a evangélica
Marina Silva — figura que Mendonça certamente não se atreveria a atacar.
Ele pode ser irresponsável quando escreve, mas não é bobo.
Lembro que
foi Serra, quando ministro da Saúde, quem cuidou da portaria que
regulamentou o aborto legal no SUS — o que era uma obrigação funcional
sua. Sim, era preciso disciplinar a prática autorizada pela Justiça.
Quem se mobilizou em 2010 contra a legalização do aborto foram cristãos
católicos e evangélicos. Quem correu para mudar de opinião e foi à
Igreja rezar — embora tivesse declarado acreditar em Deus só quando ao
avião balança — foi Dilma Rousseff. Tudo normal para Mendonça.
O rapaz
sugere que o suposto “repúdio visceral ao aborto” — ainda que Serra
fosse notável por ser um prosélito da causa, o que é mentira — tire
votos. Segundo pesquisa Datafolha de novembro de 2010, que pertence ao
mesmo grupo que assina a carteira de trabalho do “analista”, 71% dos
brasileiros são contrários à ampliação das possibilidades de aborto
legal. Apenas 7% pensam com Dilma Rousseff. Se Mendonça visitasse a
lógica de vez em quando, seria obrigado a concluir que pode ter havido
um erro, sim, na campanha de Serra em 2010: NÃO TER LEVADO O TEMA PARA A
CAMPANHA! O horário eleitoral do tucano não tratou do assunto.
Como não
tratou agora do kit gay — que Mendonça chama de “antipreconceito”. Deve
estar entre aqueles que acreditam que se deve dizer a crianças de 11
anos que ser bissexual é superior a ser heterossexual porque aumenta em
50% a possibilidade de a pessoa ter com quem namorar no fim de semana. O
editor-assistente deve concordar até com a matemática antipreconceito
de Haddad.
“Escandalização”?
Qual? De novo: se houve um erro, foi justamente não ter levado o filme
ao horário eleitoral. Esse kit gay, já escrevi aqui, é um kit fantasma
na campanha. Os jornais, a exemplo da Folha, falam dele, mas a população
não conhece as surpresas que Haddad preparava para seus filhos.
Mendonça também deve achar razoável que um “kit antipreconceito” leve
crianças a especular sobre a, como é mesmo?, insatisfação das pessoas
“com o seu órgão genital”.
Ainda que
Serra tivesse levado o tema para o horário eleitoral, seria mesmo um
problema? Segundo o Datafolha, 55% dos brasileiros se opõem, por
exemplo, à união civil de pessoas do mesmo sexo — no caso dos homens,
chega a 63%. Imaginem, então, se tomassem conhecimento de que o material
que Mendonça chama “antipreconceito” defende que travestis passem a
usar os banheiros femininos, inclusive nas escolas…
Finalmente,
Mendonça parece não gostar muito de evangélicos; considera-os pessoas
suspeitas, que tiram votos. Mais uma vez, ele joga os fatos no lixo.
Segundo a própria pesquisa que serve de base à sua análise, Haddad vence
a disputa entre os… evangélicos. Como esse dado combina com a sua tese é
parte dos mistérios de um juízo perturbado, que joga história, lógica e
fatos no lixo.
Preconceito,
preconceito de verdade, é o expresso por esse rapaz em seu texto. A
política brasileira, infelizmente, é cada vez mais refém desse tipo de
coisa. Imaginem Mendonça analisando a disputa eleitoral americana… Ele
recomendaria aos republicanos que aderissem correndo ao Partido
Democrata.
Duvido — e
não tenho nenhum outro elemento a não ser a minha convicção; é preciso
ser honesto com o leitor — que a rejeição a Serra seja essa. Ainda que
fosse verdade, as especulações do editor-assistente afrontam verdades
factuais óbvias. Parte das dificuldades de Serra decorre do fato de que
gente como Mendonça lhe atribui o que não fez e protege Haddad do que
efetivamente fez.
O nome
disso é campanha eleitoral envergonhada, oblíqua e eticamente dolosa se
fingindo de análise isenta. E não agride só Serra, não. Trata-se de um
ataque muito mais amplo. Mendonça está entre aqueles — e é
editor-assistente de política de um jornal importante — que consideram
que pessoas que são contrárias ao aborto, que se opõem ao proselitismo
gay nas escolas e que são evangélicas devem mesmo ser alvos de
desconfiança. Os leitores do jornal que compartilham de uma, de duas ou
dessas três convicções devem saber disso.
Para Mendonça, sem essa gente, o mundo ficaria bem menos preconceito…
Texto publicado originalmente às 6h2
Por Reinaldo Azevedo
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