Às 23 horas de 17 de janeiro de 2002, depois de assistirem a um filme na TV, Ivone Santana e Celso Daniel foram dormir juntos pela última vez. Na noite seguinte, a socióloga de 38 anos soube que o homem a quem estava ligada afetivamente desde 1996 fora sequestrado ao voltar de um restaurante em São Paulo na Pajero blindada dirigida por Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, ex-segurança, ex-assessor e empresário. Ela jura que passou o dia 19 à espera do pedido de resgate. Em 20 de janeiro, o cadáver do prefeito de Santo André foi encontrado numa estrada de terra. Além de 11 perfurações a bala, a autópsia encontrou numerosas evidências de que, antes de executá-lo, os assassinos haviam submetido Celso Daniel a sessões de tortura.
Surpreendida por tamanha tragédia, uma viúva de Nelson Rodrigues atravessaria o velório assombrando os presentes com saltos ornamentais sobre o caixão, berreiros de acordar qualquer defunto, imprecações tremendas contra culpados ou inocentes ─ e colecionaria desmaios sucessivos até a missa de 30° dia. Mesmo a mais contida das mulheres não demoraria menos de um mês para recordar o que ocorrera sem que a emoção interrompesse o relato de cinco em cinco minutos. O caso Celso Daniel precipitou a aparição de outra maravilha da fauna do PT: a viúva militante. Essa mutação não sabe o que é luto. Discorre sobre uma perda recentíssima com a placidez de quem narra um torneio de golfe. E precisa de apenas uma semana para preencher uma página de jornal com palavrórios abjetos na forma e suspeitíssimos no conteúdo.
Ela chorou duas vezes, garante o repórter que assina a entrevista publicada pela Folha de S. Paulo em 28 de janeiro de 2002. Pode ter sido algum cisco no olho, sugerem as respostas. O crime poderia ter tido motivações políticas?, começa a conversa. “O Celso não possuía inimigos políticos que pudessem chegar ao ponto de sequestrá-lo e matá-lo”, encerra o assunto a depoente sem dúvidas. “Foi um crime urbano”. Nessa hipótese, por que Sombra foi poupado pelos bandidos? “O Sérgio é moreno”, ensina, deixando claro que prefere o prenome ao apelido revelador. E decola rumo à estratosfera: “Nosso racismo cordial deve ter falado mais alto, e os caras acharam melhor pegar o Celso”. Tradução: o erro do prefeito foi ter nascido branco.
Por que os sequestradores não pediram resgate? “Os caras foram atrás porque acharam que era um empresário com grana. Mas aí descobriram que pegaram o sujeito errado. Com todo aquele cerco, aquele barulho da imprensa, os caras devem ter se apavorado e achado que não podiam ficar com ele, que tinham de se livrar dele”. Não viu nada de estranho no comportamento de Sombra, primeiro colocado no ranking dos suspeitos? “Delírio puro”, irrita-se Ivone. “Celso saiu para jantar com um amigo, que é da família. Não foi o prefeito que saiu para jantar com um empresário. Será que as pessoas não entendem a diferença? Conheço Sérgio desde 1988. É um amigo”. O entrevistador lembra que peritos haviam desmontado a versão de que a Pajero fora imobilizada por defeitos mecânicos. “Se o carro é da Mitsubishi e chamam um sujeito da Mitsubishi para dar pareceres…”, retruca Ivone. “Tenha dó, não é?”
A doçura do tratamento dispensado ao possível mandante do crime contrasta com a ausência de alusões carinhosas ao assassinado. Como Miriam Belchior, que viveu 10 anos com Celso Daniel, Ivone Santana negou-lhe até mesmo palavras compassivas. O prefeito que ocuparia na campanha de Lula o posto que acabou confiado a Antonio Palocci não foi chorado pelas duas companheiras. Somadas, as lágrimas da dupla de viúvas não bastam para encher três tampinhas de garrafa de cerveja.
Se não tivesse batido em retirada, Gilberto Carvalho teria de caçar explicações, na segunda metade da entrevista, tanto para o espetáculo da frieza protagonizado por Miriam e Ivone quanto para outras interrogações agrupadas nos tópicos seguintes:
1. Numa das conversas registradas em 42 fitas, um interlocutor não identificado cumprimenta Ivone Santana pela entrevista concedida à Folha e a estimula a aceitar o convite para brilhar no programa de Hebe Camargo. Por que parecia conveniente ao grupo a exposição de uma mulher afetada por um drama recentíssimo? Em outro diálogo por telefone com Ivone, Gilberto Carvalho diz que a entrevista “pode mudar o rumo das investigações”. Ivone foi festejada pelo que disse, pelo que deixou de dizer ou por ambas as coisas? Sobre as investigações, que rumo deveria ser alterado? Que direção deveria tomar o inquérito?
2. Numa das fitas que desapareceram, Luiz Eduardo Greenhalgh, em tom zombeteiro, elogia a competência de Miriam Belchior no papel de viúva. Se havia papéis, houve um script. Qual era? E que desfecho previa?
3. Em nenhuma gravação as viúvas ouvem palavras de consolo ou solidariedade. Não ficaram abaladas com o episódio? Por que nenhum dos participantes das conversas se mostra indignado com o assassinato? Por que ninguém exige a identificação e a condenação dos responsáveis? Por que ninguém lamenta a perda do companheiro já escolhido para ocupar, na campanha de Lula, o posto que acabou confiado a Antonio Palocci?
4. Gilberto Carvalho assumiu a secretaria de Comunicação da prefeitura de Santo André em 1997 e era secretário de Governo em janeiro de 2001. Nunca ouviu comentários sobre a existência de um esquema de arrecadação de dinheiro sujo para financiar campanhas do PT?
5. Em março de 2003, em São Bernardo, Lula ouviu de Mara Gabrilli, filha de um empresário do setor de transportes, um relato circunstanciado sobre as pressões movidas contra a Expresso Guarará pelo grupo de que faziam parte o secretário de Serviços Municipais, Klinger de Oliveira, o empresário Ronan Maria Pinto, hoje dono do Diário do Grande ABC, e por Sombra. No dia do encontro entre Lula e Mara, Gilberto Carvalho já era secretário-particular de Lula. O que o chefe lhe contou? Acreditou no que ouvira? Tentou confirmar as denúncias?
6. Em 2005, Rosângela Gabrilli, irmã de Mara, reiterou as acusações na CPI dos Bingos e provou, com documentos, que a empresa de seu pai foi obrigada meses a fio a entregar à quadrilha R$ 40 mil mensais, em dinheiro vivo, repassados imediatamente ao caixa 2 do PT. Por que Gilberto Carvalho jamais se manifestou sobre o depoimento de Rosângela?
7. Em 2010, Marcos Bispo dos Santos, acusado pelo Ministério Público de integrar o grupo de oito executores, foi condenado a 18 anos de prisão. Durante o julgamento, o promotor Francisco Cembranelli endossou a tese do crime político. Gilberto Carvalho achou incorreta a argumentação do promotor? Considerou injusta a decisão do tribunal do júri?
8. Sérgio Gomes da Silva, que ficou preso oito meses, será julgado ainda neste ano por um corpo de jurados. Gilberto Carvalho está disposto a depor como testemunha de defesa?
É improvável que se arrisque a tanto. Desde a descoberta das gravações, o sacristão de cordão carnavalesco guarda distância também dos antigos parceiros de Santo André. Acampado no Planalto, terá de reaprender orações esquecidas e rezar para que Sombra, caso se sinta em perigo, não resolva afundar atirando. Se optar pelo abraço do afogado, o réu contará o caso como o caso foi. Na segunda metade dos anos 90, empresários da área de transportes e pelo menos um secretário municipal, todos vinculados ao PT, forjaram na prefeitura de Santo André o embrião do esquema do mensalão. Recorrendo a extorsões, a quadrilha infiltrada na administração municipal ajudou a patrocinar a gastança eleitoral do partido. Ao saber que parte das boladas começara a ser desviada para os contas bancárias dos delinquentes, Celso Daniel resolveu impedir que os ladrões lesassem o PT. Foi punido com a morte.
Na entrevista que não houve, ficaria claro que Gilberto Carvalho e seus comparsas conspiraram para impedir o prosseguimento de investigações que inevitavelmente levariam às catacumbas da roubalheira. Decididos a manter o partido vivo, consumaram a segunda morte de Celso Daniel. Tentam assassinar a verdade desde 2002. Não conseguirão.
AUGUSTO NUNES
REV VEJA
Surpreendida por tamanha tragédia, uma viúva de Nelson Rodrigues atravessaria o velório assombrando os presentes com saltos ornamentais sobre o caixão, berreiros de acordar qualquer defunto, imprecações tremendas contra culpados ou inocentes ─ e colecionaria desmaios sucessivos até a missa de 30° dia. Mesmo a mais contida das mulheres não demoraria menos de um mês para recordar o que ocorrera sem que a emoção interrompesse o relato de cinco em cinco minutos. O caso Celso Daniel precipitou a aparição de outra maravilha da fauna do PT: a viúva militante. Essa mutação não sabe o que é luto. Discorre sobre uma perda recentíssima com a placidez de quem narra um torneio de golfe. E precisa de apenas uma semana para preencher uma página de jornal com palavrórios abjetos na forma e suspeitíssimos no conteúdo.
Ela chorou duas vezes, garante o repórter que assina a entrevista publicada pela Folha de S. Paulo em 28 de janeiro de 2002. Pode ter sido algum cisco no olho, sugerem as respostas. O crime poderia ter tido motivações políticas?, começa a conversa. “O Celso não possuía inimigos políticos que pudessem chegar ao ponto de sequestrá-lo e matá-lo”, encerra o assunto a depoente sem dúvidas. “Foi um crime urbano”. Nessa hipótese, por que Sombra foi poupado pelos bandidos? “O Sérgio é moreno”, ensina, deixando claro que prefere o prenome ao apelido revelador. E decola rumo à estratosfera: “Nosso racismo cordial deve ter falado mais alto, e os caras acharam melhor pegar o Celso”. Tradução: o erro do prefeito foi ter nascido branco.
Por que os sequestradores não pediram resgate? “Os caras foram atrás porque acharam que era um empresário com grana. Mas aí descobriram que pegaram o sujeito errado. Com todo aquele cerco, aquele barulho da imprensa, os caras devem ter se apavorado e achado que não podiam ficar com ele, que tinham de se livrar dele”. Não viu nada de estranho no comportamento de Sombra, primeiro colocado no ranking dos suspeitos? “Delírio puro”, irrita-se Ivone. “Celso saiu para jantar com um amigo, que é da família. Não foi o prefeito que saiu para jantar com um empresário. Será que as pessoas não entendem a diferença? Conheço Sérgio desde 1988. É um amigo”. O entrevistador lembra que peritos haviam desmontado a versão de que a Pajero fora imobilizada por defeitos mecânicos. “Se o carro é da Mitsubishi e chamam um sujeito da Mitsubishi para dar pareceres…”, retruca Ivone. “Tenha dó, não é?”
A doçura do tratamento dispensado ao possível mandante do crime contrasta com a ausência de alusões carinhosas ao assassinado. Como Miriam Belchior, que viveu 10 anos com Celso Daniel, Ivone Santana negou-lhe até mesmo palavras compassivas. O prefeito que ocuparia na campanha de Lula o posto que acabou confiado a Antonio Palocci não foi chorado pelas duas companheiras. Somadas, as lágrimas da dupla de viúvas não bastam para encher três tampinhas de garrafa de cerveja.
Se não tivesse batido em retirada, Gilberto Carvalho teria de caçar explicações, na segunda metade da entrevista, tanto para o espetáculo da frieza protagonizado por Miriam e Ivone quanto para outras interrogações agrupadas nos tópicos seguintes:
1. Numa das conversas registradas em 42 fitas, um interlocutor não identificado cumprimenta Ivone Santana pela entrevista concedida à Folha e a estimula a aceitar o convite para brilhar no programa de Hebe Camargo. Por que parecia conveniente ao grupo a exposição de uma mulher afetada por um drama recentíssimo? Em outro diálogo por telefone com Ivone, Gilberto Carvalho diz que a entrevista “pode mudar o rumo das investigações”. Ivone foi festejada pelo que disse, pelo que deixou de dizer ou por ambas as coisas? Sobre as investigações, que rumo deveria ser alterado? Que direção deveria tomar o inquérito?
2. Numa das fitas que desapareceram, Luiz Eduardo Greenhalgh, em tom zombeteiro, elogia a competência de Miriam Belchior no papel de viúva. Se havia papéis, houve um script. Qual era? E que desfecho previa?
3. Em nenhuma gravação as viúvas ouvem palavras de consolo ou solidariedade. Não ficaram abaladas com o episódio? Por que nenhum dos participantes das conversas se mostra indignado com o assassinato? Por que ninguém exige a identificação e a condenação dos responsáveis? Por que ninguém lamenta a perda do companheiro já escolhido para ocupar, na campanha de Lula, o posto que acabou confiado a Antonio Palocci?
4. Gilberto Carvalho assumiu a secretaria de Comunicação da prefeitura de Santo André em 1997 e era secretário de Governo em janeiro de 2001. Nunca ouviu comentários sobre a existência de um esquema de arrecadação de dinheiro sujo para financiar campanhas do PT?
5. Em março de 2003, em São Bernardo, Lula ouviu de Mara Gabrilli, filha de um empresário do setor de transportes, um relato circunstanciado sobre as pressões movidas contra a Expresso Guarará pelo grupo de que faziam parte o secretário de Serviços Municipais, Klinger de Oliveira, o empresário Ronan Maria Pinto, hoje dono do Diário do Grande ABC, e por Sombra. No dia do encontro entre Lula e Mara, Gilberto Carvalho já era secretário-particular de Lula. O que o chefe lhe contou? Acreditou no que ouvira? Tentou confirmar as denúncias?
6. Em 2005, Rosângela Gabrilli, irmã de Mara, reiterou as acusações na CPI dos Bingos e provou, com documentos, que a empresa de seu pai foi obrigada meses a fio a entregar à quadrilha R$ 40 mil mensais, em dinheiro vivo, repassados imediatamente ao caixa 2 do PT. Por que Gilberto Carvalho jamais se manifestou sobre o depoimento de Rosângela?
7. Em 2010, Marcos Bispo dos Santos, acusado pelo Ministério Público de integrar o grupo de oito executores, foi condenado a 18 anos de prisão. Durante o julgamento, o promotor Francisco Cembranelli endossou a tese do crime político. Gilberto Carvalho achou incorreta a argumentação do promotor? Considerou injusta a decisão do tribunal do júri?
8. Sérgio Gomes da Silva, que ficou preso oito meses, será julgado ainda neste ano por um corpo de jurados. Gilberto Carvalho está disposto a depor como testemunha de defesa?
É improvável que se arrisque a tanto. Desde a descoberta das gravações, o sacristão de cordão carnavalesco guarda distância também dos antigos parceiros de Santo André. Acampado no Planalto, terá de reaprender orações esquecidas e rezar para que Sombra, caso se sinta em perigo, não resolva afundar atirando. Se optar pelo abraço do afogado, o réu contará o caso como o caso foi. Na segunda metade dos anos 90, empresários da área de transportes e pelo menos um secretário municipal, todos vinculados ao PT, forjaram na prefeitura de Santo André o embrião do esquema do mensalão. Recorrendo a extorsões, a quadrilha infiltrada na administração municipal ajudou a patrocinar a gastança eleitoral do partido. Ao saber que parte das boladas começara a ser desviada para os contas bancárias dos delinquentes, Celso Daniel resolveu impedir que os ladrões lesassem o PT. Foi punido com a morte.
Na entrevista que não houve, ficaria claro que Gilberto Carvalho e seus comparsas conspiraram para impedir o prosseguimento de investigações que inevitavelmente levariam às catacumbas da roubalheira. Decididos a manter o partido vivo, consumaram a segunda morte de Celso Daniel. Tentam assassinar a verdade desde 2002. Não conseguirão.
AUGUSTO NUNES
REV VEJA
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