Agora nós já sabemos por que não devemos importunar Dilma Rousseff com problemas da vida real. O marqueteiro João Santana (ver post de ontem) decidiu que ela deve ocupar no imaginário dos brasileiros o lugar de uma “rainha”, aquela que é ubíqua, mas distante; generosa, mas intocável; amorável, mas impessoal; maternal, mas intangível; transparente, mas insondável. O Apedeuta era outra coisa, bem mais carne-de-vaca. Comparecia a tudo quanto era inauguração, falava o que lhe dava na telha, pontificava, filosofava, ensinava com ainda mais prazer o que ignorava, propunha revoluções morais, sociais, galácticas…
Ficará para a história a sua estupefaciente (em todos os sentidos da palavra…) consideração sobre os benefícios que obteria a Terra (sim, o planeta!) se, em vez de redonda, fosse quadrada; se, em vez de se mover, fosse um ponto fixo no universo. Segundo disse, seríamos menos afetados pela poluição. Lula não tinha, e não há razão para supor que tenha agora, pudor, medida, limite — decorrência de uma formação psíquica particular: a relação confessadamente tumultuada com o pai o impediu de ter superego. A exemplo das criancinhas e dos idiotas, não incorporou algumas censuras essenciais à vida civilizada. Por isso, ia brutalizando tudo o que encontrava pela frente. Daqui a pouco, estará de volta — e no estilo de sempre, o único que conhece.
Dilma, está dado, não tinha como rivalizar com essa personagem, que ganhou o imaginário de amplos setores da sociedade brasileira, muito especialmente daqueles que deveriam vigiá-lo: a própria imprensa, com as exceções de praxe, e as oposições. Tornou-se, assim, o homem acima das instituições. Se formos considerar as licenças informais que lhe deram para transgredir os códigos da vida republicana, é preciso considerar que ele foi até modesto nos abusos. A inimputabilidade que lhe foi concedida lhe teria permitido até ir mais longe. Mas voltemos à nossa “rainha”. Se ela tentasse emular com ele ou repetir seus gestos e falas de estudada teatralidade, cairia imediatamente no ridículo. Escolheu, então — ou escolheram por ela —, essa ausência onipresente, que comanda reuniões, decide, ordena, demite, orienta, cobra, exige, admoesta, mas sempre entre quatro paredes. Não estaria em lugar nenhum porque está em todos os lugares.
Até a regra da bandeira mudou. Antes, ela ficava hasteada quando o chefe da Nação estava num dos dois palácios — do Planalto ou da Alvorada. Agora não mais! A presidente “está” mesmo quando “não está”; simbolizá-la com uma bandeira implica lhe dar uma carnalidade, uma materialidade, que lhe diminui o alcance simbólico. Não é exatamente uma presidente, mas um “ente”. Como tal, deverá aparecer e falar só em circunstâncias especialíssimas. Mas que saibamos todos: estará sempre velando e zelando por nós, o seu “povo”, os seus “súditos”, os beneficiários de seu reinado.
A propaganda tem funcionado às mil maravilhas. Sendo assim, não há como lhe cobrar coisa nenhuma, e os problemas do país parecem se dar numa esfera alheia àquela em que habita a soberana. A ela caberá, na hora certa, dizer palavras de admoestação ou de conforto; lembrar princípios. Se era impossível imputar a Lula qualquer responsabilidade pelo que ia em seu governo porque ele nada mais era do que o homem que tentava corrigir os erros de cinco séculos, nada se cobra de Dilma porque aqueles mesmos problemas estão abaixo da esfera empírea em que ela transita; são pendengas nossas. A rainha, na verdade, se entristece com a brutalidade dos homens.
Os subterrâneos do reino
Antes de ser rainha, quando ainda não trazia nas faces esse ar austero e etéreo, Dilma Rousseff tinha o seu grupo. Era o “pessoal” do setor elétrico, porta pela qual ela entrou no governo Lula. Fábio Rezende era um ativo membro da turma. Petista, diretor de Furnas entre 2003 e 2009 e irmão de Sérgio Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, ele disparou, na semana passada, um petardo contra o PMDB, acusando a turma do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) de graves maracutaias em Furnas, que responde por 40% da energia consumida no país. Reportagem da VEJA desta semana conta a história em detalhes. Entre outras coisas, o documento assegura que a empresa foi lesada em R$ 80 milhões numa operação com um doleiro amigo de Cunha e que as usinas de Batalha e Simplício tiveram superfaturamento de 100%. Nada menos…
Antes de ser rainha, quando ainda não trazia nas faces esse ar austero e etéreo, Dilma Rousseff tinha o seu grupo. Era o “pessoal” do setor elétrico, porta pela qual ela entrou no governo Lula. Fábio Rezende era um ativo membro da turma. Petista, diretor de Furnas entre 2003 e 2009 e irmão de Sérgio Rezende, ex-ministro da Ciência e Tecnologia, ele disparou, na semana passada, um petardo contra o PMDB, acusando a turma do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) de graves maracutaias em Furnas, que responde por 40% da energia consumida no país. Reportagem da VEJA desta semana conta a história em detalhes. Entre outras coisas, o documento assegura que a empresa foi lesada em R$ 80 milhões numa operação com um doleiro amigo de Cunha e que as usinas de Batalha e Simplício tiveram superfaturamento de 100%. Nada menos…
Já antes do segundo turno das eleições, Rezende não escondia, em troca de e-mails com amigos, a sua disposição de partir para a luta: “Precisamos reagir com denúncias a jornalistas, mobilizar o pessoal, procurar os políticos conhecidos; isto é, sair da acomodação e fazer barulho”. E mandou ver. Cunha reagiu pelo Twitter com frases como essas: “É impressionante o instinto suicida desses caras (petistas). Quem com ferro fere com ferro será ferido”. Ou ainda: “Na verdade, o documento foi feito pelo Fábio Rezende, que nem coragem para assinar teve. Ele não tem aquilo roxo, e sim rosado”.
Vejam como os plebeus do governo Dilma chafurdam gostosamente na baixaria. As metáforas de Cunha indica a qualidade da luta em que se metem PMDB e PT. Uma nota à margem: a briga pelo faturamento de R$ 6,7 bilhões de Furnas não é mais bonita do que aquela pelo controle de uns R$ 5 bilhões da Funasa (Fundação Nacional de Saúde), que Lula loteou entre petistas e peemedebistas logo no começo de seu primeiro mandato.
E como reagiu a rainha? Ordenou que os petistas parassem de molestar os peemedebistas — ou, melhor, mandou ordenar, já que ela mesma não se compromete com essas ações mundanas. Em off, o máximo que diz um assessor é isto: “A presidente fará uma faxina em Furnas, mas não será de imediato nem com dossiês”. Não se sabe quando será a “hora certa” de Dilma. Indicam a lógica e o bom senso que o poder de fogo do PMDB vai crescer tão logo tenha início a nova legislatura. Se, neste primeiro mês, sem que as demandas do governo tenham chegado ao Congresso, os peemedebistas já se mostram tão inquietos, imaginem como será depois. Esse partido é especialista em usar o seu voto para fazer valer seu ponto de vista ou apresentar suas reivindicações.
E não é só do peso do presente que seus ombros estão livres. Ao mudar do Terceiro Estado para o Primeiro, ela também não carrega memória nenhuma do governo que, afinal, foi seu, do qual ela era a grande gerente. Como vocês verão no post abaixo, a lista das irrealizações é imensa — inclusive das irrealizações futuras. Mas ela, definitivamente, não tem nada com isso. A figura de Dilma está sendo talhada para ficar acima dos critérios que medem competência e incompetência. A construção, como já disse, é esperta. Lamentável é perceber que o truque funciona.
Enquanto isso, o PSDB e o DEM se dedicam a golpezinhos mixurucas e conspiratas contra seus próprios aliados. O povo, no conjunto, tem o governo que merece porque, afinal, este foi eleito pela maioria. A minoria derrotada é que, convenham, merecia uma oposição um pouquinho melhor, não é mesmo? Não resistiu ao petismo para assistir à pantomima a que se entregam tucanos e democratas.
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