quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Delírios, consternação, lágrimas, apreensão e provocação

16/12/2010
às 6:29


Não há dúvida de que o petismo é um sistema. As regras de funcionamento da Máquina, em boa parte, não dependem do governante de turno, o (a) titular da Presidência da República, que é só a figura institucional. Quem manda é o chefe do partido. Lula, hoje, é o comandante das duas faces: a que está mais ou menos exposta à luz da imprensa — o Poder Executivo — e a que se protege nas sombras: o PT, suas franjas e a base material desse poder, composta de sindicatos, estatais e fundos de pensão. A substituição de Lula por Dilma na Presidência não altera substancialmente o modelo. “A Máquina” continuará no comando. Ainda assim, percebe-se um clima de consternação com a chegada da hora… Faltam apenas 16 dias. Essa consternação deriva de um misto de incerteza sobre o futuro, cobrança para que nada mude e, em alguns casos, quem sabe?, um tantinho de desânimo.

Vamos tentar entender. Ainda que Dilma, em certa medida, represente mais do mesmo, e isso é fato, há que se considerar que Lula é um fenômeno irrepetível da política. E o é menos por suas peculiaridades, compostas de virtudes e defeitos, do que por conta de uma espécie de doença moral que tomou conta da política, que faz dele uma figura inimputável. Os políticos, da base e da oposição, temem a sua língua ferina, a sua impressionante capacidade de desqualificar os que dele discordam e a ligeireza com que evoca as “desigualdades” do Brasil para justificar qualquer coisa. Se criticam alguma medida de seu governo, trata-se da voz das elites; se seu filho é flagrado num negócio meio inexplicável com um empresa de telefonia, ele logo denuncia o preconceito contra o operário: parece Chico Buarque explicando Jabuti em cima de árvore: “Só porque sou cantor…”

Pode não parecer, mas isso ajuda a resolver muitas crises — a matar algumas delas na origem. Ele só não foi à lona durante o mensalão porque as oposições ficaram com receio desse Lula popular, que se disse, no mês passado, “encarnação do próprio povo”. Estourava um escândalo, lá estava ele para servir de pára-raios, denunciando a conspiração — em especial a da imprensa, que não estaria interessada em reconhecer os seus méritos. A consternação da petezada, que ainda vai se exacerbar — faltam muitos cântaros de lágrimas; imaginem a despedida no dia 1º… — nasce da certeza de que o partido não contará mais com esse ativo.

Nem Dilma nem ninguém tem essa capacidade. Porque, reitero, agora esclarecendo, estamos falando menos de uma virtude de Lula do que da inimputabilidade em que ele transita, feita de um misto de consciência culpada e estudada generosidade das elites políticas: “Ele é um operário, filho de mãe que nasceu analfabeta (!), deixem que fale”. Ninguém quer comprar briga com o mito. Lula é isso? Claro que não! Ele é, de fato, o chefe de uma das maiores máquinas partidárias do Ocidente. Caso se considere que seu partido administra o patrimônio dos fundos de pensão, não há organização partidária no mundo mais rica do que o PT — o PC chinês é outra coisa; não é obrigado a disputar o poder com ninguém; não se distingue do estado.

Os petistas continuarão incrustados na maquina, eu sei. Eu mesmo apontei aqui que o primeiríssimo escalão de Dilma é mais lulista do que o do próprio Lula. Mas há coisas que ela não poderá fazer simplesmente por não ser ele. O processo político certamente não estará de joelhos diante dela como esteve diante dele ao longo dos oito anos. O manancial metafórico da futura presidente não trará aquela rusticidade no fundo cômica, mas transformada quase em poesia, de seu antecessor. Não se vê uma Dilma em cima do palanque, suarenta, dedo em riste, olhos injetados, a defender os corruptos de sua base na suposição de que ela lutou contra a corrupção mais do que ninguém… Não estou dizendo que a petista não pudesse gostar de ter esse “dom”. Estou afirmando que ela não tem porque ninguém lhe reconhece legitimidade para isso.

Para o bem ou para o mal, o Brasil volta a ser governado — ao menos na face visível do governo, não aquela das sombras — por uma pessoa, e isso tende a deixar mais claros os problemas. E também acaba criando arestas entre os próprios aliados. A “máquina” está um tanto assustada.

Na patuscada desta quarta, quando Lula registrou em cartório obras que nem sequer saíram do papel, coube a Franklin Martins, o ministro da Supressão da Verdade, fazer uma provocação. Numa referência direta à ex-ministra e presidente eleita, lembrou que lhe cabe o desafio de fazer um governo “ainda melhor” do que o de Lula — e isso num ambiente em que ele era saudado como o maior estadista da história do Brasil, o que fez 80 anos em 8 etc e tal.

Franklin parece meio bravo com a sucessora de Lula. O encerramento de sua fala queria dizer, obviamente, um sonoro “você não vai conseguir”. Ele não se conforma que ela, até agora, não tenha endossado a sua proposta, que conta com o apoio entusiasmado do presidente, de controlar o conteúdo dos meios de comunicação. Segundo disse outro dia, a presidente eleita teve um caminhão de votos e pode fazer o que quiser. Não pode, não! Só nas ditaduras o governante faz o que bem entende. Gente como Franklin se cria mais facilmente à sombra de um inimputável como Lula do que de alguém como Dilma.

Com uma oposição fraca, parte dela empenhada na sua “(re)afundação”, os primeiros adversários da futura presidente tendem a ser algumas viúvas de Lula.
Texto originalmente publicado às 22h23 de ontem
Por Reinaldo Azevedo

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